Grupos de pesquisadores de universidades que participam de projetos de inovação em cooperação com empresas apresentam produtividade científica 12,7% maior que a de equipes que não fazem esse tipo de parceria – e quando as colaborações são duradouras o número de artigos publicados pelos grupos chega a ser 20,1% superior. A conclusão é de um estudo coordenado pelo economista Renato Garcia, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e publicado em junho na revista Innovation: Organization & Management. O trabalho baseou-se em dados de produção científica registrados entre 2002 e 2008 por quatro censos do Diretório de Grupos de Pesquisa, um inventário de equipes de pesquisadores em atividade no país e seu desempenho organizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O artigo analisou a performance de 7.572 grupos, dos quais 857 colaboraram com empresas pelo menos uma vez no período analisado e 324 cooperaram o tempo todo.
Segundo Garcia, embora os dados indiquem uma correlação significativa entre a disposição em cooperar com empresas e o aumento da produtividade científica, eles não permitem afirmar a existência de uma relação de causa e efeito entre colaborar e produzir mais. “Em geral, esses grupos de pesquisa são de alta qualidade e bastante produtivos e isso atrai a atenção de empresas que buscam parceiros para solucionar seus problemas”, afirma. Não é incomum, inclusive, que essa aproximação seja promovida por ex-alunos de cientistas acadêmicos que foram trabalhar nos departamentos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) das companhias. “Ao mesmo tempo, há evidências de que o conhecimento gerado em projetos cooperativos com empresas enriqueça a agenda dos pesquisadores e produza mais publicações científicas”, explica.
O estudo é parte de uma linhagem de trabalhos realizados por pesquisadores de vários países que buscam mapear os efeitos positivos e negativos da interação entre universidades e empresas, um vínculo que se dissemina no mundo inteiro ante as evidências de que o processo de inovação se tornou cada vez mais complexo e precisa da participação ativa das instituições que geram conhecimento para produzir resultados com impacto econômico.
De acordo com o economista Eduardo Albuquerque, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar-UFMG) e estudioso da formação de redes de inovação, o artigo corrobora resultados obtidos em vários países, que apontam convergências de interesse entre universidades e empresas na geração de conhecimento. Para ele, o estudo inova ao apontar que a produtividade científica é afetada de modo mais acentuado em colaborações de fôlego. “Esse trabalho demonstra que a cooperação estável e sistemática é mais benéfica para os grupos, em termos de produtividade, que a colaboração episódica”, diz Albuquerque, que não participou do estudo. “Os resultados ressaltam que a interação entre universidades e empresas no Brasil é mais comum do que se imagina e vem se tornando mais intensa.”
O interesse em colaborações de longo prazo se explica: enquanto parcerias de curta duração costumam resultar apenas no aprimoramento de produtos, a cooperação duradoura permite aos pesquisadores conhecer a realidade das empresas com mais profundidade. Ainda assim, cientistas dedicados a colaborações múltiplas e contínuas com corporações por vezes são alvo de alguma desconfiança, como se relegassem a um segundo plano a missão de formar estudantes e fazer ciência básica. “Há um debate, que está sendo feito agora no Brasil mas já havia sido travado em outros países, sobre em que medida a excessiva dedicação de pesquisadores a colaborações com empresas pode gerar obstáculos às atividades acadêmicas e à produção científica”, explica Renato Garcia.
A literatura científica sobre o assunto sugere que colaborações com empresas, em casos específicos, podem ser desfavoráveis para o desempenho acadêmico. Um grupo liderado pelo economista Albert Bañal-Estañol, da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, publicou em 2013 um artigo na Research Policy mostrando que, nos departamentos de engenharia de 40 universidades do Reino Unido, pesquisadores sem interação com empresas publicam menos do que aqueles com um pequeno grau de colaboração, mas níveis muito altos de interação afetam negativamente a produtividade científica. Outro trabalho, publicado em 2008 na Scientometrics pela engenheira colombiana Liney Manjarrés-Henríquez, da Universidade de La Costa, em Barranquilla, concluiu que pesquisadores que cooperavam com empresas atraem mais recursos públicos, mas sua produtividade científica só crescia quando a colaboração envolvia contratos de P&D e os recursos de empresas não ultrapassavam 15% do orçamento total do grupo.
Os dados disponíveis no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq não permitem avaliar esse tipo de detalhe, mas indicam que o benefício obtido não é ilimitado. A análise mostra que as taxas de crescimento da produtividade científica aumentam bastante em um primeiro momento, mas perdem ímpeto com o tempo. Isso foi observado mesmo em grupos com alto grau de colaboração no período analisado. “Talvez os projetos de cooperação fiquem muito complexos com o tempo e, por isso, tanto o aprendizado dos pesquisadores como a capacidade de gerar conhecimentos relevantes para as empresas tornem-se menos expressivos do que no início”, sugere Garcia.
A geneticista Mayana Zatz, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco, um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, engajou-se recentemente em um projeto em cooperação com a farmacêutica EMS, no âmbito do programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da Fundação. Zatz tentará utilizar técnicas de edição genômica para gerar embriões de porcos modificados, capazes de fornecer órgãos para transplantes em humanos. Se der certo, a intenção é criar fazendas de criação de porcos com essa finalidade terapêutica. “Em um momento de escassez de recursos públicos, a cooperação com empresas ganha importância para viabilizar o financiamento da ciência”, explica. “É a primeira parceria público-privada do nosso grupo e estamos prospectando outras.”
