Um aterro sanitário ou um terreno encharcado de petróleo que vazou de um oleoduto estão longe de ser ambientes favoráveis à vida do ponto de vista humano. Mas, para certas bactérias, o solo contaminado com esse tipo de poluente pode representar um banquete, uma vez que os microrganismos conseguem usar os resíduos ricos em matéria orgânica como fonte de energia. Essa atividade microbiana, aliás, pode até ser bastante desejável. É que, ao se alimentar, as bactérias degradam os compostos orgânicos e ajudam na limpeza das áreas poluídas. O geofísico brasileiro Carlos Alberto Mendonça e colaboradores nos Estados Unidos e na Europa acreditam ser possível descobrir quando as bactérias estão em ação sem precisar escarafunchar o solo. Nos últimos anos eles conseguiram indícios de que o repasto bacteriano deixa no solo uma trama de material condutor de eletricidade bastante sutil, mas detectável com o auxílio de equipamentos relativamente simples. Se outros experimentos confirmarem a ocorrência desse fenômeno – chamado pelos pesquisadores de biogeobateria –, o rastreamento da corrente elétrica pode se tornar uma ferramenta útil para indicar os locais onde os microrganismos estão ajudando eliminar os contaminantes do solo e aqueles nos quais a ação bacteriana não está dando conta da faxina.
Os pesquisadores apresentam um modelo explicando o funcionamento dessas biogeobaterias em um artigo a ser publicado em breve na revista científica JGR-Biogeosciences. Na verdade, esse conceito é uma extensão de um fenômeno geofísico bem estabelecido e estudado, as geobaterias, conta Mendonça, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Essa anomalia elétrica frequentemente está associada à presença de minerais condutivos no subsolo, em especial sulfeto de ferro ou sulfeto de cobre”, explica. “Por isso mesmo ela se tornou um indício importante para a prospecção mineral, principalmente na mineração de cobre.”
As geobaterias surgem quando no subsolo há contato de água com uma massa de mineral metálico se estendendo mais na direção vertical (do mais raso para o mais profundo) do que na horizontal. Nessas condições a porção mais superficial da massa metálica entra em contato com maior quantidade de oxigênio do ar, enquanto a mais profunda permanece em situação de quase anóxia (ausência de oxigênio). A diferença de concentração desse elemento químico favorece a transformação de energia química em energia elétrica: é a chamada reação de oxirredução, na qual um dos compostos transfere partículas de carga elétrica negativa (elétrons) para outro. No caso do mineral metálico, a região em contato com o ar perde elétrons (sofre oxidação) e a mais profunda ganha (sofre redução). O fluxo de elétrons gera uma corrente cujo efeito, o potencial elétrico, pode ser detectado com a ajuda de um par de eletrodos e um voltímetro.
Até poucos anos atrás, a detecção desse tipo de anomalia fornecia uma pista interessante sobre a presença de minerais no solo. Mas nada se sabia sobre a possível relação desse fenômeno com a biodiversidade microscópica encontrada na terra. Esse conhecimento começou a mudar com os dados oriundos do aterro sanitário de Entressen, no sul da França. Em artigo de 2003 na Geophysical Research Letters, a equipe de André Revil – pesquisador da Escola de Mineração do Colorado, nos Estados Unidos, e da Universidade de Savoia, na França, com quem Mendonça colabora – demonstrou a ocorrência de anomalias elétricas muito semelhantes às geobaterias no aterro de Entressen.
O que se viu em Entressen foi depois observado em outros lugares: nas vizinhanças de uma refinaria em Berre, também no sul da França, onde ocorrera um derramamento de óleo cru; e numa antiga usina de gás natural em Portadown, na Irlanda do Norte, onde o solo e o lençol freático foram contaminados por compostos orgânicos após a desativação da usina. O potencial elétrico detectado era de centenas de milivolts – um terço do que é produzido por uma pilha comum. Parece pouco, “mas a corrente associada é considerável”, diz Mendonça.
Em todos esses casos, era natural esperar a ação de microrganismos sobre as moléculas orgânicas que contaminavam o solo – em Berre, aliás, sabia-se que havia biodegradação do petróleo. Se a anomalia elétrica estava presente, talvez não fosse ousado demais propor que os microrganismos tivessem algo a ver com ela. “Esse é o grande desafio, a grande pergunta que queremos responder”, afirma Mendonça.
Sinais de que o grupo estava no rumo certo vieram de outro trabalho, publicado em 2007 na Geophysical Research Letters pela equipe de Yuri Gorby, do Instituto J. Craig Venter, nos Estados Unidos. Gorby e seus colegas tinham descoberto que a bactéria Shewanella oneidensis era capaz de produzir filamentos de apenas 100 nanômetros (milionésimos de milímetro) de espessura condutores de eletricidade. Segundo esse estudo, os filamentos poderiam funcionar como fios elétricos, pelos quais as bactérias lançariam os elétrons que sobrassem de seu metabolismo no solo, onde poderiam ser absorvidos por minerais.
