A aprazível cidade de Búzios, no litoral fluminense, se tornou em novembro a mais nova cidade do planeta a servir de projeto-piloto para a implantação de uma concepção revolucionária em relação à distribuição e ao controle da energia elétrica. Búzios vai se alinhar com outras cidades, como Sete Lagoas, em Minas Gerais, Parintins, no Amazonas, ou Aparecida, em São Paulo, ou ainda Boulder e Columbus, nos Estados Unidos, Estocolmo, na Suécia, e Málaga, na Espanha. Elas podem ser chamadas de cidades do futuro porque começam a experimentar um tipo de gestão energética que vai trazer um melhor aproveitamento e novas formas de geração, interação e uso da eletricidade tanto para as empresas produtoras e distribuidoras da energia como para o consumidor. Chamadas de redes inteligentes ou, como são conhecidas mundialmente, smart grids, esses sistemas tornam digitais todos os dados e ampliam a participação do consumidor, que receberá mais informações sobre o consumo, gastos e economia de energia.
Em Búzios começam a ser instalados pela concessionária Ampla a primeira leva de um equipamento primordial para os sistemas de redes inteligentes, os medidores eletrônicos, capazes de trazer novas informações aos consumidores, como a tarifa que está sendo cobrada naquele momento, gastos mensais, interrupções de energia, e os horários em que se gasta mais eletricidade na casa. Serão instalados, até 2014, 10 mil novos medidores na cidade que possui 28 mil habitantes. No total, junto com o centro de monitoramento recém-inaugurado, serão investidos pela empresa R$ 40 milhões em todo o projeto de smart grid em Búzios. A empresa controladora da Ampla é a espanhola Endesa, que está implantando uma smartcity em Málaga com investimento de € 30 milhões. Lá, de forma semelhante a outras experiências de cidades do futuro na Europa e nos Estados Unidos, busca-se uma gestão do setor elétrico que leve a uma economia de energia de 20% e a uma redução de 6 milhões de toneladas por ano de emissões de gás carbônico (CO2), resultado da queima de carvão para gerar eletricidade. Assim, será dada mais atenção à produção de energias renováveis.
Na Espanha, como no Brasil, tudo começa com a troca do medidor. No futuro, além de todas as informações que possa fornecer, ele também vai dispensar a leitura feita uma vez por mês por um funcionário da concessionária. Ela será computada pela própria fiação ou por outros sistemas de comunicação, que vão usar frequências de rádio, fibra óptica e até satélites. Por enquanto, os novos medidores medem o gasto de energia a cada 15 minutos e poderão indicar qual o horário, por exemplo, é mais barato usar a máquina de lavar ou o chuveiro. A partir de janeiro de 2014 as concessionárias serão obrigadas a instalar gratuitamente um desses medidores eletrônicos com tela de verificação de informações, para os consumidores que aderirem à chamada tarifa branca. Ao contrário da tarifa atual, a nova terá valores maiores no horário de pico, entre 17 e 22 horas, dependendo da região, ou na hora do almoço, e menores, principalmente de madrugada, quando o consumo cai e sobra energia.
A oportunidade mais radical proporcionada pelo sistema smart grid é a possibilidade de o consumidor produzir a própria energia, em painéis fotovoltaicos, geradores eólicos ou mesmo em carros elétricos estacionados na garagem, e com isso obter descontos na energia que vem das concessionárias, como Eletropaulo, Eletrobras, Cemig, Light ou CPFL, entre outras. Quem está acostumado com a via de duas mãos da internet em que tanto se atua como receptor, obtendo vários tipos de informações, quanto emissor, com a postagem de textos e vídeos, não vai estranhar as redes inteligentes. Além de usufruir da energia tradicional, o consumidor residencial poderá exportar a energia gerada para a rede quando não a estiver usando, por exemplo, no período de férias. Uma tela nos novos medidores vai indicar o fluxo de energia nos dois sentidos.
Para o smart grid se tornar realidade uma série de equipamentos e softwares começam a ser instalados nas cidades do futuro ou em experimentos pontuais nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. A perspectiva é que as concessionárias de energia elétrica possam ter um controle maior da eletricidade fornecida, evitando perdas que podem chegar até a 13%, o que equivale a R$ 7 bilhões por ano, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). São as chamadas perdas não técnicas que ocorrem nas redes de distribuicão no país, em grande parte devidas a desvios clandestinos, o chamado “gato”, fora as perdas com equipamentos com má manutenção ou já desgastados pelo tempo. Também poderão minimizar apagões com o maior controle e redirecionamento de energia quando acontecem defeitos e acidentes nas redes. Controlar perdas e tornar o sistema elétrico mais eficiente será muito importante em vista do crescimento médio do consumo esperado entre 2012 e 2021, que é de 4,3% ao ano, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia (MME).
