Imprimir PDF Republicar

entrevista

Bruno Geloneze: Só injeção não resolve

Endocrinologista da Unicamp diz que novos fármacos contra a obesidade são bons, mas dependem de dietas e exercícios para produzir benefícios duradouros

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP Para Geloneze, os medicamentos baseados nos análogos do hormônio GLP-1 são seguros, mas só devem ser usados com acompanhamento médicoLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Especialista nas chamadas doenças metabólicas, desordens associadas à forma como o organismo processa as proteínas, os carboidratos e as gorduras dos alimentos, o endocrinologista Bruno Geloneze, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apoia, com ressalvas, o emprego de uma nova classe de medicamentos que ganhou notoriedade no controle da obesidade: os análogos do GLP-1. Hormônio produzido naturalmente no intestino e, em menor quantidade, no cérebro logo após as refeições, o GLP-1 estimula a produção de insulina, reduz os níveis de glicose no sangue quando aumentados e provoca a sensação de saciedade.

“A medicação sozinha não resolve o problema da obesidade. Como em qualquer regime para perda de peso, ela faz perder gordura, mas também músculo, o que não é desejável”, comenta o pesquisador. “Ela deve ser usada para viabilizar um projeto de mudança de comportamento dietético e, de preferência, com algum grau de atividade física.” Esse grupo de medicamentos, concebido inicialmente para o tratamento do diabetes, contém versões sintéticas do GLP-1.

Por serem muito parecidas com o hormônio natural, as moléculas presentes nos fármacos estimulam os mesmos efeitos do GLP-1 – mas com uma grande diferença. Elas permanecem funcionais por mais tempo que o hormônio natural, que atua entre 10 e 15 minutos no organismo. De acordo com sua formulação e dosagem, os medicamentos baseados nos análogos do GLP-1, como a liraglutida e a semaglutida, mantêm-se ativos por dias ou até uma semana.

Nesta entrevista, concedida no Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, Geloneze comenta os benefícios e riscos do emprego da nova classe de fármacos.

Os efeitos dos análogos do GLP-1 são muito diferentes dos promovidos por medicamentos mais antigos usados no controle da obesidade?
Os medicamentos mais antigos não estavam de acordo com a própria definição atual de obesidade, que é uma doença neuroquímica, crônica e recidivante. Ou seja, para tratá-la, é preciso promover uma intervenção que tenha três tipos de efeito: atue no sistema nervoso central, possa ser usada por muito tempo e, assim, evite a volta da obesidade. Alguns medicamentos do passado eram potentes, mas não podiam ser usados cronicamente porque causavam efeitos colaterais muito intensos ou dependência química. A pessoa se viciava no fármaco. Outros podiam ser administrados por um tempo maior, mas não preveniam a retomada do ganho de peso. O grande sucesso dessa nova classe de remédios é atacar essas três questões com eficácia.

Mas os estudos com essas novas drogas ainda não são muito recentes para embasar seu uso prolongado?
Há pessoas que usam esses remédios há mais de 10 anos, desde o momento de seu lançamento. As primeiras versões desses fármacos foram concebidas para controlar o diabetes do tipo 2, mas acabaram sendo usadas primeiramente de forma informal, e depois de maneira mais regulada, para combater a obesidade por promover alguma perda de peso. Alguns trabalhos científicos analisaram a repercussão cardiovascular dessas drogas por cinco anos. Um estudo controlado que observa os efeitos de uma droga por dois anos já pode ser considerado de longo prazo. No passado, os efeitos dos primeiros fármacos usados para o controle da obesidade, que não eram da classe dos análogos do GLP-1, foram acompanhados por apenas semanas ou alguns meses. Diante desse quadro, podemos falar que o uso crônico dos análogos do GLP-1 é seguro.

Por que eles seriam mais eficazes e seguros?
Porque têm uma atuação muito específica, enquanto os medicamentos antigos, baseados geralmente na ação de neurotransmissores, como a serotonina e a noradrenalina, tinham efeitos mais difusos. Esses remédios mais velhos agiam nos centros da fome e da saciedade no cérebro, mas também em muitos outros locais indesejados. Isso acabava provocando efeitos colaterais e dependência química, independentemente de a droga produzir ou não a perda de peso.

