O maior instrumento de pesquisa científica e tecnológica do país deverá ganhar uma versão maior e mais potente até 2015. O projeto para uma nova fonte de luz que terá soluções inovadoras na sua construção está quase finalizado por pesquisadores do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) localizado em Campinas, no interior paulista. Aberto a pesquisadores de instituições acadêmicas e de empresas, brasileiros ou estrangeiros, com estudos ou projetos tecnológicos que contemplem a necessidade de desvendar, por meio do uso da radiação síncrotron, a estrutura atômica de materiais como polímeros, rochas, metais, além de proteínas, moléculas para medicamentos e cosméticos, ou mesmo imagens tridimensionais de fósseis ou até de células. Essa radiação é gerada por elétrons que são produzidos num acelerador e inseridos dentro de um anel metálico com 93 metros (m) de circunferência – o novo terá 460 m de circunferência – em meio a um ambiente de ultra-alto vácuo. Eles ficam circulando quase na velocidade da luz e quando passam por ímãs ao longo do anel sofrem uma deflexão provocada pelo campo magnético. Como consequência dessa alteração, fótons são emitidos resultando na chamada luz síncrotron. São ondas eletromagnéticas como frequências de raios X, ultravioleta e até de luz visível – esta última pouco usada em experimentos científicos – que são aproveitadas pelos pesquisadores no LNLS em 14 estações de trabalho ou linhas de luz espalhadas em pontos do anel.
A nova fonte já ganhou o nome de Sirius – escolhido entre sugestões de funcionários – em referência à estrela mais brilhante no céu noturno. A construção desse instrumento é importante porque o atual está se tornando obsoleto. O Síncrotron brasileiro completa 13 anos de serviço em 2010, e as exigências científicas e tecnológicas indicam a necessidade de um equipamento mais atualizado. “A evolução é necessária porque a ciência, no fundo, é competição. As perguntas importantes e relevantes, nessas áreas atendidas pelo Síncrotron, são sempre novas, porque parte das antigas já foi respondida. Então, as novas exigem equipamentos mais sofisticados”, diz o físico Antônio José Roque da Silva, diretor do LNLS desde julho de 2009 e professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). Uma das vantagens de um laboratório como o Síncrotron é o caráter interdisciplinar com pesquisadores em biologia, ciências dos materiais, tecnologia, energia e paleontologia. “Com o LNLS, o país pode competir em várias áreas e utilizar o mesmo laboratório, simultaneamente, ao longo do ano inteiro para fazer seus experimentos.”
Oprojeto do novo Síncrotron está sendo totalmente desenhado no Brasil para ser um laboratório de terceira geração. O atual é de segunda. Hoje existem cerca de 50 fontes de luz síncrotron no mundo, sendo 16 de terceira geração que começaram a funcionar a partir de 1994. Elas são caracterizadas por possuírem uma radiação mais brilhante, com maior quantidade de luz gerada e baixa emitância, unidade de grandeza usada para determinar o tamanho e a divergência (espalhamento) do foco da fonte de luz. “Quanto menor a emitância, maior é a possibilidade de focalização do feixe produzido”, explica o engenheiro civil e físico Ricardo Rodrigues, diretor técnico do projeto da nova fonte, que participou da construção da primeira, inaugurada em 1997. A Sirius está sendo projetada para ter 1,7 nanômetro-radiano (nm.rad), enquanto a atual possui 100 nm.rad. Isso significa maior brilho num feixe de radiação menor e com ângulo de abertura também menor. Ela deverá ser uma das fontes mais brilhantes do mundo. O Synchrotron Soleil, por exemplo, construído na cidade de Saint-Aubin, na França, inaugurado em 2006, tem emitância de 3,7 nm.rad e o Diamond, localizado em Oxfordshire, na Inglaterra, que começou a funcionar em 2007, possui 2,7 nm.rad.
