Um pequeno recipiente de vidro aquecido e contendo álcool borbulhante no seu interior é a fase inicial de um tipo de célula a combustível que está em desenvolvimento no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo. Esse equipamento produz energia elétrica por meio de uma reação química entre o hidrogênio e o oxigênio e usa o etanol, o álcool feito da cana-de-açúcar disponível nos postos de abastecimento brasileiros, de forma direta sem a necessidade de um outro aparelho, chamado de reformador. As células trabalham com hidrogênio puro de origem industrial, que custa caro para ser obtido, ou extraem esse gás de um combustível (etanol, gás natural, gasolina etc).“Pelo que sabemos é a primeira vez no país que o etanol é usado de forma direta em uma célula SOFC”, diz o pesquisador do Ipen, Reginaldo Muccillo, coordenador da pesquisa.
A célula chamada de SOFC, sigla em inglês de Solid Oxide Fuel Cell ou célula a combustível de óxido sólido, é apontada como um gerador de eletricidade de grande potencialidade para um futuro próximo. Basta um suprimento de hidrogênio para transformar o equipamento num gerador autônomo e produzir até dezenas de megawatts (MW). Como comparação, a Usina Hidrelétrica de Itaipu produz cerca de 12 mil MW. Grandes empresas multinacionais como Siemens, General Electric, Mitsubishi e Delphi estão se preparando para entrar nesse campo. O próprio grupo do Ipen está fechando um acordo com a Pirelli Labs, com sede em Milão, na Itália, para estudos em conjunto de células SOFC.
“Muitos laboratórios e grandes empresas estão com protótipos sob análise em itens como durabilidade, eficiência e preço do quilowatt”, diz Fábio Coral Fonseca, pesquisador do grupo que esteve em 2006 num simpósio sobre células SOFC, em Honolulu, Estados Unidos, com a participação de pesquisadores de empresas e de institutos de pesquisa sob o patrocínio do Departamento de Energia dos Estados Unidos e do programa Solid State Energy Coversion Alliance (Seca), uma aliança entre indústria, governo e comunidade científica para o desenvolvimento de geradores a hidrogênio de óxido sólido. O objetivo do Seca é impulsionar a produção dessas células em formatos de 3 quilowatts (kW) a 10 kW para funcionar como geradores em residências, em indústrias e em aplicações militares.
“O que nós estamos fazendo no Ipen é preparando o que poderíamos chamar de uma terceira geração dessa célula”, diz Muccillo. As células SOFC são caracterizadas por possuírem o condutor de eletricidade, ou eletrólito, feito de material cerâmico, que quebra as moléculas do hidrogênio ou do oxigênio, permitindo a separação dos elétrons e a consequente geração de energia elétrica. “São equipamentos idealizados há mais de 30 anos que só agora encontram novos materiais, novas soluções de montagem e preço para se tornarem comerciais”, diz Daniel Zanetti de Florio, pesquisador do grupo que se tornou recentemente professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo.
A primeira geração das células SOFC, que está em testes em protótipos, possui o eletrólito feito com óxido de zircônio e óxido de ítrio, substâncias, como as de outras gerações, extraídas de minerais e processadas industrialmente. Esse tipo de célula já foi construído, de forma experimental, pelo mesmo grupo no Ipen (veja Pesquisa FAPESP nº 112). A segunda é feita com óxido de cério, em muitos experimentos pelo mundo, e a terceira produzida com cerato de bário e zirconato de bário. São eletrólitos desenvolvidos em instituições de pesquisa japonesas há dez anos e agora preparados pela própria equipe de pesquisadores do Ipen. “Outra diferença fundamental é que as duas primeiras gerações são de concepção iônica, enquanto aquela desenvolvida por nós para funcionar com etanol é protônica”, diz Muccillo.
Quebra do oxigênio
Para entender essas concepções é preciso saber que as células a combustível funcionam como baterias produtoras de energia elétrica enquanto existir fornecimento de combustível. Elas possuem eletrodos positivos (anodo) e negativos (catodo). Nas gerações prestes a se tornarem comerciais, a molécula de oxigênio (O2) é quebrada na superfície da cerâmica. Os elétrons, de carga negativa, saem do catodo cerâmico e geram eletricidade junto com os elétrons do hidrogênio, que é injetado e quebrado no lado do anodo. Os prótons (H+), de carga positiva, que sobram recebem os íons de oxigênio que atravessam o eletrólito para formar água (H2O), o “resíduo” das células a combustível.
O caminho que leva a todas essas reações na SOFC acontece de forma inversa nas células PEM, sigla em inglês de Proton Exchange Membrane ou membrana de troca de prótons, em que o eletrólito é uma membrana polimérica condutora no lugar da cerâmica. Na PEM – atualmente de uso mais difundido e com protótipos pré-industriais, inclusive no Brasil, e indicada para equipar automóveis (veja Pesquisa Fapesp n° 126) – é o próton do hidrogênio (H+) que atravessa a membrana e encontra o oxigênio do outro lado formando água, sendo caracterizada como de concepção protônica. Outra diferença importante entre as duas é que a PEM trabalha em baixa temperatura, por volta dos 80 graus Celsius (C), enquanto a SOFC funciona em temperaturas de 600 a 900ºC. “O que nós conseguimos foi fazer uma célula de cerâmica em que os prótons de hidrogênio é que atravessam o eletrólito cerâmico”, explica Muccillo.
Para fazer funcionar a célula, o álcool processado por ela é inicialmente volatilizado e sua molécula é quebrada em 670°C, gerando hidrogênio e dióxido de carbono (CO2). Esse último gás é eliminado na atmosfera, mas já há experimentos em que ele é aproveitado em sistemas de produção de álcool. O novo protótipo atinge a potência de 1,1 volt com tamanho de 20 milímetros de diâmetro por 1 milímetro de espessura e está instalado dentro de um gabinete com 5 centímetros (cm) de altura e 5 cm de largura.
Além do álcool, os pesquisadores do Ipen também fizeram a célula funcionar com gás metano. “Essa foi nossa primeira idéia porque imaginávamos colocar uma célula a combustível sobre um lixão para uso do metano, liberado na degradação do lixo, na geração de energia elétrica para as casas ao redor”, conta Muccillo. Mas ainda é preciso mais estudos para aprimorar uma célula em grande escala. Os pesquisadores vão apresentar a novidade no 10° Simpósio Internacional de SOFC que acontecerá na cidade de Nara, no Japão, em junho deste ano.
“Queremos agora produzir placas (eletrólitos) ainda mais densas para que o gás (metano ou etanol) não passe na forma de molécula, e sim seja quebrado com mais eficiência”, diz Muccillo, que recebe financiamento do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, além de um projeto temático da Fundação e do Fundo Setorial da Energia (CT-Energ) do Ministério da Ciência e Tecnologia.
O Projeto
Estudo de fenômenos intergranulares em materiais cerâmicos
Modalidade
Projeto Temático
Coordenador
Reginaldo Muccillo – Ipen
Investimento
R$ 415.463,52 e US$ 163.933,14 (FAPESP)
O Projeto
Cerâmicas para células a combustível SOFC
Modalidade
Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)
Coordenador
Elson Longo – Unesp/CMDMC
Investimento
R$ 1.200.000,00 anual para todo o CMDMC