Saíram os primeiros resultados científicos originais dos experimentos feitos em São Paulo com uma máquina que está revelando um pouco mais do comportamento de partículas atômicas chamadas núcleos exóticos, dotados de prótons ou nêutrons a mais que os núcleos estáveis dos mesmos elementos químicos. No equipamento conhecido como Ribras, sigla em inglês de Feixes de Íons Radioativos, instalado há dois anos no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), núcleos exóticos do elemento químico hélio – o hélio 6 – colidiram com um alvo fixo, formado por uma película de alumínio puro.
Os físicos verificaram que a probabilidade de esse núcleo exótico de hélio quebrar-se, após colidir com núcleos de alumínio, é somente de 10% a 20% maior que a de outras partículas que não apresentam uma nuvem pouco densa formada por dois nêutrons que giram ao redor do centro – o halo, típico do hélio 6.
Dessas colisões, que duram menos de um bilionésimo de segundo, surgem informações que ajudam a entender mais profundamente as reações que originaram os elementos químicos há cerca de 14 bilhões de anos, na formação do Universo, e as que ainda hoje ocorrem no interior de estrelas como o Sol, das quais resultam luz e calor para a Terra. Pode-se também conhecer melhor os limites das forças que agem entre as partículas elementares da matéria.
Grandalhões
Algumas espécies de núcleos exóticos são muito maiores que os núcleos com o mesmo número de partículas. É o caso do hélio 6, formado por dois prótons (partículas com carga elétrica positiva) e quatro nêutrons (sem carga elétrica) – dois nêutrons a mais que o hélio 4. São esses dois nêutrons extras que formam o halo, uma espécie de anel com um diâmetro igual ao do núcleo do chumbo 208, com 82 prótons e 126 nêutrons.
Nos últimos anos, em aceleradores de partículas da França, da Bélgica ou dos Estados Unidos, os físicos estudam como os nêutrons do halo podem influenciar a colisão com outros núcleos. Nesses experimentos, o hélio 6 colide com núcleos dotados de uma massa muito maior que a do alumínio 27, como o urânio 238 e o chumbo 208. Nesses casos, segundo Alinka Lépine-Szily, pesquisadora do Instituto de Física da USP, o intenso campo elétrico dos núcleos mais pesados repele o hélio 6, já que os dois núcleos apresentam carga positiva, e o hélio 6 se desfaz antes mesmo da colisão nuclear.
Em 2001 e 2002, Alinka integrou a equipe que preparou e analisou alguns desses experimentos, realizados no acelerador do Centro de Pesquisa de Cíclotron em Louvain-la-Neuve, na Bélgica. Esses trabalhos mostraram que os núcleos exóticos, apesar de abrigarem partículas extras e se quebrarem facilmente durante a colisão, fundem-se com outros núcleos do mesmo modo que os núcleos normais. Detalhada em um artigo publicado em outubro de 2004 na revista Nature, essa conclusão contrariou não só a intuição mas também os modelos teóricos, segundo os quais os núcleos exóticos seriam doadores naturais de prótons ou nêutrons.
De volta ao Brasil, Alinka planejou outro tipo de experimento com os outros dois pesquisadores do Ribras, Rubens Lichtenthaler Filho e Valdir Guimarães, e com um físico nuclear experimental, Paulo Silveira Gomes, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Escolhendo como alvo para o hélio 6 um núcleo atômico bem mais leve, o alumínio 27, cujo núcleo é formado por 13 prótons e 14 nêutrons, conseguiram reduzir a barreira coulombiana, definida como potencial elétrico repulsivo entre os núcleos em colisão, que faz os núcleos se quebrarem antes da colisão nuclear.
“Esses foram os primeiros experimentos de colisões de núcleos exóticos com alvos leves em baixas energias, próximas da barreira coulombiana”, diz Alinka. “Queríamos descobrir qual a probabilidade de o hélio 6 se quebrar ao colidir com um alvo com um campo eletromagnético bem mais tênue”. Era uma forma de fazer o núcleo exótico chegar intacto perto do alvo a ponto de ser atraído por uma das forças elementares, a interação nuclear forte, que mantém as partículas próximas entre si.
Durante uma semana, em dezembro de 2004, os físicos da USP, em colaboração com o grupo de Gomes, trabalharam dia e noite nesses experimentos. Criavam feixes de íons (partículas eletricamente carregadas) no oitavo andar da torre que abriga o acelerador de partículas da USP, o Pelletron, inaugurado em 1972. Os feixes são acelerados, descem à superfície e são desviados para vários equipamentos – um deles é o Ribras, com 7 metros de comprimento.
De cada um milhão de núcleos de hélio 6, só aproximadamente um núcleo seguia exatamente em direção do alvo, vencia a barreira coulombiana e colidia com o núcleo de alumínio. Em conseqüência do choque, poderia se fragmentar, às vezes perdendo os dois nêutrons mais afastados do coração do núcleo, que poderiam – ou não – ser incorporados pelo alvo. Outra possibilidade seria que, após a colisão, se desviasse como se nada tivesse acontecido, como uma bola de bilhar batendo em outra.
