Um equipamento com 1,5 metro de largura, 2 de altura e 1 de profundidade, que produz energia elétrica com hidrogênio, é o resultado de cinco anos de pesquisas realizadas na empresa paulistana Electrocell. Até o final do ano, ele deverá ser entregue para a AES Eletropaulo, a distribuidora de energia que atende a 24 municípios, inclusive a capital, da Região Metropolitana de São Paulo. Dentro dele está instalada a chamada célula a combustível, um conjunto de módulos de eletrodos e membranas condutoras capaz de produzir 30 quilowatts (kW) de energia, suficientes para suprir de dois a três andares de um prédio ou 40 casas populares. Ela vai funcionar com hidrogênio acondicionado em cilindros, embora esteja preparada para também extrair esse combustível do gás natural e do etanol (o álcool utilizado nos veículos). Dessa forma inaugura-se uma nova fase energética em São Paulo, que passa a integrar um restrito grupo de cidades no mundo onde existem células a combustível em uso, embora ainda de forma alternativa e experimental.
São equipamentos que concentram grande interesse tecnológico e são considerados, pelos especialistas da área, a novidade energética com grandes chances de ser disseminada neste início de século. Empresas canadenses, norte-americanas e alemãs já produzem as células, mas ainda sob encomenda, sem linha de produção consistente, há pouco mais de cinco anos. Essa produção comercial vem na esteira do programa espacial norte-americano, iniciado na década de 1950, que produziu células para as naves das séries Gemini, Apollo e, depois, para os ônibus espaciais. O objetivo no espaço era produzir, além de energia elétrica, água para os astronautas, um subproduto desses equipamentos. Com avanços tecnológicos dos materiais e da eletrônica nos últimos 15 anos, as células tornaram-se mais baratas e formatadas para uso em situações mais corriqueiras.
As células a combustível funcionam como uma bateria ou uma pilha, transformando energia química em energia elétrica, quebrando as moléculas de hidrogênio que reagem com o oxigênio do ar. Na forma estacionária são parecidas e fazem as funções de um gerador, mas em tamanho reduzido. A diferença mais importante é que fazem isso de forma silenciosa e sem emitir poluentes.Quem já ficou ao lado deum gerador a diesel em funcionamento sabe bem o barulho e a fumaça que ele emite. Assim, as células abrem novos espaços e servem de poderosa ferramenta em que a preocupação ambiental e o silêncio ganham pontos.
Para a Eletropaulo, as células podem representar o início de formas alternativas de produção de energia elétrica. “Quando recebermos a célula, nós vamos levá-la, provavelmente, para um prédio, onde será simulada a substituição de um no break (equipamento que evita a paralisação de uma rede de computadores)”, explica a engenheira eletrônica Mara Ellern, especialista em análise de negócios da Eletropaulo. “Vamos verificar o funcionamento e as possíveis falhas.” Antes de irem para o teste de campo as células também vão passar por análise final do professor José Antônio Jardini, do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétrica, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
Os no breaks normalmente suprem a rede de computadores por 15 minutos, funcionam com enormes pilhas e seu custo sai em torno de US$ 1 mil por kW. As células, para fazer o mesmo serviço, tendem a ficar num preço em torno de US$ 1,5 mil pelo mesmo kW. “A vantagem da célula é que ela opera por um tempo que só é limitado pela capacidade de armazenamento de combustível, podendo chegar a uma autonomia de muitos dias de operação se conectada a tubulações de gás natural. Com isso, a manutenção fica menor, além de diminuir as exigências de espaço físico e a emissão de poluentes.
“Meu sonho é colocar, no futuro, as células em uma aplicação nobre como em um hospital, porque, além da energia elétrica limpa e silenciosa e sem interrupção, elas podem fornecer água quente para esterilização”, diz Mara. A água é produzida porque os prótons do hidrogênio (depois de os elétrons serem destinados à produção de energia elétrica), quando atravessam a membrana polimérica condutora, no interior da célula, encontram o oxigênio do outro lado.
Planos e expectativa
Para obter o equipamento, a Eletropaulo investiu R$ 1,7 milhão na fabricação da célula, com recursos do Fundo Setorial de Energia (CTEnerg), controlado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e administrado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).Do lado da Electrocell, a expectativa é grande para entregar o primeiro produto comercial. “Os primeiro protótipos nós desenvolvemos dentro do projeto do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP, num trabalho iniciado em 2000, que fez decolar a empresa”, conta o engenheiro eletrônico Gilberto Janólio, um dos quatro sócios. “Dentro do projeto do PIPE fizemos protótipos de 25 watts (W), de 75 W e um de 10 kW.” Nesses projetos, inclusive o da Eletropaulo, que envolve o conjunto final de cinco módulos de 10 kW cada, os pesquisadores da Electrocell estão utilizando 90% de material desenvolvido no Brasil.
