Novas espécies de seres vivos podem surgir sem que a seleção natural favoreça os mais aptos e sem que barreiras geográficas isolem populações. Pelo menos no mundo virtual da simulação desenvolvida pelo físico Marcus de Aguiar, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), descrita em um artigo na edição de 16 de julho da Nature.
Especialista em teoria do caos, Aguiar é professor do Departamento de Física da Matéria Condensada, onde se estudam assuntos como cristalografia, propriedades de materiais e fenômenos ópticos. Nesse cenário é surpreendente encontrar em cima da mesa de um pesquisador o livro Why evolution is true, em que o evolucionista norte-americano Jerry Coyne brinda não especialistas com uma defesa detalhada de sua área de estudo. O interesse do físico da Unicamp nasceu de um encontro fortuito no Instituto de Sistemas Complexos da Nova Inglaterra (Necsi, em inglês), nos Estados Unidos, quando o físico Yaneer Bar-Yam lhe apresentou um problema simples de aplicação de modelos teóricos a sistemas biológicos.
No início foi como resolver um quebra-cabeça num momento de lazer, mas de volta a Campinas Aguiar continuou a estudar e a pensar em evolução e propôs a seus colegas norte-americanos um teste da teoria neutra, segundo a qual a diversidade de espécies resulta de processos aleatórios que agem sobre populações semelhantes. Foi o que fez, como parte de um projeto temático financiado pela FAPESP: em colaboração com pesquisadores do Necsi e com ajuda de sua doutoranda Elizabeth Baptestini, escreveu um programa de computador que simula a evolução de uma população virtual ao longo de centenas de gerações.
O enfoque permite fazer experimentos virtuais para testar diferentes parâmetros em busca das variáveis mais importantes para gerar diversidade biológica. Nesses experimentos, os pesquisadores podem variar a distância máxima que um organismo pode percorrer em busca de um parceiro e a extensão de divergência genética que torna um par incompatível. Testaram também a importância da capacidade de migração, ou distância que cada indivíduo percorre para estabelecer residência, da taxa de mutação e da probabilidade de cada indivíduo se reproduzir. Este último parâmetro foi incluído por sugestão de Les Kaufman, o único biólogo entre os autores do artigo. “Ele disse que não era realista que todos os integrantes da população tivessem a mesma taxa reprodutiva”, lembra Aguiar. “No nosso modelo, é possível que um organismo nunca se reproduza e outro tenha vários filhotes.”
A simulação parte de alguns milhares de indivíduos geneticamente idênticos, cujo DNA é uma série de 125 algarismos – cada um deles representa um gene e pode ter o valor de zero ou um. Cada organismo aparece como um ponto colorido que escolhe aleatoriamente um par reprodutivo dentro de limites determinados pela distância que os separa e pela semelhança genética entre eles. Os parâmetros do programa determinam também as taxas de mutação e de migração, além da chance de cada integrante da população se reproduzir. O resultado é uma diversidade genética que, passadas cerca de 300 gerações, origina espécies diferentes. “Mostramos que a especiação acontece facilmente e não depende de isolamento entre populações”, conta o físico da Unicamp.
O modelo indica que novas espécies podem surgir sem barreiras que impeçam a movimentação dos organismos, contrariando a teoria adotada pela maior parte dos evolucionistas. Aguiar demonstrou que os limites máximos da distância entre parceiros e das diferenças genéticas entre eles são essenciais para a especiação. “Só um desses parâmetros não cria diversidade suficiente”, conta. Ele viu nas simulações um padrão de distribuição e abundância de espécies semelhante ao que prevê a teoria neutra, proposta em 2001 pelo ecólogo norte-americano Stephen Hubbell: como se fosse um sorteio, o acaso facilmente dá cabo de populações pequenas e leva espécies nascentes à extinção. Mas como novas espécies surgem o tempo todo, depois de cerca de 700 gerações os pesquisadores viram surgir um equilíbrio dinâmico, onde extinções eram compensadas por especiações e o número de espécies ficava mais ou menos constante.
Por enquanto, Aguiar sugere acrescentar mais um modo de especiação à lista teórica que já inclui especiação simpátrica, quando o espaço não interfere no processo; alopátrica, quando as populações estão isoladas; e parapátrica, quando espécies surgem em regiões adjacentes. “Inventei o termo ‘especiação topopátrica’”, diz Aguiar, “porque a distância entre os indivíduos é essencial” (em grego, topos significa lugar). Curioso para saber como será recebido pelos biólogos, o físico já venceu o primeiro obstáculo: durante o processo de revisão na Nature, o trabalho foi analisado por três biólogos, que aceitaram o artigo para publicação depois de feitos alguns ajustes.
Do virtual ao real
A novidade do trabalho, que garantiu a aprovação, foi fazer uma ponte entre a teoria e o que acontece na natureza. “Só a simulação não seria suficiente para publicação na Nature”, explica o físico. Ele foi além da simulação e comparou os resultados virtuais a dados reais de distribuição e abundância de espécies que outros pesquisadores observaram na natureza – em árvores no Panamá e aves no Reino Unido. Os gráficos mostram relações muito semelhantes entre o número de espécies no espaço, mesmo com a diferença óbvia na capacidade de migração entre árvores e aves. Os autores explicam: embora sejam migratórias, as aves voltam ao lugar em que nasceram para se reproduzir. A distribuição do número de integrantes em cada espécie é semelhante quando se comparam os dados empíricos e os simulados: espécies com população de tamanho médio são mais comuns.
O modelo de Aguiar surpreende por reproduzir padrões de especiação observados na natureza embora numa representação simplificada. Todos os integrantes da população têm a mesma longevidade e o ambiente não tem áreas mais favoráveis do que as outras, por isso a probabilidade de se reproduzir não depende do genoma do organismo ou de onde ele está uma realidade diferente da observada pelos biólogos.
“Não existe organismo que não seja limitado pelo seu contexto ecológico”, afirma o evolucionista João Alexandrino, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro. Mesmo que uma rã seja abundante numa floresta, ela precisa de água para viver e se reproduzir e não vive em zonas secas ou no alto das árvores, por exemplo. Além disso, ele argumenta que, apesar do ambiente virtual da simulação ter sido construído sem marcos geográficos como rios ou montanhas, há barreiras embutidas nos organismos: a capacidade de migração muito baixa dos pontos coloridos acaba formando populações isoladas.
Os pontos de vista da física teórica e da ecologia divergem, mas o encontro de ideias acaba por destacar como o modelo de computador pode contribuir para o estudo da evolução. A coincidência entre os resultados obtidos pela simulação e alguns dados empíricos parece revelar algo real e pode servir como ponto de partida para uma reflexão sobre o que determina a diversidade de espécies. “Talvez o surgimento do padrão de diversidade de espécies observado por Aguiar seja uma propriedade inerente a sistemas biológicos”, especula Alexandrino. “A limitação de espaço restringe o número de espécies muito abundantes, mas a especiação constante produz um grande número de espécies muito raras”, reflete, transferindo para o nível das espécies um processo já conhecido para genes. Parece que se físicos, ecólogos e evolucionistas pensarem juntos podem sair daí novas compreensões sobre possíveis origens de espécies.
Artigo científico
DE AGUIAR, M. A. M. et al. Global patterns of speciation and diversity. Nature. v. 460, n. 7.253, p. 384-387. 16 jul. 2009.