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Resenhas

Um Bocage à flor do texto

Biografia traz à luz o poeta português, incluindo a passagem pelo Brasil

Biografias estão na moda. Quem foi à 18ª Bienal do Livro em São Paulo tinha escolha farta: livrões e livrinhos, biografados daqui e dali. De Edward Said a Adoniran Barbosa, o gênero se oferecia para todos os gostos e para todos os bolsos.

Não deixa de ser curioso que esse interesse coincida com a tão apregoada morte do sujeito. Será que – morto o sujeito – a biografia acena com sua ressureição?

Pode bem ser: ao contrário da ficção, no caso das personagens que povoam uma biografia, qualquer semelhança não é mera coincidência. Neste gênero, o pacto autor/leitor endossa a promessa de que a personagem de papel e tinta seja o duplo de uma figura de carne e osso. Mas também pode ser que, de tanto girar em torno de si mesma, a ficção contemporânea mais prezada pela crítica tenha enfastiado o leitor: consumidor habitual de aventuras, o respeitável público busca, na biografia, aquilo que a literatura lhe tem negado.

É no horizonte desse intrigante (e bem-vindo) florescimento do gênero biográfico,que Adelto Gonçalves publica Bocage – O perfil perdido. Fruto de pesquisa universitária, o texto traz esta marca de origem à flor da pele. No caso, à flor do texto.

O caso é que há vários Bocages: a começar pelo muito conhecido do anedotário popular, pornográfico e grosseirão. E tantos outros, como o êmulo de Camões, que segue as pegadas do mestre ao redor do mundo, ou ainda o sócio de agremiações poéticas convencionais e conservadoras.

Mas, qualquer que seja o Bocage de cada um de nós, ele convive com todos os outros na pessoa física de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), cidadão português que viveu numa época em que seu país se atolava em contradições. O Portugal setecentista quase sempre ficava na contramão da modernização européia, ainda que às vezes partilhasse efemeramente da vertente iluminista. Medidas legais e episódios políticos evocados no livro ilustram o tímido vai-e-vem da modernização portuguesa, cujos retrocessos acabaram levando o poeta para a cadeia.

Com muita competência, Adelto Gonçalves mergulha seu leitor nesse clima de época, cuja reconstituição é, com certeza, verossímil. E da verossimilhança a envergadura de sua pesquisa garante sua veracidade. Contribui para esse efeito a farta bibliografia que salpica as páginas do livro com abundantes rodapés.

Na tentativa de comprovar o perfil prometido de seu biografado, o autor não poupa o leitor de detalhes, citações, referências cruzadas, digressões eruditas, polêmicas com outros pesquisadores. Mas o caso é que nem sempre o leitor aprecia este esforço. Entre tese e livro, entre o fim da pesquisa e a publicação dos resultados, abre-se um leque de opções sobre o qual o pesquisador precisa meditar profundamente. Pois nem tudo que ele garimpou merece ser publicado, sobretudo quando o produto final da pesquisa é uma biografia cuja publicação comercial tem um olho no grande público. Num gênero narrativo como a biografia, o vai-e-vem exagerado entre fontes representa digressões nem sempre bem-vindas. Num de seus belos sonetos, Olavo Bilac aconselha o jovem poeta que Não se mostre na fábrica o suplício/do mestre. E natural, o efeito agrade,/sem lembrar os andaimes do edifício.

Talvez o conselho sirva também para o trabalho do pesquisador. Não é, no entanto, apenas na formatação de sua biografia que o livro de Adelto Gonçalves pode desencontrar-se de um público menos cioso de minúcias. Ele também pode tropeçar em leitores que esperam uma relação menos ingênua e linear entre vida e obra de um poeta.

A perspectiva da qual esta biografia é escrita toma a obra de Bocage (e de alguns de seus contemporâneos) como fiança biográfica e vice-versa. Por um lado, esta interpretação poderia sustentar-se por se tratar de um poeta (pré-romântico) para quem a poesia é (ainda) um gênero sujeito a uma escrita fortemente normatizada, e que não poucas vezes serve de capital social e moeda de prestígio. Mas não é por aí que envereda a pesquisa de que resulta este Bocage – O perfil perdido.

O caminho escolhido pelo pesquisador é distinto: o aporte de algumas informações novas, a retificação de outras e, para o leitor brasileiro, uma atração extra: detalhes da passagem do poeta pelo Rio de Janeiro e a presença de um antepassado de Bocage nas forças portuguesas que lutaram contra os franceses no começo do século 18, quando estes invadiram a então colônia portuguesa que éramos.

Marisa Lajolo é professora de Teoria Literária na Unicamp, onde coordena o Projeto Memória de Leitura

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