Estima-se que mais de um terço da massa de seres vivos na Terra sejam organismos microscópicos que ocupam todos os cantos, dentro e fora de outros organismos. Na maior parte das vezes são bactérias compostas por uma única célula. Mas nem sempre. Agora a equipe de Ulysses Lins, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acaba de descrever na revista International Journal of Systematic and Evolutionary Microbiology uma bactéria descoberta na lagoa de Araruama, no litoral do estado do Rio de Janeiro, que batizaram de Candidatus Magnetoglobus multicellularis. Como o nome indica, são bactérias esféricas com propriedades magnéticas – chamadas de magnetotáticas – e compostas por muitas células. “Não é a primeira bactéria multicelular nem a única”, explica Lins, “o que ela tem de novo é o fato de não ter uma etapa unicelular no seu ciclo de vida, não ser capaz de responder ao campo magnético quando as células se separam do microorganismo e apresentar uma motilidade que é uma característica do conjunto e não das células individuais”.
A alta salinidade das águas da lagoa de Araruama, uma das maiores lagunas costeiras hipersalinas do mundo, é um desafio à vida. Ainda assim, bactérias conseguem colonizar essas águas hostis, que são por isso um prato cheio para microbiólogos como Lins. O grupo recolhe amostras de água que guarda em frascos fechados até que se formem camadas visíveis, com água no alto e sedimento mais espesso no fundo. Periodicamente a equipe põe uma gota de sedimento numa lâmina e a encaixa em um microscópio, com um ímã ao lado. As bactérias magnetotáticas têm em seu interior minúsculas partículas metálicas que se alinham e funcionam como se fossem ímãs internos. Essa bússola as ajuda, por exemplo, a distinguir para que lado estão as camadas mais profundas e menos oxigenadas do sedimento, seu ambiente favorito. No hemisfério Sul elas nadam sempre para o sul, então um ímã com a extremidade norte apontada para a lâmina atrai as bactérias, que são assim flagradas pelas lentes do microscópio. Para em seguida estudá-las em detalhe é preciso purificar a amostra, o que os pesquisadores fazem prendendo um pequeno ímã à lateral de um tubo de plástico que contém sedimento e enxaguando o aparato com água esterilizada da lagoa. Depois desse processo só bactérias magnetotáticas restam no tubo, e os microbiólogos podem então observá-las ao microscópio eletrônico e filmá-las ao microscópio óptico.
Foi com essa técnica que Lins e sua equipe, que inclui outros pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no Rio de Janeiro e do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), puderam descrever em detalhe as características de Candidatus Magnetoglobus multicellularis. Eles encontraram um conjunto único de arquitetura celular, ciclo de vida, propriedades magnéticas, movimentação coordenada e tipo de hábitat. Além disso, dados genéticos confirmam que a bactéria deve ser classificada como uma nova espécie. Isso ainda não aconteceu, como denota o Candidatus antes do nome proposto, pois para que a espécie seja validada é preciso que seja isolada do ambiente e mantida em meio de cultura. Uma tarefa mais difícil do que parece, que ainda não foi bem-sucedida para Candidatus Magnetoglobus multicellularis. “Provavelmente não sabemos cultivar porque não conhecemos o metabolismo dessas bactérias e portanto não sabemos muito de suas necessidades nutricionais”, explica o pesquisador da UFRJ.
Detalhes revelados
A bactéria carioca tem a forma de uma esfera oca de mais ou menos 4 milésimos de milímetro, composta por várias células organizadas em espiral. O número de células é variável, entre dez e 40, e todas elas têm contato com o meio externo e com a cavidade interna. Essas células são cobertas de flagelos, minúsculos rabinhos que ao balançar funcionam como remos e fazem o organismo avançar. Se cada célula fosse uma bactéria independente, os flagelos bateriam cada um à sua maneira e o conjunto ficaria no mesmo lugar ou se moveria de forma aleatória. Não é o que acontece com essas habitantes da lagoa de Araruama. Cada uma das células tem por volta de 30 flagelos, um total de até 1.200 por bactéria, e todos funcionam de maneira sincronizada. Lins acredita que o segredo esteja em junções especializadas que ligam as células e de alguma forma permitem que elas se comuniquem entre si. É surpreendente, porque esse tipo de estrutura até agora não tinha sido descrito em bactérias – só em organismos mais complexos.
Cada uma das células contém entre 60 e cem magnetossomos, esferas ligeiramente ovaladas que medem menos de 1 milímetro dividido por 10 mil. São eles os responsáveis por orientar a bactéria, a tal bússola interna. Na fase de reprodução cada célula multiplica ou aumenta suas partículas internas, inclusive os magnetossomos, e em seguida se divide em duas. A esfera, então com o dobro de células, forma uma constrição que afinal dá origem a duas esferas idênticas, cada uma com metade das células da bactéria-mãe. Todo o processo acontece sem que a cavidade interna tenha contato com o meio exterior e, ao contrário de outras bactérias multicelulares, Candidatus Magnetoglobus multicellularis nunca passa pelo estágio de uma célula. Assim como o movimento, a reprodução exige coordenação entre as células e é isso que torna única a descoberta da lagoa de Araruama. Se uma célula é isolada do organismo ela simplesmente morre, o que comprova a necessidade do conjunto íntegro para que possa viver. Essas características eram, até agora, consideradas exclusivas de eucariontes, o tipo de organismo multicelular de que fazem parte todos os seres vivos que se vê a olho nu.
Rumos bacterianos
Candidatus Magnetoglobus multicellularis até agora mostrou ter quatro tipos diferentes de locomoção. Em um campo magnético uniforme os pesquisadores viram o que chamaram de movimento livre, em que as bactérias nadam em linha reta ou em espiral. Já quando estão na borda da gota em que são observadas ao microscópio, elas giram sobre seu próprio eixo: é a rotação. Na interface entre a água e o ar, no alto da gota, elas “caminham” (caminhada é o termo usado pela equipe de Lins) em trajetórias complexas, sempre com a mesma face para a frente. Mas o movimento que os pesquisadores consideraram mais peculiar foi o de fuga, também chamado de pingue-pongue, em que a bactéria recua rapidamente e depois avança em outra direção.
É tentador imaginar que a descoberta surpreendente possa revelar como se deu a transição entre as primeiras bactérias e os organismos mais complexos, nos primórdios da evolução. Tentador mas nem sempre correto, alerta Lins. “Acredita-se que a multicelularidade tenha surgido várias vezes, de maneiras independentes, ao longo da evolução da vida, em bactérias ou em organismos eucariontes. As bactérias multicelulares são uma dessas incursões”, explica o microbiólogo. Ele não descarta que as bactérias multicelulares sejam semelhantes às que deram origem ao longo trajeto evolutivo que levou a insetos, vertebrados, plantas e outros organismos visíveis. Mas não foi necessariamente assim. “É perfeitamente possível imaginar que uma célula eucariótica (não-bacteriana) se tenha associado a outras do mesmo tipo para formar um organismo pluricelular, de maneira independente das bactérias”.
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