Os pacientes que tomam esses novos fármacos dizem que estão sem fome na maior parte do dia. Sentem-se sempre meio satisfeitos

Como é a atuação do hormônio GLP-1 no organismo?
Quando comemos, o alimento passa no tubo digestivo e produzimos GLP-1 por três razões. A primeira é para mandar um sinal às células do pâncreas produtoras de insulina de que os nutrientes estão chegando. Esse sinal não aumenta em si a produção de insulina, apenas deixa as células produtoras desse hormônio extremamente sensíveis a mínimas variações da glicemia, da quantidade de açúcar no sangue. A segunda é para desacelerar o esvaziamento gástrico, um mecanismo que dá uma sensação de plenitude e, consequentemente, de saciedade. O terceiro motivo é mandar uma mensagem ao cérebro a fim de parar de comer.

Como é enviada essa mensagem?
O GLP-1 circula pelo sangue e pelo nervo vago [estrutura craniana que controla as funções vitais, como frequência cardíaca, pressão arterial, respiração e movimentos do trato digestivo, e os reflexos, como tosse, vômito e deglutição] e chega diretamente no hipotálamo. Nessa região, a barreira hematoencefálica, que separa o sangue e o cérebro, deixa apenas alguns nutrientes passarem, mas é um pouco mais permeável à entrada do GLP-1. Então, quando chega ao cérebro, o hormônio atua especificamente no centro da fome e da saciedade, diferentemente dos neurotransmissores que eram estimulados por medicamentos mais antigos.

Os análogos do GLP-1 são moléculas sintéticas. Eles agem da mesma forma que o hormônio produzido naturalmente pelo corpo humano?
Sim. A grande diferença é que os análogos do GLP-1 agem por muito mais tempo no organismo do que o hormônio natural, que tem uma meia-vida de uns 10 minutos. Os remédios mais antigos, de outras classes, tinham efeitos que duravam no máximo seis horas. Os análogos do GLP-1 atuam no organismo por um período que vai de 24 horas a 144 horas, sendo os efeitos da liraglutida menos prolongados do que os da semaglutida. Esses medicamentos só podem ser usados pelas pessoas se prescritos por médicos e administrados na forma de uma injeção sob a pele que o paciente aplica nele mesmo. Eles estimulam o sistema nervoso durante todo o tempo em que estão ativos e fazem com que a pessoa tenha uma discreta sensação de saciedade o dia todo. Os pacientes que tomam esses fármacos dizem que estão sem fome na maior parte do dia. Sentem-se sempre meio satisfeitos. Quando começam a comer, experimentam uma saciação precoce e uma diminuição da fome em si. Alguns chegam até a reclamar que sentem menos desejo de consumir bebidas alcoólicas, o que também é bom para a perda de peso, pois o álcool é muito calórico. O principal efeito colateral dessas medicações é diminuir um pouco a velocidade do esvaziamento gástrico, gerando desconforto abdominal e náuseas. Isso incomoda algumas pessoas.

Esse seria o principal efeito colateral desses remédios?
É um efeito colateral leve, suportável. A grande maioria das pessoas se acostuma e convive bem com isso. Se não for suportável, diminuímos a dose e tentamos achar um ponto de equilíbrio em que a medicação possa trazer benefício com pouco efeito colateral. Entre 5% e 10% das pessoas não toleram esses medicamentos e não vão poder usá-los. Mas isso ocorre com qualquer fármaco. Uma vantagem dessa classe de remédio é que podemos retirar imediatamente o fármaco e o efeito colateral desaparece em no máximo uma semana.

É seguro parar de tomá-los por algum tempo e depois retomar seu uso?
Sim. Eles não criam dependência química e seu uso não altera a produção natural do GLP-1. Não há indícios de que a administração desses fármacos sintéticos faça com que o organismo produza uma quantidade maior ou menor do GLP-1 natural quando esses remédios deixam de ser empregados. Da mesma forma, esses fármacos também não perdem eficácia se seu uso for interrompido e depois retomado. Eles podem ser usados de forma intermitente. Mas não gosto de classificá-los como um tratamento crônico. Prefiro dizer que eles podem fazer parte do cuidado crônico com a questão da obesidade. Se um paciente está mantendo um bom controle de seu peso em um determinado mês, fazendo mais exercícios e seguindo uma dieta equilibrada, é possível não usar o remédio nesse período e só retomá-lo se ele vier a dar uma descuidada no peso. É preciso cuidado com o uso intermitente, pois ele pode estimular os pacientes a experimentarem o chamado efeito sanfona: emagrecer quando estiverem tomando o remédio e engordarem quando pararem. Isso não é bom para a saúde.

