A palavra transgênico causa calafrios em algumas pessoas, temerosas de que a intervenção do homem no DNA de outras espécies espalhe genes na Natureza, de forma descontrolada, e altere as características originais de outros seres. Mas, a julgar pelos resultados de uma nova técnica de manipulação do código genético de plantas, essa preocupação pode estar com os dias contados no que se refere a espécies vegetais. Ao atuar numa estrutura celular fora do núcleo, o cloroplasto, que inviabiliza a transmissão do gene introduzido – e, conseqüentemente, do traço artificialmente criado – para outras formas de vida, o método abre caminho para a produção de plantas transgênicas ecologicamente seguras.
“Mais de 95% das espécies vegetais não têm cloroplastos em seus grãos de pólen (que contêm as células sexuais masculinas)”, diz Helaine Carrer, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), uma das pioneiras no emprego da técnica. “Portanto, a modificação genética não será transferida para outras plantas.” Duas exceções: a alfata e o gerânio (os grãos de pólen contêm cloroplastos).
Num artigo conjunto com pesquisadores alemães da Universidade de Freiburg, publicado na Nature Biotechnology de setembro, Helaine apresentou a primeira planta fértil com fruto comestível gerada por esse método: um tomate (Lycopersicon esculentum, variedade Santa Clara), cujo cloroplasto recebeu o gene aadA , que torna a planta resistente a alguns tipos de antibióticos, como espectomicina e estreptomicina. O trabalho mostra, na prática, que é possível promover alterações no genoma do cloroplasto em plantas utilizadas como alimento do ser humano, um dado novo nesse campo de estudos.
Fábricas vegetais
“Com o desenvolvimento dessa técnica, poderemos usar, de forma controlada, daqui a cinco ou dez anos, as culturas agrícolas como fábricas de proteínas, vitaminas ou vacinas”, prevê a pesquisadora da Esalq. Helaine agora se dedica a estudar o cloroplasto da cana-de-açúcar, que vai ser alvo dos primeiros experimentos com a nova técnica no próximo ano. O seqüenciamento do genoma dessa estrutura celular da planta, conduzido pela equipe da Esalq no âmbito do projeto Genoma Cana da FAPESP, está praticamente concluído – será o oitavo genoma de cloroplasto mapeado no mundo. Inicialmente, o grupo vai repetir a experiência do tomate com a cana e, no futuro, usar as folhas da planta para produzir um tipo de plástico biodegradável.
Organela encarregada pela fotossíntense, o cloroplasto é um dos três compartimentos das células de espécies vegetais que têm fragmentos de DNA – os outros são o núcleo e a mitocôndria, estrutura responsável pela produção de energia. A biotecnologia nasceu na década de 80 de procedimentos que trabalhavam com o material genético contido no núcleo das plantas, que corresponde a mais de 90% do genoma dessas espécies.
Desde então, as empresas anunciam novas variedades de produtos agrícolas geneticamente modificados em seu genoma nuclear – tomate, milho, arroz e algodão, por exemplo. Essa abordagem é a dominante. Já as pesquisas com o genoma mitocondrial engatinham e as com o material genético do cloroplasto começam a ganhar corpo.
Exigências
Até a divulgação do trabalho de Helaine, a única espécie vegetal manipulada via cloroplasto com sucesso total era uma planta não-comestível, o tabaco (Nicotiana tabacum). Por sucesso total, entende-se a obtenção de uma planta transgênica com três características: apta para se reproduzir na Natureza, fora dos meios de cultura de laboratório; capaz de apresentar, de maneira clara e inequívoca, o traço decorrente da introdução de um gene originalmente externo ao seu genoma; e sem a possibilidade de transmitir o gene que lhe foi introduzido para outras plantas por meio do pólen.
Com exceção do fumo e, agora, do tomate, nenhuma das espécies vegetais alteradas pela técnica apresentou resultados satisfatórios. Mostraram-se estéreis as versões transgênicas do arroz, batata e Arabidopsis thaliana, planta modelo para a biologia molecular, produzidas a partir dessa abordagem. Além de permitir um melhor controle sobre a dispersão de genes na Natureza, a técnica de trabalhar com o cloroplasto, segundo a pesquisadora, oferece uma vantagem adicional em relação ao método tradicional, que insere genes no núcleo: a planta alterada expressa de forma mais intensa a característica adquirida após a introdução de um fragmento de DNA nessa organela. No tomate, por exemplo, os pesquisadores constataram que mais de 5% da quantidade total de proteína solúvel encontrada nas células resultava da alteração genética. No tabaco, como já demonstrado, pode chegar a 40%.