Alexandre AffonsoNo sistema de pesquisa e desenvolvimento (P&D) exigido pela Aneel, nos contratos de concessão da energia elétrica no país, o smart grid está presente em 178 projetos. As empresas são obrigadas a aplicar 1% da receita líquida em projetos de P&D e eficiência energética. Muitas das iniciativas já possuem regulamentação, inclusive a geração da própria eletricidade pelo consumidor. “A Aneel, por meio de uma resolução, estabelece que a partir de 13 de dezembro de 2012 as concessionárias devem estar preparadas para iniciar o atendimento dos consumidores que desejarem instalar uma micro ou minigeração em sua propriedade. A energia injetada na rede será revertida em créditos que reduzirão a fatura de energia da unidade consumidora”, diz André Pepitone, diretor da Aneel.
Experimentos isolados
“Smart grid é um conceito de agregar funcionalidade e inteligência às redes de energia para ter ganhos de eficiência, custo e qualidades para os consumidores”, diz Denys Cláudio Souza, superintendente de Desenvolvimento e Engenharia da Distribuição da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), empresa que designou a cidade de Sete Lagoas (MG), com 214 mil habitantes, situada a 70 quilômetros de Belo Horizonte, como projeto-piloto. A Eletrobrás, por sua vez, escolheu Parintins, no estado do Amazonas, a 420 quilômetros da capital Manaus, uma ilha no rio Amazonas para ser o seu projeto-piloto. A cidade, com 102 mil habitantes, foi escolhida porque é um sistema isolado onde toda a eletricidade é extraída de geradores a diesel e existe a necessidade de um melhor acompanhamento das variações de gasto de energia ao longo do dia. A empresa pretende gastar R$ 22 milhões no projeto. Lá estão sendo trocados 14 mil medidores.
Outro parceiro da Eletrobrás é o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), que está levando para Parintins soluções de software para medições avançadas e relacionamento entre o cliente e a concessionária. “Em outro projeto estamos colaborando com a Celpe [Companhia Energética de Pernambuco] na implantação de equipamentos de medição avançada e automação da rede no arquipélago de Fernando de Noronha com o objetivo de tornar mais eficiente e sustentável o consumo de energia local, produzida com geradores a diesel”, diz Luiz Hernandes, coordenador do grupo de smart grid no CPqD. “As distribuidoras estão investigando agora o potencial das redes inteligentes, as estruturas tecnológicas e os custos, além do comportamento de uso do consumidor”, resume Hernandes. “Sabendo do comportamento do consumidor, e conhecendo melhor a rede elétrica, a concessionária vai estabelecer manutenções e tornar a operação do sistema mais eficiente, além de comprar energia das geradoras, que operam as hidrelétricas, de forma mais precisa.”
Empresas inovadoras
Muitas dessas novas soluções foram desenvolvidas especialmente por empresas com base tecnológica no país ou por multinacionais instaladas aqui. Entre as nacionais, a maior concentração é na área de softwares, como a Concert Technologies, empresa com sede em São Paulo e centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em Belo Horizonte, Minas Gerais. Um dos produtos da empresa é um software já instalado na sala de controle da Cemig, na capital mineira, para tratamento de dados em tempo real com informações que vêm dos sensores espalhados ao longo da rede elétrica. “Outra participação na área de smart grid é um projeto de P&D da Concert, que desenvolveu um equipamento para monitoramento da rede e de um novo transformador de energia, dotado de sensores capazes de detectar a localização de falhas na rede”, diz Ângelo Fares Menhem, diretor de tecnologia da empresa. Os transformadores fazem a transferência da média tensão dos cabos da rua para a baixa tensão (110-220 volts) usados pelos consumidores residenciais, por exemplo.
