Os estudos sobre o funcionamento do cérebro expandiram seus horizontes nas últimas décadas, debruçando-se, por exemplo, sobre os limites de adaptação do cérebro a traumas e mudanças ambientais, e a FAPESP, ao longo de sua trajetória, colaborou com os avanços do conhecimento nesse campo. A iniciativa mais recente da Fundação é o programa CInAPCe (sigla para Cooperação Interinstitucional de Apoio à Pesquisa sobre o Cérebro e uma alusão à homófona sinapse, estrutura que transmite um impulso nervoso de um neurônio para outro), rede que reúne grupos de seis instituições paulistas de áreas diversas do conhecimento. O ponto de partida do projeto foi a aquisição de quatro máquinas de ressonância magnética de alto campo, dotadas do dobro da potência dos aparelhos de geração anterior existentes no Brasil, que começam a abastecer uma nova safra de estudos sobre os mecanismos da epilepsia na população brasileira.
Já chega perto de 20 mil o número de imagens sobre o funcionamento do cérebro obtido pelas máquinas, que dão suporte ao atendimento hospitalar público e privado para vítimas da epilepsia. “Temos um número significativo de imagens complexas que irão gerar estudos por muitos anos”, diz o neurologista Fernando Cendes, chefe do laboratório de neuroimagem da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos idealizadores do projeto. Já há trabalhos submetidos a publicações científicas abordando questões metodológicas, como as variações nas imagens do cérebro de um mesmo paciente produzidas por máquinas diferentes ou a influência do ruído produzido pelos equipamentos de ressonância nos resultados de exames. Os grupos envolvidos no CInAPCe mantêm-se em contato por meio de teleconferências, nas quais planejam e avaliam a tarefa de analisar os vários tipos de imagens obtidas. “Cada grupo analisa uma categoria de imagem e agora estamos aumentando nosso poder de computação para rodar mais rápido as informações”, afirma. Segundo Cendes, a importância do programa não se limita a seus achados científicos. “Há algo que não é visível no curto prazo. Me refiro às condições de estrutura de primeira linha que estão sendo oferecidas na formação de pesquisadores”, diz.
A escolha da epilepsia como objeto de estudo foi natural. A doença era o assunto mais estudado pelos participantes do projeto. O programa CInAPCe começou a ser gestado no final dos anos 1990, mas deslanchou a partir de 2007, com a aquisição dos equipamentos, cada qual por cerca de US$ 2 milhões. Um deles foi adquirido pelo parceiro privado da rede, o Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa, vinculado ao Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Outras três máquinas foram instaladas na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na capital, na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto (FMRP). A rede também envolve pesquisadores da USP em São Carlos, responsáveis por estudo de modelos experimentais em ratos e primatas não humanos, e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem tradição em pesquisa básica da epilepsia.
A seleção dessas instituições foi lastreada pela sua tradição em estudos de neurociência e na formação de pesquisadores. A FMUSP, por exemplo, há décadas se dedica à neurologia experimental. Os primeiros impulsos vieram de professores como Eros Abrantes Enhart e Orlando Aidar, neuroanatomistas interessados já nos anos 1950 na capacidade regenerativa do sistema nervoso. “Eles tinham uma grande preocupação em incutir nos alunos o interesse pela pesquisa e muitos professores da FMUSP foram influenciados por eles”, diz o professor Gerson Chadi, responsável pela disciplina de neurologia experimental e chefe do laboratório de fisiopatologia neurocirúrgica, também conhecido como LIM45, da FMUSP. Chadi, que se dedica a estudos sobre a plasticidade e a regeneração dos neurônios com apoio da FAPESP, foi bolsista da Fundação em dois pós-doutoramentos que fez na Suécia e no Canadá. Utilizando-se de modelos experimentais para doenças neurodegenerativas e de projetos clínicos, através de vários projetos recentes apoiados pela FAPESP, Chadi mobiliza vários grupos de pesquisa para impulsionar a neurociência translacional, aquela que vai da bancada do laboratório ao leito do paciente. “Os primeiros trabalhos desta investida já foram publicados”, afirma.