“Das 50 fontes de radiação síncrotron no mundo apenas 30 são abertas a pesquisadores de fora da instituição a que pertence o laboratório. São 11 na Europa, 7 nos Estados Unidos, 10 na Ásia, 1 na Austrália e 1 na América do Sul, que é o LNLS. Se a segunda fonte não for construída, o Brasil e a América do Sul vão desaparecer do mapa da radiação síncrotron do mundo’’, diz o físico francês Yves Petroff, diretor científico do LNLS desde dezembro de 2009 e responsável pelos objetivos científicos do projeto da nova fonte. Dos 1.656 usuários do LNLS em 2009, 20% eram de países latino-americanos e, desse total, 14% argentinos. Desses estudos resultaram cerca de 250 artigos publicados em revistas científicas.
“Países menores como Espanha, Coreia do Sul e Taiwan estão construindo fontes de terceira geração”, diz Petroff. Com 73 anos, ele tem um longo percurso em laboratórios síncrotrons do mundo. Foi diretor-geral do European Synchrotron Radiation Facility (ESRF), em Grenoble, na França, de 1993 a 2001, além de ter trabalhado em laboratórios semelhantes nos Estados Unidos. Também assumiu as diretorias científicas do Laboratório para Utilização da Radiação Eletromagnética (Lure, na sigla em francês) e do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês). Participa de vários comitês científicos de síncrotrons, inclusive o do LNLS desde a fase de implantação em 1988. “É interessante notar que o número de usuários do Departamento de Energia em quatro síncrotrons nos Estados Unidos cresceu 40%, de 6 mil para 8.400, entre 2000 e 2008, enquanto os usuários do francês ESRF cresceram 36% entre 2003 e 2009”, diz. “Grande parte desse crescimento se deve ao uso dessa radiação para estudos de estruturas biológicas. Todas as companhias farmacêuticas, por exemplo, utilizam as linhas de luz para esse fim.” Ele lembra também que recentemente a exploração de específicas propriedades do raio X produzido pelas máquinas síncrotron estão permitindo obter imagens tridimensionais de qualquer objeto com resolução abaixo do micrômetro (um milímetro dividido por mil) como em estudos de paleontologia, arqueologia e meio ambiente. “Convidei o Yves Petroff para reestruturarmos a divisão científica do LNLS e para ele ajudar nos objetivos da ciência que se quer fazer com a nova fonte e as novas linhas de luz que estão ficando cada vez mais sofisticadas”, diz Roque.
Ímãs permanentes
Além de atingir as especificações exigidas de uma fonte de luz síncrotron de terceira geração, o projeto contempla uma profunda redução no consumo de eletricidade. Para isso novas soluções já estão sendo testadas dentro do LNLS utilizando tecnologias inovadoras. A primeira é a adoção de ímãs permanentes, uma novidade mundial para esse tipo de laboratório. Esses ímãs serão utilizados na construção dos dipolos, responsáveis pela produção do campo magnético que serve para desviar a trajetória dos elétrons no interior do anel. Assim formam-se os fótons, chamados de luz síncrotron, captada e filtrada, entre as várias ondas eletromagnéticas presentes no feixe nas linhas de luz. Esses dipolos hoje funcionam por meio de eletroímãs, que são formados por metais envoltos por fios que quando recebem corrente elétrica se transformam em ímãs. Eles exigem uma série de outros instrumentos acoplados como sistema de refrigeração e bobinas que gastam muita eletricidade. “Os ímãs permanentes são semelhantes aos ímãs de geladeira”, compara Rodrigues. Eles não necessitam de energia elétrica para funcionar e são vendidos comercialmente no mundo inteiro. São feitos de ferrite, um material barato, e de ligas com neodímio, ferro e boro. Até agora existe apenas uma máquina no mundo, um acumulador de antiprótons, no Fermilab, nos Estados Unidos, que funciona com ímãs permanentes. “Ninguém ainda teve coragem de fazer isso em síncrotrons, embora o conhecimento desses materiais tenha avançado bastante”, diz Rodrigues. A redução do consumo de energia pesa muito nessa decisão. Com os ímãs permanentes espera-se uma economia de 6,5 gigawatts-hora (GWh) por ano – cerca de R$ 4,5 milhões por ano.