No trabalho de 2007 a equipe de Gorby deu um passo além. Os pesquisadores preencheram uma coluna com areia molhada para simular em laboratório uma camada de solo. Depois colocaram os micróbios na mistura e observaram o que acontecia. Dias mais tarde viram que tinha surgido uma corrente elétrica que atravessa o solo artificial de baixo para cima. Eles também verificaram que uma rede de filamentos unia as bactérias. O grupo, então, propôs que o emaranhado era o responsável por fazer essa espécie de bateria microbiana funcionar. Segundo Mendonça, se essa rede de filamentos alcançasse a escala de metros de comprimento, permitiria explicar as observações feitas em terrenos contaminados.
“Até agora ninguém conseguiu contestar experimentalmente o trabalho de 2007, mas muitos microbiologistas o criticam porque lhes parece impossível que a transmissão de elétrons entre as bactérias possa atingir a escala de metros”, explica o geofísico da USP. “Para eles, deveria haver perda de energia e a transmissão deveria ocorrer, no máximo, entre poucas bactérias.”
Mendonça e seus colegas, no entanto, acreditam que a dissipação de energia pode ser bem menos severa – o que viabilizaria a ideia de que certas espécies de bactérias, como a Shewanella oneidensis, estariam por trás das biogeobaterias. “Sem isso, fica muito difícil explicar o sinal elétrico que detectamos”, diz ele. O modelo desenvolvido pela equipe de Mendonça se inspira nas chamadas células a combustível bacterianas, já bem estudadas em laboratório para explicar o funcionamento das biogeobaterias. Tal como nas células a combustível, as moléculas orgânicas do solo poluído serviriam de combustível para as bactérias, que transfeririam elétrons de um polo a outro da bateria. Como nas geobaterias, o fluxo de elétrons surgiria das áreas mais fundas e anóxicas rumo à superfície, mais oxigenada. “Assim se teria um emaranhado de nanofios com propriedades elétricas produzido por essa comunidade microbiana eletrificando, de certa forma, boa parte da Terra”, compara Mendonça.
O grupo que Mendonça integra precisa agora de dados mais robustos em favor de seu modelo. Um caminho para os obter é testar as ideias em estudos de campo. A equipe tem duas áreas em vista: um local onde houve derramamento de petróleo, nos Estados Unidos; e um aterro, com o tamanho de um quarteirão e 6 metros de profundidade, perto do rio Pinheiros, em São Paulo. “Nesse aterro são jogados os dejetos após a flotação e a centrifugação feitas para diminuir a quantidade de poluentes num trecho do rio”, explica o pesquisador da USP. “Infelizmente, nesse caso, limpa-se uma coisa [o rio] e se suja outra [o solo].”
Se a hipótese do grupo estiver correta, deverá ser possível detectar uma assinatura elétrica diferente em profundidades distintas do solo – reações de redução ocorrendo nas regiões mais profundas da área poluída e as de oxidação mais acima, tudo mediado pela trama de microrganismos interligados. “Teremos de ver se é possível verificar esse efeito diretamente, porque esses terrenos muitas vezes têm uma complexidade espacial que pode atrapalhar a análise”, ressalva Mendonça.
Caso o experimento funcione, a detecção de biogeobaterias em terrenos contaminados pode se tornar um indicador de que nesses locais existem condições favoráveis à degradação natural de poluentes. Já a ausência de corrente elétrica pode significar que, deixada à própria sorte, a natureza não será capaz de decompor o contaminante. “Nesse caso, a contaminação poderia durar séculos e seria necessário uma intervenção direta para resolver o problema”, afirma. Bastaria espetar os eletrodos no solo para poder diferenciar um cenário do outro.
Mendonça lembra que muitos pesquisadores consideram possível que a trama eletrificada formada pelas bactérias seja um elemento antigo da biosfera – surgido há mais de 2 bilhões de anos, quando a atmosfera da Terra era mais pobre em oxigênio e os microrganismos consumiam o ferro do solo para gerar energia e se manterem vivos. E comenta: “É incrível encontrar um processo que talvez remonte ao surgimento da atmosfera atual do planeta em algo, por assim dizer, tão moderno quanto o solo contaminado por poluentes”.
O projeto
Aparato de laboratório para simular campos de potencial espontâneo na perfilagem geofísica de poços (nº 06/06956-5); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Carlos Alberto Mendonça – IAG/USP; Investimento R$ 21.988,37 (FAPESP)
REVIL, A. et al. Understanding biogeobatteries: where geophysics meets microbiology. JGR-Biogeosciences. Special issue. No prelo.