Na geração seguinte à de Eros e Aidar, Gerson Chadi destaca nomes como o de Antonio Spina França Netto (1927-2010), professor emérito do departamento de neurologia da FMUSP, interessado em pesquisas em líquor e infecções neurológicas. “Ele implantou o conceito de fazer investigação laboratorial que pudesse com esses resultados trazer para o paciente retorno mais imediato, em geral na forma de diagnóstico ou no aumento do conhecimento das pessoas envolvidas”, afirma. Em meados dos anos 1980, a pesquisa em neurologia, rebatizada como neurociência, ganhou um impulso enorme com a adoção de métodos da biologia molecular, observa Chadi. “Os avanços nessa área propiciaram a identificação de novas moléculas e mecanismos de comunicação entre os neurônios e suas células vizinhas que abriram caminho para várias vertentes de pesquisa sobre a capacidade de o sistema nervoso central se regenerar”, diz o pesquisador. Um exemplo foi a identificação do fator de crescimento das células nervosas, obra da italiana Rita Levi Montalcini, atualmente com 103 anos, ganhadora do Nobel de Medicina de 1987. Ela teve contatos científicos do professor Spina França e abriu espaço para que ele colaborasse com outros pesquisadores europeus. Outro nome de destaque entre os docentes da USP foi Cesar Timo-Iaria (1925-2005), especialista em eletrofisiologia, que ajudou a formar uma geração de pesquisadores, como Miguel Nicolelis, professor da Universidade Duke, Koichi Sameshima, professor do departamento de radiologia da FMUSP, entre outros. Timo-Iaria produziu uma série de contribuições importantes. Mostrou que a glicemia, a concentração de glicose no sangue, é regulada por um sistema neural de neurônios sensíveis, os glicoceptores. Ou que a fome não é desencadeada pela hipoglicemia, mas pelo trabalho metabólico do fígado para impedir que a glicemia baixe.
Já a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, outra participante do programa CInAPCe, é tributária da contribuição de nomes como Miguel Covian (1913-1992), argentino que se radicou no Brasil nos anos 1950, um dos pioneiros na neurofisiologia na América Latina e discípulo de Bernardo Houssay, argentino que ganhou o Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1947. E também Frederico Graeff, especialista em neuropsicofarmacologia, responsável por estudos importantes, por exemplo, sobre ansiedade e transtornos do pânico.
Psicobiologia
No caso da Unifesp, antiga Escola Paulista de Medicina, os estudos em neurociência devem à contribuição de dois professores, José Ribeiro do Vale e José Leal Prado, que influenciaram a formação de pesquisadores como Elisaldo Carlini, fundador do departamento de psicobiologia e criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), um celeiro de pesquisadores. Um de seus alunos foi Sergio Tufik, um dos maiores especialistas do mundo em distúrbios do sono e coordenador do Centro de Estudos do Sono, um dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), financiados pela FAPESP. Tufik foi orientado pelo argentino Miguel Covian no mestrado e por Carlini no doutorado. A passagem do neurocientista argentino Iván Izquierdo pela Unifesp, nos anos 1970 – ele faria carreira depois no Rio Grande do Sul, na universidade federal e na PUC –, também lançou sementes que frutificaram na instituição paulista. Um de seus orientados no mestrado e doutorado, Esper Abrão Cavalheiro, especializou-se em epilepsia e desenvolveu um modelo experimental para estudo da doença utilizado atualmente nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Japão e Austrália. O modelo, criado juntamente com o polonês Lechoslaw Turski, é um método de indução de convulsões em animais de laboratório a partir da aplicação da pilocarpina, um alcaloide extraído das folhas de jaborandi, planta nativa do Brasil. Cavalheiro, aliás, é um dos principais usuários de ferramentas de financiamento da FAPESP para fomentar colaborações internacionais (ver Pesquisa FAPESP nº 181).
Luiz Eugênio Mello, professor do departamento de fisiologia da Unifesp e diretor do Instituto Tecnológico Vale, conta que o apoio da Fundação à pesquisa em neurociência não se mede só pelos grandes projetos. “Existe uma lista extensa de pesquisadores com contribuições essenciais que tiveram suas histórias influenciadas pela FAPESP”, diz, referindo-se a nomes como Jair Mari, da Unifesp, Wagner Gattaz, Valentim Gentil Filho, Dora Ventura e Cesar Ades, da USP. “Eu não teria feito nem uma fração do que fiz sem a FAPESP”, afirma Mello, que foi coordenador adjunto da Diretoria Científica da FAPESP entre 2003 e 2006 e se dedica a estudos nas áreas de plasticidade neuronal, mecanismos básicos de acupuntura e epilepsia, entre outros.
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