Outra inovação desenvolvida no Síncrotron, em colaboração com o laboratório francês Soleil, vai servir tanto à nova quanto à atual fonte. É um sistema de radiofrequência (RF) radicalmente diferente, que irá economizar mais de R$ 1 milhão em energia elétrica por ano. A conta de luz atual do laboratório gira em torno de R$ 3,5 milhões anuais. O sistema RF é o responsável por repor a energia perdida pelos elétrons na forma de luz síncrotron. Embora contando com o que há de mais avançado em tecnologias, a quase totalidade desses laboratórios no mundo funciona com uma válvula eletrônica de quase um metro de comprimento que custa US$ 150 mil a unidade. As válvulas eram muito usadas em aparelhos eletrônicos antes do aparecimento comercial dos transistores de potência. No caso dos síncrotrons, elas são fabricadas especialmente na Inglaterra para suprir a alta energia usada para amplificar a frequência de 476 mega-hertz (MHz). Essa onda eletromagnética, em vez de se expandir no espaço, como numa estação de rádio, por exemplo, é aprisionada dentro de câmaras, chamadas de cavidades ressonantes, ao longo do anel. A fonte atual utiliza dois desses geradores de RF de 30 quilowatts (kW) cada um. “Até agora a única maneira de juntar altas potências e altas frequências era essa válvula”, diz o técnico eletrônico Claudio Pardine, coordenador do laboratório de radiofrequência do LNLS.
Pardine, em colaboração com os franceses do Soleil, desenvolveu o novo sistema chamado de amplificador de estado sólido, formado por centenas de pequenas caixas eletrônicas com potência de 250 watts. “Já em 2001, o LNLS foi o primeiro laboratório do mundo a substituir a válvula pelo amplificador de estado sólido em um sistema de um kW para um injetor de luz síncrotron”, diz Pardine. As vantagens são inúmeras, mas a maior é mesmo a economia de energia elétrica. “Para suprir os 30 kW, o sistema tradicional com válvula precisa de uma potência de 170 kW; o novo, em estado sólido, necessita de 60 kW.” Atualmente, o sistema de RF utiliza quase 1,8 gigawatt-hora (GWh) por ano que representa um gasto com eletricidade referente ao equipamento de RF de R$ 1,3 milhão no ano. Com a implantação do novo sistema, a economia vai ser de 50%, sem contar a economia em ter que trocar a válvula a cada cinco anos. “Não ficamos reféns do fabricante. A manutenção torna-se mais fácil e barata.”
O francês Soleil foi o primeiro a instalar um amplificador de estado sólido de várias dezenas de quilowatts. “Nós construímos alguns componentes desses amplificadores no LNLS para eles em 2005”, lembra Pardine. “Vendemos a preço de custo as peças para fazer protótipos que eles e nós desenvolvemos em parceria.” Pardine tem como mestre o pesquisador chinês Ti Ruan, que hoje trabalha no Soleil e era professor da Universidade de Paris. Ruan convenceu os diretores do laboratório francês, durante a construção, a utilizarem o amplificador de estado sólido. Outro grande laboratório, o Diamond, na Inglaterra, inaugurado em 2007, preferiu a válvula. Pardine ressalta que a ideia de usar os amplificadores de estado sólido é antiga, mas só agora é possível pela evolução dos materiais e equipamentos eletrônicos. Para desenvolver e construir as novas torres de RF, ele conseguiu um financiamento da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), num programa para equipamentos de energia elétrica, no valor de R$ 1 milhão.
Chão firme
Para funcionar de forma exemplar, a Sirius precisará de uma superestabilidade do grande anel de armazenamento para que os elétrons não desviem mais que um milésimo de milímetro (micrômetro) da órbita projetada. A mesma superestabilidade vale também para as linhas de luz. Qualquer variação ou dilatação dos metais pode perturbar o feixe de elétrons. O equipamento de ar condicionado, por exemplo, ao variar a temperatura em meio grau dilata o suporte de concreto e aço do anel em micrômetros, condição indesejável para os elétrons. “Há pequenas variações do solo imperceptíveis em condições normais, mas quando se trabalha em medidas de micrômetros elas se tornam muito importantes”, diz Ricardo Rodrigues. O projeto prevê um superpiso enrijecido que terá 200 metros de diâmetro e 1 metro de espessura, sem emenda. “Ninguém fez esse piso no Brasil. São 20 mil metros cúbicos de concreto que precisam ser produzidos em uma semana, durante 24 horas por dia. As camadas vão sendo colocadas uma sobre a outra e a cura (secagem) do material não pode ser rápida.” São camadas úmidas que não podem curar enquanto outras não forem adicionadas e por isso vão receber gelo ao longo do processo. Uma logística especial deverá ser montada, com a instalação de uma fábrica de concreto e outra de gelo ao lado da construção da nova fonte.
