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Itinerários de pesquisa

Biógrafa de documentos

Mais que uma documentalista, Elisabete Marin Ribas é guardiã do legado de intelectuais brasileiros

Bete, como é mais conhecida, no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Não me esqueço da primeira vez em que pisei no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) em abril de 2005. Como na citação do filósofo francês Jules Michelet [1798-1874], quando entrei nas “catacumbas manuscritas”, percebi que ali havia um murmúrio de algo que não pertencia à morte. A partir daí, fui tomada pelos arquivos de uma maneira que não consegui reverter. Troquei minha cidade natal por São Paulo, a sala de aula do ensino infantil e uma carreira modesta no magistério, mas bem-sucedida, pelo amor aos documentos e à pesquisa.

Nasci em Jundiaí, em 1981. Meu pai, a primeira geração de sua família a fazer curso superior, formou-se pela Faculdade de Tecnologia em São Paulo. Minha mãe, dona de uma habilidade artística impressionante, trabalhou por mais de 30 anos vendendo bananas em feiras livres de Jundiaí. Nunca tivemos oportunidade de viajar para o exterior, mas eu e minha irmã caçula sempre tivemos livros e fizemos muitos sacrifícios pelos estudos. Ela se formou em direito e foi a primeira a obter o título de doutorado em nossa família.

Assim que terminei o ensino fundamental, na segunda metade da década de 1990, vi no magistério uma possibilidade profissional e também uma forma de superar a timidez. Em 2001 entrei no curso de letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo [FFLCH-USP], na capital paulista. Como continuei morando em Jundiaí, ia e voltava de São Paulo diariamente, com um grupo de estudantes de outros cursos da USP.

Paralelamente ao meu ingresso na faculdade, fui convidada para trabalhar como assistente dos professores do ensino fundamental no colégio particular católico onde estudei em Jundiaí. Como na graduação optei por me especializar em espanhol, algum tempo depois comecei a dar aulas desse idioma para os seminaristas na escola onde trabalhava, além de inglês para as crianças da educação infantil. Um burburinho interno sobre minha formação não ser em inglês me fez colocar o cargo à disposição. O que parecia um problema, porém, se traduziu em oportunidade. A direção do colégio não quis me dispensar, mas reduziu minha carga horária: passei a trabalhar em Jundiaí por quatro dias e ter as sextas-feiras inteiras na USP.

Isso possibilitou que eu participasse mais das atividades universitárias. Em tese, minha graduação duraria quatro anos, mas ela se estendeu por sete anos. No curso de letras me deparei com disciplinas incríveis, como tupi, literatura infantil e cultura judaica, e frequentei várias delas. Ao longo desse tempo, obtive bacharelado e licenciatura em português e espanhol. Simultaneamente, trabalhava em escolas de Jundiaí.

Em 2001, no meu primeiro ano da graduação, entrei para um grupo de estudos na FFLCH sobre o escritor pernambucano Osman Lins [1924-1978], coordenado pela professora Sandra Margarida Nitrini. Quatro anos mais tarde, ela me convidou para integrar a equipe que iria organizar o acervo de Lins, depositado no IEB. Na sequência, em 2006, fui chamada pela professora Marta Rossetti Batista [1940-2007], do IEB, para ajudar a fazer o mesmo no arquivo da artista modernista Anita Malfatti [1889-1964], que também está na instituição.

Arquivo pessoalBete mostra a visitantes coleção de cartões-postais de Aracy de Carvalho, cujo acervo está depositado no IEB-USPArquivo pessoal

Ciente de minha paixão pela área, a professora Flávia Camargo Toni me ofereceu uma bolsa no curso Organização de Arquivos do IEB, o que aceitei de pronto. De 2007 a 2008 tive aulas com o triunvirato da arquivologia paulista, as professoras da USP Heloísa Bellotto [1935-2023], Ana Maria de Almeida Camargo [1945-2023] e Johanna Smit. Elas balizaram nossa escola de documentação em São Paulo.

Fui percebendo que aquela atividade tinha tudo a ver comigo, porque a arquivologia é uma área tão interdisciplinar quanto eu. Além disso, no caso do IEB, poderia aliar duas coisas que adoro: artes e literatura. Assim, entre 2005 e 2008, eu me dividi entre esses trabalhos temporários no IEB e meus dois empregos fixos como professora em Jundiaí. Mas o amor pelos documentos e pela pesquisa falou mais alto e resolvi arriscar: pedi demissão dos trabalhos na minha cidade natal e mudei em definitivo para São Paulo em 2008.

Para minha sorte, enquanto me equilibrava entre frilas, foi aberto um edital para o IEB e fui aprovada no concurso em 2009. Poucos meses depois, diante de reestruturações internas, tive minha prova de fogo ao assumir a coordenação do arquivo. Nesse momento, fazia minha pesquisa de mestrado em teoria literária e literatura comparada na FFLCH-USP sobre o Osman Lins. Assumi, então, uma grande missão: transferir o arquivo do IEB da antiga sede para o complexo Brasiliana, ambos na USP. O processo durou cerca de cinco anos e entre 2010 e 2015 foram transportados por volta de 500 mil documentos em 5 mil caixas.

Muitos dos acervos em que tive a oportunidade de trabalhar me marcaram muito. Depois de Osman Lins e Anita Malfatti, comecei a organizar com o professor Alexandre de Freitas Barbosa o arquivo do historiador Caio Prado Junior [1907-1990]. Nessa lida com os arquivos, descobri, por exemplo, outras facetas do escritor Mário de Andrade [1893-1945], que também foi gestor público e na década de 1930 dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, o equivalente a uma secretaria municipal. Outro momento memorável foi quando fui incumbida, pela primeira vez, de retirar um arquivo pessoal de uma residência. No caso, tratava-se da coleção de itens do geógrafo Milton Santos [1926-2001].

Em 2020 passei a desenvolver minha pesquisa de doutorado no Departamento de Ciência da Informação da Unesp [Universidade Estadual Paulista]. Estou investigando as políticas de incorporação e gestão de arquivos pessoais de casais de intelectuais. A ideia surgiu quando fui retirar para o IEB os documentos da designer Emilie Chamie [1927-2000] e do poeta Mário Chamie [1933-2011], e tive dificuldades em saber onde terminava um acervo e começava o outro. Em seguida, o instituto recebeu os acervos do crítico literário Antonio Candido [1918-2017] e da ensaísta Gilda de Mello e Souza [1919-2005] e me deparei com a mesma questão. Voltei o olhar para outros acervos do gênero, como os de Osman Lins e de sua segunda esposa, a escritora e publicitária Julieta de Godoy Ladeira [1927-1997], e ainda as coleções da funcionária pública Aracy de Carvalho [1908-2011] e do escritor e diplomata Guimarães Rosa [1908-1967]. Notei que essa interseção entre dois conjuntos documentais representava um problema prático que desafiava a teoria arquivística e assim nasceu a pesquisa. Devo defender minha tese no início do ano que vem.

Nos últimos anos, troquei a coordenação do arquivo pelo atendimento à pesquisa, onde fui muito feliz e pude contribuir com uma série de estudos. Hoje, estou em outra função, na qual sou responsável pelo processamento de documentos e gestão de projetos. Para mim, independentemente da posição, é uma grande honra ser uma das guardiãs da memória nacional depositada no IEB.

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