A polêmica sobre o momento da chegada do homem à América, um acalorado debate científico, acaba de ser reavivada por um estudo genético com 30 índios nativos do continente, a maioria pertencente a etnias presentes no Brasil. A análise de uma parte da molécula de DNA (ácido desoxirribonucléico) desses descendentes dos povos primordiais que ocuparam o Novo Mundo reforça a tese de que o Homo sapiens atingiu o Alasca, vindo da Ásia, via Estreito de Bering, há cerca de 21 mil anos e em apenas uma leva migratória. Saída da Sibéria, uma pequena população de caçadores-coletores de traços mongolóides (orientais) teria atravessado, por volta dessa época, a Beríngia – uma vasta extensão de terra, hoje coberta pelas águas oceânicas, que ligava os dois continentes – em busca de comida e se instalado na América.
Uma equipe de pesquisadores de nove centros do Brasil e um do Peru, coordenados por Marco Antônio Zago e Wilson Silva Jr., da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), chegou a essa conclusão depois de seqüenciar e estudar nos ameríndios o perfil das mutações e a diversidade do chamado DNA mitocondrial – um tipo de material genético que, se devidamente trabalhado, é capaz de abrir uma janela para o passado e fornecer estimativas aproximadas de processos evolutivos, além de, do ponto de vista clínico, estar potencialmente relacionado à ocorrência de doenças humanas. Para os defensores da teoria clássica de colonização da América, hoje muito questionada por recentes achados arqueológicos e estudos genômicos, houve três movimentos de entrada de grupos asiáticos no continente, o primeiro tendo ocorrido há cerca de 12 mil anos.
Os resultados do novo trabalho sugerem que todos os membros da heterogênea população de ameríndios analisada – 25 índios brasileiros pertencentes a oito etnias (Guarani, Kaiapó, Katuena, Potururaja, Tirio, Waiampi, Arara e Yanomami) e cinco Quechua, do Peru – derivaram de um único grupo ancestral, possivelmente os primeiros colonizadores da América. “Nossos dados biológicos apóiam a teoria de que a entrada do homem no continente é mais antiga do que normalmente se pensa e de que esse processo se deu em apenas uma leva migratória”, afirma Zago, cuja equipe contou com financiamento da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Essas populações de ameríndios provavelmente tiveram uma origem comum.”
Para efeito de comparação e calibragem da metodologia empregada, os pesquisadores analisaram o DNA mitocondrial de dez brasileiros não-ameríndios, quatro de origem africana (negros), três de ascendência branca e três descendentes de asiáticos (japoneses). O trabalho da equipe de Zago foi publicado na edição de julho da revista norte-americana The American Journal of Human Genetics, uma das mais importantes da área. Suas principaisconclusões ratificam as idéias centrais de um amplo estudo europeu que ganhou, em 2000, as páginas da revista Nature, e também se baseara no uso do DNA mitocondrial como se fosse um relógio molecular da evolução humana.
Apesar de terem analisado o material genético de um número relativamente pequeno de ameríndios, presentes em apenas dois países sul-americanos, os pesquisadores brasileiros estão convencidos de que seus dados são plenamente confiáveis. “Um estudo com uma amostra maior e mais diversificada chegaria substancialmente aos mesmos resultados”, comenta o geneticista Silva Jr. Também o fato de terem seqüenciado e estudado apenas 50% dos pares de base (unidades químicas) do DNA mitocondrial dos ameríndios – e não 100% – não é visto como uma falha metodológica do trabalho. Ao contrário. “Nosso artigo é o segundo no mundo a mostrar que, com metade do DNA mitocondrial mapeado, é possível chegar aos mesmos resultados do seqüenciamento completo dessa molécula”, assegura Zago.