Alexandre AffonsoO projeto foi desenvolvido em parceria com a Eletropaulo, que atende a Região Metropolitana de São Paulo. O protótipo do transformador foi aprovado e agora está na fase de desenvolvimento de engenharia. “Como somos uma empresa de desenvolvimento, principalmente de softwares para uso em situações de tempo real, não pretendemos fabricar os equipamentos em larga escala. Estamos em entendimento com a Eletropaulo para licenciar o aparelho para um ou mais fabricantes”, diz Menhem. Outro equipamento recém-desenvolvido foi feito sob encomenda da Light, concessionária de 31 municípios do estado do Rio de Janeiro. É um medidor eletrônico elaborado pelo Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento (Lactec), de Curitiba, no Paraná. “Desde 2010 estamos desenvolvendo um medidor que pode ser instalado em cada casa ou num poste para atender até 12 residências. A característica importante dele é que cada casa terá um aparelho que é basicamente um display [tela] do tamanho de um smartphone, embora mais grosso, que pode ser ligado a uma tomada e ficar preso em um parafuso na parede ou ficar em cima de um móvel. Com cinco linhas de texto na tela em preto e branco, o consumidor terá informações como o consumo instantâneo”, diz Carlos Purim, gerente do Departamento de Eletrônica e Informática do Lactec. O consumidor também terá informações mensais de gastos, além de poder estabelecer metas e acompanhar pela tela se está cumprindo o gasto previsto. Quando as tarifas diferenciadas estiverem vigorando em 2014 o medidor informará por meio de luzes, verde (mais barata), amarela (intermediária) e vermelha (mais cara), o valor que o consumidor estará pagando. As informações entre o medidor e o display se-rão transmitidas à concessionária por um sistema wireless chamado rede Mesh. Serão instalados 300 medidores em casas do Rio de Janeiro. “Depois desse teste em campo vamos transferir a tecnologia para uma empresa”, diz Purim.
Informações com sigilo
Em Sete Lagoas, a Cemig e o CPqD também criaram soluções para um sistema de automação avançada. “Desenvolvemos algoritmos matemáticos para automação das redes inteligentes em casos de defeito quando há necessidade de reconfigurações, com transferência de fontes de energia, isolando áreas afetadas sem comprometer áreas maiores que o local do problema, como acontece hoje com os apagões”, diz Hernandes, do CPqD. O controle avançado das redes também está no caminho da empresa CAS Tecnologia, de São Paulo. A empresa é especializada em plataformas de controle de redes elétricas e tem projetos com 16 concessionárias. “Nós desenvolvemos uma linha de dispositivos que são os pontos para onde os dados dos consumidores convergem”, diz Welson Jacometti, presidente da empresa. Dentre os dados captados da rede, ele diz que será possível, por exemplo, controlar remotamente a luz das ruas das cidades, desde que as lâmpadas sejam trocadas por Leds, diminuindo a intensidade durante a madrugada. “Essa prática poderá economizar 30% de energia para as prefeituras”, diz Jacometti. Os semáforos também podem ser integrados ao smart grid e, na falta de energia, a concessionária aciona de forma automática a companhia de trânsito.
Com dados que podem ser captados dentro do conceito de smart grid, é de esperar para breve que as concessionárias recebam montanhas de informações dos clientes e da rede. “Trabalhamos em sistemas para controle e organização desse processo. Controlamos os dados necessários e adequados para o planejamento da concessionária”, diz Carlos Fróes, diretor da KNBS, pequena empresa de Campinas, que foi uma start-up da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A CPFL, por exemplo, é uma concessionária presente em mais de 500 municípios nos estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais com mais de 7 milhões de clientes. Imagine se a empresa receber uma informação por minuto de cada um desses clientes”, diz Fróes. “Por isso trabalhamos na qualidade de informação selecionando o que é importante.”
Entre os dados coletados, além de informações técnicas da rede, também estão horários de gasto de energia de cada residência, quantas pessoas devem ter ali ou se a casa está vazia, por exemplo. Que valor teriam esses dados? Como controlá-los para não serem roubados da rede? Algumas das soluções já fazem parte da internet e da segurança bancária. É a criptografia e o tráfego de dados com certificação digital. “Desenvolvemos e depositamos uma patente de um medidor de energia que permite o tráfego de dados com criptografia e certificação digital”, diz Purim, referindo-se ao projeto da Light, que, além do Lactec, contou com o CPqD e a CAS. “O conceito de smart grid é uma verdadeira revolução que leva a uma mudança radical na relação entre as empresas e os consumidores”, diz o professor Gilberto Jannuzzi, da Unicamp, também conselheiro do Comitê Gestor de Indicadores de Eficiência Energética do MME. Para ele, o smart grid vai integrar novas tecnologias mais eficientes para o consumidor final, unindo a rede elétrica e a de telecomunicações. “Mas é preciso garantir a privacidade das informações e a segurança da rede.”
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