Os físicos verificaram então que a probabilidade de o hélio 6 quebrar-se é maior que a de outras partículas normais, cujo comportamento já havia sido caracterizado por meio de experimentos feitos por outros grupos de pesquisa nos últimos anos. Esses resultados serão anunciados em março em um congresso internacional sobre fusão nuclear e constituem a matéria-prima da tese de doutoramento de uma das alunas de Alinka, Elisangela Benjamin, apresentada no final de janeiro.
Compensação
Foi o físico teórico Mahir Saleh Hussein, também do Instituto de Física da USP, quem concluiu que o hélio 6, por causa dos dois nêutrons do halo, que não se quebra tão facilmente, apresenta uma chance de fragmentar-se de 10% a 20% maior que os núcleos normais. Porém, os núcleos de hélio 6 também se preservam porque são grandalhões. Fragilidade e gigantismo atuam inversamente, uma característica compensando a outra, por causa do Princípio de Heisenberg, uma das leis básicas da mecânica quântica, a área da física que procura explicar o comportamento muitas vezes aparentemente sem regras das partículas atômicas. “Por causa do Princípio de Heisenberg”, diz Hussein, “partículas fracamente ligadas ocupam áreas maiores no espaço”. Segundo ele, esse mecanismo de compensação ajuda a preservar a integridade do núcleo.
“Seria ótimo se houvesse aumento na fusão quando usamos núcleos exóticos”, diz Hussein. Se a fusão aumentasse, os núcleos exóticos poderiam ser vistos como doadores de nêutrons e prótons – algo que facilitaria não só a pesquisa como também as aplicações da física para diagnósticos e tratamentos médicos. Em um artigo de 111 páginas publicado neste mês na revista Physics Reports, Hussein e outros dois físicos teóricos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Felipe Canto e Raul Donangelo, além de Gomes, da UFF, apresentam a teoria que ajuda a explicar resultados experimentais obtidos nos aceleradores de partículas da Bélgica, da França, dos Estados Unidos, do Japão, da Itália e do Brasil. Nesses equipamentos procura-se reproduzir as reações que originaram o Universo e os próprios seres humanos.
Aproximadamente 80% de nosso corpo é constituído de água, formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio – todos bastante antigos. O núcleo do hidrogênio, com apenas um próton, formou-se minutos depois do Big Bang, a explosão que teria originado o Universo, há 14 bilhões de anos. Já os átomos de hidrogênio – um elétron girando ao redor de um próton – se constituíram 400 mil anos depois.
E só um bilhão de anos mais tarde, à medida que o Universo esfriava e se expandia, começaram a se formar – no interior das estrelas, como resultado da fusão de elementos químicos mais leves – o oxigênio, que constitui 61% da massa do organismo humano, o carbono, que responde por 23%, e todos os outros elementos químicos mais pesados, como nitrogênio, cálcio, fósforo e ferro. Inicialmente soltos no espaço, aos poucos se uniram em nuvens que se adensaram tanto a ponto de originarem planetas como a Terra e suas formas de vida.
Ainda hoje se formam hidrogênio e hélio no Sol, oxigênio e carbono em estrelas maiores, do tipo nova, e elementos químicos ainda mais pesados, como sódio, urânio e chumbo, nas explosões de supernovas, com uma massa milhares de vezes maior que a do Sol. Equipamentos como o Ribras funcionam como se fossem uma estrela do tipo nova, ao formar núcleos ricos em prótons e nêutrons de médio porte.
Além do hélio 6, os físicos da USP já produziram núcleos de lítio 8, com um nêutron a mais que o lítio normal, de berílio 7, com dois nêutrons a menos, e de boro 8, com dois neutrôns a menos que o boro normal. Jogando-os contra átomos estáveis e mais imponentes – como o vanádio 51, reproduzindo experimentos já feitos por outros grupos, e agora com o alumínio 27, como não havia sido feito -, descobrem como os núcleos exóticos podem se quebrar.
Outros experimentos deste tipo talvez demorem um pouco. Ainda que seja novo e se equipare a outros equipamentos avançados no exterior, o Ribras depende do Pelletron, um acelerador de partículas que necessita de constante manutenção. E já não é muito fácil encontrar peças de reposição, que dependem de importação, relata Valdir Guimarães enquanto mostra a sala de comando do acelerador, formada por um misto de equipamentos típicos dos anos 1970, ao lado de outros, mais recentes. Logo depois dos experimentos com o hélio 6 o Ribras parou de funcionar porque uma peça do Pelletron quebrou. Os físicos acreditam que a peça será trocada e o Pelletron e todos os outros equipamentos que ele atende voltarão ao normal ainda no primeiro semestre deste ano.
O Projeto
Estudo de núcleos exóticos com feixes radioativos produzidos no Laboratório Pelletron-Linac do IF/USP
Modalidade
Projeto Temático – Programa Núcleos de Excelência (Pronex)
Coordenador
Alinka Lépine-Szily – IF/USP
Investimento
R$ 585.000,00 (FAPESP e CNPq)