Desse modo, como era esperado, o material genético dos 30 índios sul-americanos estudados se encaixou em uma das quatro grandes linhagens de DNA mitocondrial que caracterizam os povos nativos da América, chamadas tecnicamente de haplogrupos A, B, C e D. Entre os dez brasileiros de origem não-ameríndia – pessoas que, obviamente, não são candidatas a serem descendentes das primeiras populações que chegaram ao continente -, somente o DNA mitocondrial de um indivíduo branco pertencia a um dos haplogrupos típicos dos nativos americanos. Cada linhagem de DNA mitocondrial apresenta um número e padrão de mutações que lhe conferem uma identidade própria, uma diversidade genética peculiar. É isso que as torna diferentes. Os quatro haplogrupos, no entanto, guardam muita semelhança entre si – como irmãos de uma mesma família – e também com o DNA mitocondrial dos habitantes atuais da Ásia, uma evidência de que os ocupantes primordiais da América vieram daquele continente. Em outras palavras,amatriz dessas quatro linhagens, aparentemente irmãs, é asiática.
Isso, por si só, não é uma evidência concreta de que os quatro haplogrupos se originaram simultaneamente e de uma mesma população. Para demonstrar esse tipo de correlação, o grupo de Zago calculou quando cada um dos quatro haplogrupos de DNA mitocondrial se diferenciou de sua seqüência-mãe. É algo como tentar descobrir a data de nascimento de cada linhagem. Os resultados foram muito semelhantes, sugerindo a existência de um ancestral comum às quatro linhagens em algum momento do passado. Pelas contas dos pesquisadores, o haplogrupo A surgiu há 20,5 mil anos; o B, há 18,1 mil anos; o C, há 21,6 mil anos; e o D, há 23,8 mil anos. “Essa diferença não é estatisticamente relevante no tipo de metodologia que usamos no trabalho”, diz Silva Jr.
“É como se todos os haplogrupos tivessem aparecido mais ou menos ao mesmo tempo.” E quando isso teria ocorrido? Cerca de 21 mil anos atrás, pois esse resultado equivale à idade média de todas as linhagens. Portanto, se os tipos de DNA mitocondrial encontrados hoje em mais de 90% dos povos nativos da América remontam a uma mesma época, isso provavelmente quer dizer que todos os membros desses grupos descendem de uma única leva migratória vinda da Ásia.Nesse tipo de estudo genômico, um dos grandes desafios é levantar subsídios que mostrem onde ocorreu a tal diferenciação do DNA mitocondrial que levou à disseminação maciça dos haplogrupos A, B, C e D apenas na América.
Que evidências existem de que esse processo se deu aqui e não na própria Ásia? Afinal, as quatro linhagens poderiam ter surgido antes da ocupação do Novo Mundo e terem sido trazidas para cá por mais de um movimento migratório, simultâneo ou não. “A presença das linhagens A, B, C e D é minoritária na Ásia, onde predominam outras variedades de DNA mitocondrial”, comenta Sandro Bonatto, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), que também participou do estudo. “Se essa diferenciação tivesse ocorrido antes da chegada à América, deveria haver hoje mais representantes dessas linhagens naquele continente.”
Efeito gargalo
Para os autores do trabalho com os ameríndios, a origem desses haplogrupos está claramente ligada a um processo de ocupação do continente por uma única e reduzida leva migratória, levada a cabo, possivelmente, por alguns poucos milhares de indivíduos. Se tivessem ocorrido outras migrações, argumentam eles, hoje deveria haver mais linhagens de DNA mitocondrial por aqui, mais antigas ou mais novas do que os quatro haplogrupos. Como os ameríndios apresentam menos diversidade genética do que os asiáticos, os pesquisadores acreditam que os nativos da América sejam o resultado de um processo evolutivo chamado de efeito gargalo: a partir de poucos indivíduos – leia-se baixa diversidade genética – origina-se uma população enorme que vai colonizar uma grande área – as três Américas, no caso.
Quem não trabalha com genômica tem dificuldade em entender como os pesquisadores conseguem construir suas hipóteses teóricas sobre a ocupação da América a partir da análise de alguns milhares de pares de base do DNA mitocondrial. Como esse tipo de material genético pode jogar luz sobre o processo de colonização do Novo Mundo, ocorrido há milhares de anos? Antes de tudo, é preciso compreender a importância – e a especificidade – desse tipo de material genético em relação a todo o genoma humano. Cada célula humana abriga DNA em duas estruturas: o núcleo, que contém mais de 99,9% de todo o material genético da espécie, e uma organela responsável pela produção de energia, a mitocôndria. Enquanto o DNA do núcleo celular apresenta mais de 3 bilhões de pares de bases, o DNA mitocondrial abriga somente 16.500 pares de base e apresenta algumas peculiaridades que o tornam um bom marcador biológico.