O único produto importado é a Membrana de Troca de Prótons, chamada na sigla em inglês de PEM, que caracteriza o tipo de célula. Esse polímero, chamado de náfion, considerado o coração desse tipo de célula, foi desenvolvido pela empresa norte-americana Dupont na década de 1960 para a produção eletrolítica (por eletrólise, reação química por meio de corrente elétrica em meio aquoso) de cloro. Essa membrana está instalada no interior da célula como se fosse um sanduíche, tendo de cada lado catalisadores e eletrodos, um positivo e outro negativo. Esse conjunto leva o nome de Conjunto de Membrana e Eletrodos, ou MEA em inglês.
Para montar a célula, os quatro sócios e mais 20 colaboradores desenvolveram toda a engenharia que envolve esse equipamento. “São as engenharias de construção do stack (conjunto de MEAs), de controle, de processamento de energia, além de processos de vedação, refrigeração e integração”, diz Janólio. Outro produto elaborado e fabricado pela Electrocell são as placas bipolares de grafite. Elas servem para a condução e distribuição do gás hidrogênio dentro da célula, além de fazer a ligação entre um MEA e outro. Fora o trabalho direto na célula, foi preciso montar todo o sistema elétrico que transforma a energia de corrente contínua (DC) que a célula produz para a corrente alternada (AC) usada no nosso dia-a-dia.
Para a Electrocell, esse momento é de afirmação. “Não arriscamos mais, estamos produzindo um equipamento que é fruto de desenvolvimento tecnológico”, afirma Janólio. “Agora não é mais possível errar”, diz ele. “Nossa meta é montar uma fábrica de células a combustível para produção seriada no Brasil. Para isso já temos um layout planejado para absorver uma equipe de 58 funcionários”, conta o engenheiro químico Gerhard Ett, outro sócio.
Instalada no Centro Incubador de Empresas de Tecnologia (Cietec), que fica dentro do prédio do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), na Cidade Universitária, em São Paulo, a empresa contou com um amplo apoio científico e tecnológico. “Na área teórica e de pesquisa básica tivemos a colaboração do professor Ernesto Gonzalez, do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), e na área tecnológica do professor Marcelo Linardi, do Ipen”, conta Janólio.
Pela convivência dentro do Ipen, o pessoal da Electrocell esteve nos últimos anos muito próximo do professor Linardi e do seu grupo de oito pesquisadores. Entre as contribuições do instituto aos projetos da Electrocell existe um contrato formal de parceria no desenvolvimento dos eletrodos e dos catalisadores. Linardi está finalizando a produção laboratorial de um novo tipo de MEA. “Desenvolvemos camadas de eletrodos e de catalisadores que são aplicadas ao náfion”, conta o pesquisador do Ipen que também recebe financiamento da FAPESP e do Fundo Setorial do Petróleo e do Gás (CTPetro). “Agora estamos requerendo uma patente nacional sobre esse produto e poderemos repassar a tecnologia para a Electrocell.”
Para Linardi, a adoção de catalisadores e eletrodos próprios será muito útil para diminuir o preço da célula da Electrocell. Outro fator importante é que esses equipamentos do tipo PEM são os candidatos naturais para uso em automóveis. “É o tipo de célula mais versátil, para ser usada tanto em veículos como na forma estacionária para geração de energia elétrica”, diz Linardi. Atualmente, todas as montadoras de veículos testam a célula PEM em veículos experimentais na substituição do motor a combustão ou como complemento a ele.
Outra vantagem da PEM é que ela trabalha em baixas temperaturas, em torno dos 80° Celsius (C), facilitando a instalação em veículos automotores. Se as baixas temperaturas facilitam o uso automotivo, as altas trazem novas vantagens. “Em outro projeto, nós estamos desenvolvendo uma célula a combustível do tipo óxido sólido cerâmico (Sofc, sigla em inglês)”, conta o pesquisador. Essa célula opera em altas temperaturas, entre 800° e 1.000° C, e numa estação estacionária trabalha como co-geradora, fornecendo vapor d’água para uma caldeira, produzindo mais energia elétrica. Seja qual for o tipo da célula, a dependência do hidrogênio é total. E a maneira mais simples de obtê-lo, que seria por meio da eletrólise da água, é um processo que usa a energia elétrica e é muito caro. O uso da célula, nessescasos, está restrito àsusinas hidrelétricas. Como elas não têm meios de estocar esse tipo de energia, as usinas podem, fora dos horários de pico, produzir hidrogênio com o excedente não utilizado na rede.
