Em agosto de 2020, a astrônoma Maria Elizabeth Zucolotto, do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, recebeu uma ligação do colecionador de meteoritos brasileiro André Moutinho – ele informava que havia caído uma chuva dessas rochas espaciais no município de Santa Filomena (PE). Apesar das restrições da pandemia de Covid-19, a pesquisadora, que é curadora da coleção de meteoritos do museu, conseguiu viajar até a cidade. Testemunhou uma verdadeira caça a essas rochas espaciais, com a ativa participação dos moradores, que procuravam por fragmentos para vendê-los a comerciantes de meteoritos brasileiros e estrangeiros que apareceram no local.
O dono de um bar da cidade lhe contou que guardou um meteorito que havia quebrado o telhado de sua casa. Zucolotto quis comprá-lo, mas o comerciante não vendeu – e depois soube que o caçador de meteoritos norte-americano Michael Farmer havia arrematado a rocha de quase 2,5 quilogramas (kg). A astrônoma procurou Farmer. “Ele acabou concordando em revendê-lo pelo preço que havia comprado. Tivemos que conseguir R$18 mil em dinheiro vivo”, recorda-se.
A peça foi incorporada ao Museu Nacional como a primeira aquisição da coleção de meteoritos após o incêndio de 2018 e deve ser exposta quando a instituição reabrir suas portas. Segundo análise publicada em abril de 2023 por Zucolotto e colegas na revista Meteoritics and Planetary Science, trata-se de um condrito, um tipo de meteorito rochoso com idade estimada em 4,56 bilhões de anos, oriundo provavelmente do cinturão de asteroides entre as órbitas de Marte e Júpiter.
O caso de Santa Filomena mostra as dificuldades para garantir que pesquisadores tenham acesso a amostras de meteoritos que caem no país. Como não há regulamentação, qualquer pessoa pode comprá-los ou vendê-los, sem que os cientistas tenham a chance de examiná-los. Para tratar da questão, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 4.471/2020, que propõe regulamentar a propriedade das rochas espaciais com o objetivo de garantir que amostras também sejam encaminhadas para instituições científicas brasileiras.
Articulações em Brasília
O projeto recebeu sugestões de cientistas da área que se articularam para modificar o texto inicial. Outro projeto de lei, também de setembro de 2020, acabou sendo rejeitado. “Quando surgiram, os projetos propunham caminhos opostos – um caminhava na direção de definir os meteoritos como propriedade privada e outro como propriedade do Estado”, explica Rodrigo Vesule, integrante do grupo de pesquisa de direito e política espacial da Universidade Católica de Santos.
“Ambos tinham textos simplificados que não atendiam à complexidade do tema e que não garantiam que amostras de meteoritos fossem analisadas no país”, complementa. Vesule foi convidado a integrar um grupo de trabalho, liderado pela Sociedade Brasileira de Geologia (SBG) – do qual Zucolotto também faz parte –, que reuniu pesquisadores para discutir quais pontos deveriam estar em um projeto de lei dessa natureza.
“Criamos o grupo de trabalho para garantir que os interesses científicos fossem contemplados”, diz a geóloga Elisa Rocha Barbosa, da Universidade Federal de Goiás (UFG), presidente da SBG. A equipe foi composta por integrantes de universidades públicas, institutos de pesquisa e por astrônomos amadores. Barbosa foi três vezes a Brasília, com Zucolotto, para conversar com parlamentares sobre o projeto.
As sugestões dos cientistas foram apresentadas em uma audiência pública realizada pela Comissão de Minas e Energia da Câmara em 2022. “Um dos cuidados foi definir o que são meteoritos e apontar por que eles não podem ser considerados uma rocha comum. Se isso acontecesse, seriam obrigatoriamente propriedade da União de acordo com o Código de Mineração brasileiro”, explica Vesule. A proposta cria um certificado nacional de registro de meteoritos. Com isso, se a lei for aprovada, todo meteorito encontrado em território nacional deverá ser registrado no país. “Isso garante a propriedade ao dono do objeto, que poderá vendê-lo, e assegura uma amostra para a instituição científica que analisá-la”, destaca o especialista.
Para isso, o projeto prevê a figura das instituições registradoras, que devem ser organizações de pesquisa brasileiras, e propõe que quem encontrar um meteorito terá 180 dias para solicitar seu registro gratuito. Em contrapartida, cerca de 20% de sua composição deverá ser cedida à instituição. O texto também define que as rochas espaciais só poderão ser retiradas do país após serem registradas.
“O que há hoje é uma terra de ninguém. Se alguém encontrar um meteorito, colocar no bolso e sair do país, não temos nenhum tipo de controle ou um retorno para a ciência”, observa o geólogo Alvaro Crósta, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também integrante do grupo de trabalho.
Esse parece ter sido o caso de um meteorito oriundo de Marte, de quase 4,5 kg, coletado na cidade de Socorro, em Pernambuco, que só foi descoberto por pesquisadores brasileiros quando apareceu no banco de dados da organização internacional The Meteoritical Society, referência mundial para registros de meteoritos, em outubro de 2021. A rocha teria sido levada para Miami, nos Estados Unidos, e negociada com um colecionador, que preferiu ficar anônimo.
“Estima-se, pelo seu tamanho, raridade e pelo valor desse tipo de meteorito no mercado, que ele possa ter sido vendido por até centenas de milhares de dólares”, explica Crósta, membro da diretoria da The Meteoritical Society. Zucolotto conseguiu a cessão de uma amostra de quase 3 gramas (g) da rocha para o acervo do museu. Pelo tamanho reduzido, não é possível fazer pesquisas aprofundadas sobre o material – o ideal é que fragmentos para estudo tenham pelo menos 30 g. O país tem hoje 88 meteoritos oficialmente catalogados. “É um número muito pequeno diante da extensão do país. No mundo, há mais de 76 mil registros”, complementa Crósta.
No início de novembro, o projeto estava na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que deve analisar se ele é constitucional. Caso seja aprovado, seguirá para o plenário da Câmara. Para Barbosa, a regulamentação pode evitar que comerciantes comprem meteoritos valiosos das pessoas por preços de rochas comuns.
“Quem encontra meteoritos é a população, não são os cientistas”, observa Zucolotto, que recebe, em média, cinco mensagens por dia de pessoas de todo o país pedindo para avaliar rochas que acreditam ser meteoritos. Ela tem rodado o país com o projeto de extensão “Meteoritos pé na estrada”. Além de divulgar ciência, a iniciativa procura despertar nas pessoas o interesse pelos meteoritos, mostrando que pode estar ao alcance delas encontrá-los. “Ao investigar a composição e as características dos meteoritos, podemos compreender a formação e evolução do Sistema Solar”, conclui.
A reportagem acima foi publicada com o título “A sorte dos meteoritos” na edição impressa nº 346, de dezembro de 2024.
Artigo científico
TOSI, A. et. al. The Santa Filomena meteorite shower: Trajectory, classification, and opaque phases as indicators of metamorphic conditions. Meteoritics and Planetary Science. v. 58, p 621-42. abr. 2023.