Ele é independente do DNA nuclear e é passado para as gerações futuras apenas pela linhagem materna, sem sofrer recombinação com material genético proveniente da ascendência paterna. Mas isso não quer dizer que o DNA mitocondrial é imutável e exatamente igual em qualquer pessoa. Em razão de mutações aleatórias e erros no processo de cópia, os pares de base que formam a sua seqüência sofrem alterações de tempos em tempos. Muitos cientistas acreditam que as mutações do DNA mitocondrial ocorrem num ritmo mais ou menos constante e criam modelos matemáticos para tentar estabelecer, com forma aproximada, quando duas populações distintas tiveram um ancestral comum. “Esse tipo de análise não traz respostas prontas, mas aponta fortes tendências”, ressalta Silva Jr. Foi, grosso modo, isso que os pesquisadores brasileiros e peruanos obtiveram em seu trabalho.
Depois de seqüenciar uma região contínua de 8.800 pares de base do DNA mitocondrial dos 30 ameríndios (e também dos dez brasileiros de origem não-indígena), a equipe deu início à tarefa de tentar decifrar as origens, no tempo e no espaço, desse material genético e inferir quando e em quantas levas o homem chegou à América. Não se trata de um trabalho que parte do nada, do zero, mas sim de algumas premissas assumidas e difundidas em outros trabalhos científicos. Para amparar seus cálculos matemáticos e comparações genômicas que os levariam a estimar o momento da chegada dos primeiros colonizadores do Novo Mundo, os pesquisadores tiveram, logicamente, de adotar um ponto de partida para a existência das formas iniciais de hominídeos na Terra: assumiram, como outros trabalhos também fizeram, que os hominídeos se diferenciaram dos chimpanzés há cerca de 5 milhões de anos.
Em seguida, compararam o DNA mitocondrial desses bichos com o dos ameríndios para estabelecer com que freqüência ocorrem alterações (mutações) nessa região do genoma em humanos. Feitas as contas, mostraram que há anualmente 2.4 x 10-8 substituições (mutações) por par de bases no trecho estudado do DNA mitocondrial dos ameríndios. “Isso equivale a dizer que ocorre uma mutação nessa região a cada 5 mil anos”, comenta Sandro Bonatto. Se essa taxa estiver correta e se a ocupação do Novo Mundo se deu há cerca de 21 mil anos, os ameríndios de hoje devem apresentar pelo menos quatro mutações a mais em seu DNA mitocondrial do que seus ancestrais asiáticos.
Existem várias teorias que procuram explicar a chegada do homem à América a partir da análise de material paleoarqueológico e, mais recentemente, com a ajuda de estudos do DNA humano. O trabalho dos pesquisadores da USP de Ribeirão Preto e seus colaboradores é mais um que se insere nessa crescente tendência de usar a informação genética para tentar entender um processo de colonização cuja compreensão, até bem pouco tempo atrás, dependia basicamente do resgate de ossos de humanos e animais, da análise de artefatos e desenhos feitos por ascendentes de nossa espécie, além de trabalhos sobre a evolução lingüística dos ameríndios e do clima no continente. O estudo não tem a pretensão de esgotar esse polêmico e apaixonante assunto, nem está isento de críticas, sobretudo dos partidários de outras visões sobre a chegada do Homo sapiens ao Novo Mundo. “Mas nossa análise é fria e baseada em dados confiáveis”, salienta Zago.
Até algumas décadas atrás, a visão dominante acerca da colonização era ditada pelos norte-americanos mais tradicionalistas, que sempre difundiram a tese de que houve três movimentos migratórios de populações mongolóides vindos da Ásia. A primeira leva de colonizadores teria chegado há cerca de 12 mil anos anos. Essa linha de estudiosos diz que a primeira cultura a se estabelecer aqui foi a de Clóvis, no Novo México, Estados Unidos, onde, contudo, nunca foram encontradas ossadas humanas, mas, sim, muitas pontas de lança, prova da existência dessa civilização primordial.