Boa parte dos estudos com essas novas drogas conta com apoio da indústria farmacêutica que os produz. Isso não pode levar as pessoas a desconfiarem dos resultados desses trabalhos?
O Brasil participa ativamente de estudos multicêntricos internacionais com essas novas drogas. Eu mesmo participei de uma das pesquisas internacionais sobre os efeitos da liraglutida. Trabalhamos sempre no sistema duplo-cego. Ou seja, não sei se estou dando placebo ou remédio e o paciente também não sabe o que está recebendo. Há ainda auditoria das agências regulatórias, como a FDA [que aprova e supervisiona o uso de remédios e alimentos nos Estados Unidos], sobre como esses estudos são feitos. Esse processo não é imaculado, sem falhas, mas por que uma agência beneficiaria um fabricante em detrimento de outro? Existe uma rede de controle que faz com que os estudos, mesmo patrocinados pelas empresas, possam ser confiáveis, sim. Eles são apoiados pelos laboratórios no sentido do custeio. Mas tudo é muito auditado. Existe alguma falha? Se existir, alguém vai ter que descrevê-la e isso terá repercussões. Muitas vezes um laboratório faz a fiscalização do outro, do seu concorrente. Quando pode haver manipulação, é na hora de divulgar a informação para o público leigo, dando mais destaque para algo e tentando jogar para baixo do tapete um detalhe não tão bom.

Os medicamentos mais antigos não estavam de acordo com a própria definição atual de obesidade, que é uma doença neuroquímica, crônica e recidivante

No ano passado, houve uma proposta de levar a liraglutida, cuja patente está caindo neste ano, para o Sistema Único de Saúde, o SUS. O senhor seria a favor dessa medida?
Em princípio, não sou a favor de colocar a medicação no SUS sem um projeto estruturado de atendimento. Sozinha, ela não emagrece ninguém de forma saudável. Como em qualquer regime para perda de peso, a medicação faz perder gordura, mas também músculo, o que não é desejável. A pessoa pode ainda ficar desnutrida se não for bem orientada. O remédio deve ser usado para viabilizar um projeto de mudança de comportamento dietético e, de preferência, com algum grau de atividade física para manter os músculos. Então, se o SUS for oferecer o medicamento, tem de oferecer junto um processo de educação dietética comportamental. Isso, hoje, não existe.

Como o senhor avalia o arsenal de medicamentos disponíveis para controlar a obesidade?
No Brasil, só há quatro tipos de medicamentos aprovados: o orlistate [antigo Xenical]; a sibutramina, inicialmente desenvolvida como um antidepressivo; um composto único que junta dois fármacos usados há muito tempo, um contra o tabagismo [bupropiona] e outro contra o alcoolismo [naltrexona], e atua na produção da serotonina; e três análogos do GLP-1, a liraglutida, a semaglutida e a tirzepatida. Se tomado com a refeição, um comprimido de orlistate bloqueia a absorção de até 30% da gordura ingerida. Mas ocorre muita eliminação de gordura e pode haver efeitos adversos, como flatulência e diarreia com fezes e gordura. Não é algo perigoso, mas desagradável. Há perda de peso, mas pequena, de menos de 5%. A sibutramina é um inibidor da recaptação de serotonina. Reduz um pouco o apetite, mas não é indicado para pessoas com problemas cardiovasculares. A bupropiona e a naltrexona são medicações que atuam mais no sistema chamado mesolímbico, ligado à sensação de craving, ao vício, à fissura de fazer algo. Essa combinação tem de ser usada com cuidado, pois ela tem repercussões sobre todo o cérebro e trata-se de um antidepressivo. Por fim, há os análogos do GLP-1.