O orçamento inicial previsto para a Sirius é de aproximadamente R$ 400 milhões distribuídos ao longo de seis anos. Dinheiro que deverá ser bancado de forma independente pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) ou em parceria com outras instituições federais. O MCT possui um contrato de gestão com a Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), uma organização social que mantém o Síncrotron e mais dois outros laboratórios no mesmo campus do LNLS, o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), um ex-centro do Síncrotron que ganhou autonomia, e o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), que também se valem da radiação síncrotron para alguns de seus experimentos. Todos os três estão sob a coordenação do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM), que em junho passa a ser comandado pelo professor Walter Colli, ex-professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP).
À frente do projeto, o LNLS tem uma equipe experiente que já sabe como se constrói um síncrotron. Ricardo Rodrigues foi um dos três primeiros pesquisadores contratados em agosto de 1986 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na época o gestor do LNLS, para construir o laboratório. “Eram o Cylon Gonçalves da Silva, como diretor, o Aldo Craievich, para cuidar do uso do laboratório pelos pesquisadores e eu para cuidar do projeto e construção que levou 10 anos”, lembra Rodrigues. Para ele não foram somente os constantes contingenciamentos de verbas que atrasaram o projeto. “Não vou jogar toda a culpa no orçamento. Adquirir a experiência e o conhecimento foi demorado. Acho que usamos o melhor método para aprender alguma coisa. O pessoal contratado, um engenheiro ou um físico que acabava de sair da universidade, recebia o seguinte recado: ‘Você vai ter que fazer isso. Vamos ajudar no que puder, vamos trabalhar juntos.’ Ninguém foi fazer um doutorado, um curso especial. Nós mandávamos fazer viagens, as pessoas iam visitar outros laboratórios e perguntavam: ‘Como é que você faz?’”, diz Rodrigues.
A física Liu Lin foi uma dessas profissionais que fizeram parte da equipe inicial. “Em 1985, quando eu fazia mestrado no Instituto de Física da USP, em São Carlos, trabalhei no projeto da rede magnética do anel onde fiz simulações da dinâmica do feixe de elétrons. Depois estive na equipe que ficou por três meses no Stanford Linear Accelerator Center (Slac), da Universidade de Stanford, na Califórnia, nos Estados Unidos”, diz Liu. “Aprendemos muito porque lá eles fazem os instrumentos e nós tivemos a oportunidade de projetar uma máquina fictícia que nos fez conhecer a física dos aceleradores”, diz Rodrigues. Esse mesmo propósito de construir instrumentos e sistemas que esteve na construção do primeiro anel permanece para o próximo. “Nós projetamos e compramos uma série de coisas, mas financeiramente apenas 16% da primeira máquina foi importado.”
Atual líder do Grupo de Física de Aceleradores do LNLS, Liu estuda a dinâmica dos elétrons sob a ação do campo eletromagnético. “Projetamos esses campos para assegurar que um feixe intenso de elétrons com alta energia possa ficar armazenado de maneira estável produzindo luz síncrotron durante várias horas. Para conseguirmos isso precisamos especificar, entre outros, uma rede magnética que vai definir todas as propriedades do feixe de luz síncrotron produzido”, diz Liu. Para Rodrigues, o projeto está quase finalizado e a perspectiva é que a construção demore metade do tempo da primeira máquina. “Agora não é urgente formar pessoal, o núcleo de pessoas que coordenam o projeto ainda está jovem.”
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