Teorias alternativas
Outras correntes postulam que o desembarque inicial da leva de caçadores e coletores vindos da Ásia em direção ao Novo Mundo ocorreu antes dessa data. Um estudo recente, feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que analisaram o cromossomo Y – transmitido apenas pelo pai para os filhos de sexo masculino – de 18 grupos de ameríndios, sustenta que houve apenas uma onda migratória, entre 15 mil e 30 mil anos atrás – uma conclusão na linha do artigo produzido agora pelos seus colegas da USP de Ribeirão Preto com o DNA mitocondrial.
Há ainda quem, como a arqueóloga Niède Guidon, defenda a tese de que a presença humana na América é bem mais antiga, remontando há cerca de 50 mil anos. Ela sustenta essa idéia a partir de datações realizadas em restos de uma fogueira (que teria sido feita por humanos) encontrados em São Raimundo Nonato, no Piauí, onde ainda foram localizadas pinturas rupestres de mais de 10 mil anos. O sítio arqueológico de Monte Verde, no Chile, também já forneceu evidências de que o homem está na América do Sul há mais de 12 mil anos.
Perda de linhagens
Numa outra linha de trabalho, o bioarqueólogo Walter Neves, do Instituto de Biociências da USP, defende uma hipótese diferente. Baseado na anatomia de esqueletos humanos achados em pontos da América do Sul, entre os quais Luzia, o mais antigo crânio completo de Homo sapiens encontrado no continente (resgatado na região mineira de Lagoa Santa e datado em 11 mil anos), Neves diz que os primeiros ocupantes do Novo Mundo chegaram aqui entre 13 mil e 14 mil anos e não eram mongolóides, mas, sim, membros de uma população asiática similar aos atuais aborígines australianos e negros africanos. O problema é que esse suposto colonizador primordial pode ter se extinguido, sendo suplantado pelos mongolóides.
Não seria possível, portanto, estudar o DNA mitocondrial dos descendentes de Luzia simplesmente porque eles podem não existir. Isso, no entanto, não incomoda Neves. “Esse modelo de ocupação da América defendido pelos geneticistas a partir da análise do DNA mitocondrial de grupos indígenas atuais não bate com o que mostram os fósseis”, afirma o bioarqueólogo. “Eles não levam em conta que pode ter havido perda de linhagens de DNA com o passar do tempo, tanto na Ásia como na América.” Os geneticistas admitem que, se Luzia e seus contemporâneos não deixaram descendentes, não é possível negar ou provar sua existência pela análise das populacões atuais. “Mas nossos dados mostram que a ocupacão da América por mongolóides comecou há pelo menos 20 mil anos, muito antes do período proposto por Neves”, afirma Zago.
Em busca dos males da mitocôndria
Além de ser uma espécie de arquivo molecular do passado, o DNA mitocondrial também pode fornecer pistas importantes sobre mutações potencialmente associadas ao desenvolvimento de algumas doenças, como o mal de Parkinson, Alzheimer e o diabetes melito do tipo 2. Num trabalho publicado na edição de maio do The American Journal of Human Genetics, a mesma revista norte-americana que acolheu o estudo dos brasileiros com os ameríndios, pesquisadores de uma empresa de biotecnologia da Califórnia, a MitoKor, revelaram que seqüenciaram o genoma mitocondrial de 560 pessoas de origem asiática, européia e africana. O esforço da companhia produziu, possivelmente, a maior base de dados com seqüências dessa região do DNA humano, composta por apenas 16.500 pares de bases (unidades químicas).
O grande desafio dos cientistas agora é mapear todas as mutações do genoma mitocondrial e descobrir quais dessas alterações podem ser fatores de risco para o aparecimento das doenças citadas. Para atingir esse objetivo, o que abriria caminho para o desenvolvimento de novas terapias contra esses distúrbios, as seqüências genômicas de indivíduos sadios e de portadores de Alzheimer, Parkinson e diabetes vão ser comparadas em detalhe. A tarefa não é fácil nem deve trazer resultados a curto prazo, mas isso não desanima os pesquisadores. “A questão central é que não há respostas simples”, afirma Neil Howell, principal autor do estudo. “Vamos ter de caracterizar o genoma mitocondrial de populações ainda maiores para encontrar as respostas.”
Republicar