Pela técnica convencional, segundo a pesquisadora, esse índice gira em torno de 1% e, em alguns casos, os resultados podem ser quase totalmente inócuos. “Às vezes, o gene inserido no genoma nuclear simplesmente não é expresso pela planta e permanece silencioso (inativado)”, explica Helaine. É como se esse organismo não tivesse sido alvo de nenhuma manipulação genética, inconveniente que, aparentemente, não acontece com as modificações executadas no cloroplasto. O alto padrão de expressão proporcionado pelo método alternativo se deve, provavelmente, ao fato de haver em torno de 10 mil cópias do genoma do cloroplasto em cada célula, o que amplificaria os resultados da alteração genética. Já o genoma do núcleo celular é único, sem réplicas.
Pioneirismo
Não é exagero dizer que a pesquisadora paulista é um dos expoentes mundiais na nova técnica. Durante seu doutorado nos Estados Unidos, Helaine fez parte do grupo de Pal Maliga, do Instituto Waksman da Universidade Rutgers, Estados Unidos, que, no início dos anos 90, deu os passos iniciais com a nova técnica. De modo semelhante ao que foi feito com o tomate, a equipe de Maliga conseguiu inserir genes em cloroplastos do tabaco, demostrando a viabilidade da então inédita abordagem. A contribuição da pesquisadora nesse projeto rendeu-lhe participação na patente internacional do uso comercial da técnica. Hoje, o nome da pesquisadora da Esalq consta de quatro patentes relacionadas ao método, a mais recente delas ligada ao emprego da engenharia genética no cloroplasto do tomate.
Foi durante sua temporada no Instituto Waksman que Helaine conheceu Ralph Bock, hoje pesquisador da Universidade de Freiburg e co-autor do artigo na Nature Biotechnology. Em 1997, depois de ambos terem retornado aos seus países de origem, a brasileira e o alemão iniciaram a parceria que levou ao desenvolvimento do tomate geneticamente modificado via cloroplasto. Foram três anos de trabalho conjunto.
A nova técnica exige paciência e dedicação dos pesquisadores para dar resultados. Primeiro, eles têm de desenvolver um meio de cultura eficiente para a regeneração da planta a partir de uma única célula em laboratório, num processo que costuma consumir meses. O passo seguinte é analisar as informações fornecidas pelo seqüenciamento do genoma do cloroplasto da espécie vegetal a ser modificada. Quando se pretende atuar nessa organela celular, esse tipo de dado é indispensável.
As etapas
Por ser pequeno (no máximo 180 mil pares de bases, em formato circular), o genoma do cloroplasto tem poucos genes (cerca de 130), todos muito próximos uns dos outros. Há pouco espaço vazio no interior do genoma da organela onde um novo gene pode ser inserido sem alterar a estrutura e o funcionamento dos demais genes. A saída é encaixar o novo gene no ínfimo espaço que separa dois genes originais. A introdução do fragmento externo de DNA no cloroplasto é feita por um método chamado de biolística: microscópicas partículas de ouro ou tungstênio, revestidas com o gene a ser inserido, são bombardeadas contra folhas da planta. Depois de penetrar na célula e alcançar o cloroplasto, o gene se aloja no local previsto do genoma. Parece simples e fácil, mas, de cada 100 tentativas, no máximo cinco funcionam.
A etapa final é confirmar se o gene efetivamente foi incorporado pelo genoma do cloroplasto. Quando isso ocorre, a espécie alterada passa a apresentar a característica decorrente da inserção do fragmento de DNA. No caso do tomate elaborado pela Esalq e Universidade de Freiburg, as folhas bombardeadas foram cortadas em pedaços e estes colocados num meio de seleção, uma solução com antibióticos. Os fragmentos da planta que sobreviveram nesse meio, obviamente, incorporaram o gene que lhes conferia essa resistência. Os que morreram, conseqüentemente, não receberam a modificação. “Os fragmentos de folha resistentes aos antibióticos foram regenerados e cultivados em laboratório até gerar uma planta apta a se reproduzir”, explica Helaine.
O Projeto
SucEST – projeto de sequenciamento de EST de cana-de-açúcar (nº 99/02860-8); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenadora Helaine Carrer – Esalq/USP; Investimento R$ 49.954,45 e US$ 207.341,15