A pesquisa em petróleo e gás é uma das que mais promovem colaborações entre universidades e empresas, impulsionadas pela exigência legal de que as companhias, notadamente a Petrobras, invistam em P&D. “As pesquisas exigem equipamentos caros, como supercomputadores e tanques numéricos, mas há recursos e isso gera oportunidades não apenas em exploração e produção, mas também em refino, meio ambiente e materiais”, afirma o engenheiro Denis Schiozer, diretor do Centro de Estudo de Petróleo (Cepetro), da Unicamp. O centro reúne 60 pesquisadores em projetos cujos contratos totalizaram R$ 100 milhões em 2019 – 40% a mais do que em 2018 e cinco vezes maior do que há cinco anos. “Conseguimos ampliar o volume de projetos divulgando oportunidades para docentes de toda a universidade.” Ele explica que a exploração de petróleo no pré-sal criou desafios e problemas originais, que vêm gerando muitas publicações.
Problemas reais das empresas desafiam pesquisadores a gerar conhecimento novo
A produtividade elevada de pesquisadores que cooperam com empresas tem origens diversas, observa o físico Vanderlei Bagnato. “Quando um cientista se envolve com os problemas reais de empresas, lida com desafios diferentes e isso rende publicações com conteúdo novo”, diz Bagnato, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP e coordenador do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica, também um Cepid da FAPESP. A dinâmica do trabalho em cooperação também favorece o aumento da produção científica. “Sempre que eu celebro uma parceria com uma empresa, aplico parte dos recursos na formação de uma equipe de pelo menos dois ou três pesquisadores. Atualmente, tenho 22 projetos em cooperação e um batalhão de gente atuando neles. Evidentemente, isso vai ter impacto positivo no número de publicações de meu grupo de pesquisa.” Boa parte dos projetos a que Bagnato se refere está vinculada à unidade criada no IFSC-USP da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). O modelo de financiamento inclui recursos do governo federal e das empresas contratantes, enquanto a universidade contribui com laboratórios e o tempo de seus pesquisadores.
Bagnato ressalta os benefícios de colaborar com empresas, mas diz que muitos grupos, mesmo de alta qualidade, não estão preparados para atuar nas duas frentes. “A lógica é completamente diferente da pesquisa feita na universidade, onde um eventual fracasso pode até ser útil, render um aprendizado e ser descrito em um artigo científico”, afirma o físico. “A empresa espera um resultado concreto em um horizonte de tempo frequentemente curto. É preciso assumir esse compromisso para não frustrar o parceiro”, diz o físico, que sempre faz uma análise de risco dos projetos colaborativos antes de se juntar a eles. “Se o risco de fracasso for maior do que 30%, eu prefiro ficar fora.”
De acordo com Ulisses Mello, diretor do Laboratório de Pesquisas da IBM Brasil, a cooperação com universidades é fundamental para trazer diversidade ao ambiente de pesquisa das empresas. “Os produtos das empresas e das universidades são diferentes. Enquanto universidades de pesquisa existem para formar bons alunos e gerar conhecimento novo, empresas buscam criar produtos inovadores que lhes deem um futuro econômico. Quando os dois polos interagem, um desafia o outro – a universidade traz seu rigor científico e as empresas a busca de inovações que sejam escaláveis e comercialmente viáveis. Isso gera resultados melhores em ambos os lados.” No caso da IBM Brasil, Mello ressalta que parte significativa da cooperação se dá com as instituições em que seus pesquisadores se formaram, como USP, Unicamp, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A interação é fluente porque existem conexões já consolidadas.” Outra frente são instituições com afinidade com a agenda científica da empresa. “Temos interesse em nanotecnologia e cooperamos com a Universidade Federal de Minas Gerais, que tem competência no assunto.” Mello pondera que diferentes fatores influenciam a capacidade de cooperar. “Depende das características da empresa e do grupo de pesquisa. Temos uma cultura de publicar e de proteger propriedade intelectual e nos entendemos com universidades com essa mesma cultura. Mas, se a empresa só quiser criar um novo produto, a cooperação pode não ser tão produtiva.”
Ana Lúcia Torkomian, pesquisadora do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ressalta que a cooperação é fundamental para promover transferência de conhecimento para a sociedade, mas observa que ela responde por uma parte limitada do esforço para fomentar a inovação. “O que se busca na maioria dos países é incentivar o modelo da tripla hélice, em que universidades, empresas e governo atuam de forma coordenada para promover e financiar a inovação e gerar desenvolvimento”, diz. Esse regime não se limita a promover parcerias entre pesquisadores e empresas. “Engloba outras frentes. Um exemplo é a criação de incubadoras de startups e parques tecnológicos nas universidades ou em ecossistemas que facilitem o empreendedorismo inovador. Gerar empresas spin offs a partir de tecnologias produzidas por pesquisadores também é importante.”
Torkomian enfatiza a relevância do trabalho dos escritórios de transferência de tecnologia nas universidades, conhecidos no Brasil como Núcleos de Inovação Tecnológica (NIT), que procuram encorajar os pesquisadores a interagir com empresas e promover o licenciamento de tecnologias. “No Brasil, já há mais de uma centena de NITs, com graus de maturidade distintos, e eles vêm cumprindo um papel na gestão da propriedade intelectual e na interação com o setor produtivo.”
Artigos científicos
GARCIA, R. et al. How long-term university-industry collaboration shapes the academic productivity of research groups. Innovation Organization & Management. On-line. 27 jun. 2019.
MANJARRÉS-HENRÍQUEZ, L. et al. Coexistence of university-industry relations and academic research: Barrier to or incentive for scientific productivity. Scientometrics. v. 76, n. 3, p. 561-76. jul. 2008.
BANAL-ESTAÑOL, A. et al. The double-edged sword of industry collaboration: Evidence from engineering academics in the UK. Research Policy. v. 44, n. 6, p. 1160-75. jul. 2015.