Reforma energética
Mas o que garantirá o sucesso das células a combustível são os reformadores, equipamentos capazes de extrair o hidrogênio do gás natural, da gasolina ou do metanol. Nessa linha, em julho deste ano, o Laboratório de Hidrogênio do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apresentou um reformador de etanol, o álcool produzido da cana-de-açúcar. “É uma reação termoquímica em que reagentes e catalisadores são usados para transformar o etanol em hidrogênio”, explica o pesquisador Antônio José Marin Neto. A idéia do professor Ennio Peres da Silva, coordenador do laboratório e também secretário-executivo do Centro Nacional de Referência em Energia do Hidrogênio (Ceneh), igualmente abrigado na Unicamp, é aperfeiçoar esse primeiro protótipo e colocá-lo em uma caminhonete (veja Pesquisa FAPESP n° 82) dotada de célula a combustível que está sendo montada no Ceneh e deve ficar pronta no início de 2004.
Uma corrida mundial
Nos anos de 1970, era um sonho. A chamada “Era do Hidrogênio” surgiu em meio à grande crise do petróleo, quando os países produtores resolveram aumentar muito o preço do óleo cru e deixaram dúvidas no ar sobre a real capacidade de suas reservas. Assim, o elemento químico mais encontrado no planeta começou a ser apontado como o substituto dos combustíveis fósseis. Mas a crise passou e o hidrogênio foi esquecido até os anos 1990, quando a degradação ambiental, a poluição e o efeito estufa levaram a uma busca por energias limpas. Uma inquietação concretizada no Fórum Mundial de Kyoto, no Japão, em 1997, quando grande parte dos países se comprometeu a diminuir o nível de poluentes na atmosfera. A preocupação ambiental somada ao surgimento de novos materiais e o barateamento das células a combustível, também um ganho da década passada, levaram o hidrogênio novamente à baila energética. Desde então, bilhões de dólares são gastos todos os anos para a implementação e a popularização das células que produzem energia elétrica de forma limpa e silenciosa. Somente o governo norte-americano deve investir US$ 5,5 bilhões em células nos próximos dez anos. Em junho deste ano, o presidente da Comissão Européia, Romano Prodi, anunciou que os países-membros irão investir 2 bilhões de euros em cinco anos nas pesquisas com hidrogênio. No comunicado de Prodi consta também a intenção de colocar esse combustível e as células na frente da economia energética dentro de 20 a 30 anos. No Japão, o governo pretende que 50 mil veículos movidos a célula a combustível estejam nas ruas até 2010. Somente em 2003 serão gastos naquele país US$ 190 milhões na pesquisa com hidrogênio.
Com tudo isso, é de se esperar que o Brasil não fique muito atrás, mesmo que os recursos financeiros aqui não sejam tão generosos. O país já demonstrou capacidade de produzir células a combustível com duas empresas, a Electrocell e a Unitech (veja Pesquisa Fapesp n° 70), que estão com protótipos de células prontos. Vários institutos de pesquisa e de ensino no país estão empenhados nos estudos das células e de seus componentes e várias empresas da área energética financiam projetos de pesquisa e desenvolvimento, como Eletropaulo, Petrobras, Copel (PR) e Cemig (MG). No ano passado, sob a coordenação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do Fundo Setorial de Energia, foi estabelecido o Programa Brasileiro de Células a Combustível, que pretendia aglutinar pesquisadores desse tipo de equipamento no país, além de ter estabelecido uma meta de 50 megawatts (MW) – como comparação, a hidrelétrica de Itaipu produz 12 mil MW – de produção de energia elétrica via célula em dez anos. Mas até agora muito pouco foi feito. “Está tudo parado”, diz o coordenador do Centro Nacional de Referência em Energia do Hidrogênio (Ceneh), Ennio Peres da Silva. “Falta a alocação de recursos para este ano e para o próximo e os grupos estão trabalhando de forma não integrada, sem uma saudável concentração de esforços.” Ainda bem que ainda há tempo de corrigir essa rota antes de o país passar a comprar, de forma sistêmica, células a combustíveis de outros países.
O Projeto
Desenvolvimento de Células a Combustível Integrado com Software e Hardware de Monitoração, Diagnóstico, Controle e Periféricos (nº 00/13120-4); Modalidade Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador Gerhard Ett – Electrocell; Investimento R$ 241.580,00 e US$ 24.000,00