Qual a diferença dos três análogos de GLP-1?
No Brasil, são comercializados hoje medicamentos com diferentes dosagens de liraglutida e semaglutida, que foram aprovados pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para tratar o diabetes ou a perda de peso. A mesma molécula sintética pode ser usada em mais de um medicamento, com dosagens diferentes. Essas particularidades levam cada fármaco a ser administrado com maior ou menor frequência, a ter um efeito maior ou menor e a atuar no organismo por mais ou menos tempo. A liraglutida [princípio ativo dos remédios de nome comercial Victoza e Saxenda] pode fazer uma pessoa perder até 10% do peso. A semaglutida [Ozempic e Wegovy, este último com início das vendas previsto para agosto], geralmente tem um efeito maior, com perda de 10% a 20% de peso. É importante salientar que é muito difícil se livrar de 10% de seus quilos por um longo período. Essa observação é válida para pessoas magras ou obesas.

E a tirzepatida?
Ela foi aprovada no ano passado pela Anvisa para o tratamento do diabetes [com o nome comercial de Mounjaro] e levaria a uma perda ainda maior de peso. A diferença desse fármaco é atuar como análogo do GLP-1 e também do GIP, outro hormônio associado à produção de insulina e à sensação de saciedade. No entanto, a tirzepatida ainda não está disponível no Brasil. Hoje há grande demanda pelos análogos do GLP-1 no mundo desenvolvido e falta produto no mercado internacional. Tomar quatro injeções de alguns desses fármacos, como a semaglutida em dosagem de 1 miligrama, durante um mês, custa cerca de mil reais. É um medicamento caro.

O senhor aconselha esses fármacos para o controle de peso a pessoas com qual perfil?
Há regras definidas para prescrever medicamentos. Pessoas com índice de massa corporal [IMC] acima de 30 são consideradas obesas e são, em tese, elegíveis para fazer uso de algum fármaco. Mas talvez esses medicamentos possam ser úteis para pessoas com IMC até menor, acima de 25 ou 27, normalmente descritas como tendo apenas sobrepeso. O mais importante é identificar se a pessoa, mesmo não tendo muita gordura, apresenta comorbidades associadas à obesidade. Há vários subtipos de obesidade. Por isso, há pesquisadores que preferem falar atualmente em obesidades, no plural. É importante conhecer esses subtipos para estabelecermos um ranqueamento de prioridades. Não é para aumentar o número de pessoas a serem tratadas com fármacos, mas para excluir os indivíduos que, nesse momento, não são prioritários para serem medicados.

Quais os principais subtipos de pessoas com obesidade?
Podemos fazer uma primeira distinção em dois grandes grupos de pessoas com obesidade: as com metabolismo dentro do esperado ou com poucas alterações em seus exames de colesterol, de glicose e de hipertensão, e as com metabolismo não saudável. Há ainda indivíduos que estão com pouco sobrepeso, mas apresentam comorbidades importantes. É o sujeito que ganhou uma barriguinha, mas já tem gordura no fígado e pode vir a ter cirrose. Há, por fim, pessoas que apresentam somente gordura sob a pele, mas não alterações metabólicas. Portanto, a abordagem para controle da obesidade tem que ir muito além da mera questão da balança ou do fator estético. O tratamento do futuro terá de se concentrar primeiramente em transformar as pessoas que têm pouca obesidade, mas muitas comorbidades, em indivíduos que só terão problemas graves de saúde se ganharem peso em excesso.

Esses novos medicamentos já produzem algum impacto no controle da chamada epidemia mundial de obesidade?
O impacto é muito pequeno na epidemia de obesidade. Mas a existência desses remédios e a notoriedade que eles adquiriram trazem à tona muitas das questões que discutimos em nosso Cepid. Eles podem ser usados como uma motivação para falarmos de temas que normalmente não ganham muito espaço na mídia e não despertam tanta atenção na sociedade. Hoje vivemos em um ambiente obesogênico, que favorece o ganho de peso, devido ao sedentarismo e ao consumo de alimentos ultraprocessados. Muitas pessoas, até da classe médica, ainda não entenderam que a obesidade é uma doença crônica que causa problemas à saúde. Daqui a uns cinco anos, acho que teremos à disposição remédios ainda mais seletivos que os análogos do GLP-1. Serão fármacos capazes de atuar no controle da produção de certos tipos de gorduras, como a visceral, que se concentra no abdômen e é prejudicial à saúde. Ao lado das demais medidas de saúde pública, eles serão importantes no combate à epidemia de obesidade.

Republicar