A cirurgia durou cerca de 12 horas. Os preparativos para a cirurgia começaram logo pela manhã, quando os últimos exames de ressonância magnética determinaram a área exata do cérebro a ser atingida. Com o mapa em mãos, os médicos levaram o paciente à sala de operações: era um portador de um sério problema psiquiátrico, o transtorno obsessivo-compulsivo, mais conhecido como TOC, que não era controlado de nenhuma outra forma. O paciente deitou-se na maca de uma câmara de cobalto radioativo, parecida com um aparelho de ressonância magnética, e foi sedado. Já estava dormindo quando lhe colocaram uma redoma de metal que lembra um capacete, com 201 furos milimétricos. Por esses orifícios é que passaram os raios gama vindos do aparelho, em direção a um único ponto do cérebro. A radiação, em intensidades variáveis, eliminou um grupo específico de neurônios envolvidos no problema. O paciente voltou para casa no dia seguinte, sem ter sofrido nenhum corte.
Desde dezembro, quando cinco cirurgias desse tipo foram feitas pela primeira vez no Brasil em pessoas cujos nomes são mantidos em sigilo, uma mistura de sentimentos – cautela, ansiedade e satisfação – acompanha a equipe de Eurípedes Constantino Miguel no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Embora as cinco operações tenham sido seguidas por especialistas da Universidade de Brown, nos Estados Unidos, onde pelo menos 50 pessoas já passaram por esse mesmo procedimento, persiste a dúvida: será que vai dar certo? Até agora, de acordo com os primeiros exames, todos os pacientes operados passam bem.
Mas os resultados definitivos só serão conhecidos no final do ano, uma vez que os efeitos da radiação só se tornam mais marcantes a partir do terceiro mês após a operação. Se tudo correr bem nesses estudos experimentais, o grupo da USP poderá anunciar uma alternativa de tratamento para os portadores das manifestações mais graves do transtorno obsessivo-compulsivo, que afeta cerca de 2% da população mundial – no Brasil, são pouco mais de 3 milhões de pessoas com esse problema. Os pacientes operados pertencem ao grupo de cerca de 10% dos casos diagnosticados que, por alguma razão desconhecida, haviam passado por pelo menos cinco anos de tratamento sem nenhum resultado positivo.
O cotidiano dos portadores de TOC é um sofrimento contínuo. Perseguidos por pensamentos irrefreáveis, são capazes de dar voltas no quarteirão durante horas, com medo de terem atropelado alguém sem perceber. Por vezes, sentem necessidade de lavar as mãos centenas de vezes, até elas sangrarem, pois acham que estão sempre sujas. Têm mania de arrumação e não podem ver objetos desalinhados ou fora do lugar. Colecionam pilhas de papel sem valor. No auge do desespero e do descontrole, chegam a pensar em suicídio. “As obsessões, que são os pensamentos estranhos e as imagens absurdas que se manifestam constantemente, causam intenso tormento e levam às práticas repetitivas”, diz Antonio Carlos Lopes, um dos médicos da equipe da USP. Segundo ele, os portadores de TOC têm consciência dos exageros, mas não conseguem se livrar deles. Por essa razão, normalmente param de estudar, deixam de ter vida social e vivem brigando com os familiares, que nem sempre compreendem a necessidade de seus rituais.
Com as outras possibilidades de tratamento esgotadas, a alternativa ainda experimental para os casos mais resistentes é um tipo de neurocirurgia conhecida como capsulotomia anterior estereotáxica por Gamma-knife: pequenas doses de radiação gama, por si só incapazes de danificar as células do sistema nervoso, convergem para um ponto, que, de acordo com os exames, tem um padrão de funcionamento anormal. Aí sim, ao se cruzarem, esses raios se tornam letais. Colocado em prática para casos de TOC há quase dez anos na Universidade de Brown, esse tipo de radiocirurgia tem sido utilizada no combate a tumores, com quase 200 mil casos já tratados, e como alternativa para tratar epilepsia e doença de Parkinson resistentes às terapias convencionais. Confiantes nos resultados, os pesquisadores da USP começam a pensar na próxima etapa: um estudo em larga escala, com pelo menos 48 portadores de TOC divididos em dois grupos – um seria submetido à neurocirurgia e outro, a uma falsa operação, com todos os procedimentos, mas sem a liberação dos raios gama. As conclusões definitivas sobre a eficiência dessa abordagem só poderão ser conhecidas em cinco anos.
Acredita-se que os transtornos obsessivo-compulsivos resultem do funcionamento anormal de circuitos que conectam estruturas localizadas próximas à base do cérebro (os núcleos da base) ao córtex, a camada mais externa. Outra possível causa são falhas na comunicação entre os neurônios feita por meio da serotonina, um dos neurotransmissores existentes no sistema nervoso. Quando se constata a ineficácia das duas abordagens convencionais – à base de medicamentos antidepressivos, que aumentam a quantidade de serotonina nas conexões nervosas, ou de terapia comportamental -, outra técnica cirúrgica adotada com freqüência é a chamada cingulotomia anterior: por uma abertura no crânio, coloca-se um eletrodo com o formato de um fio, que, por meio de ondas de rádio, queima os neurônios de um trecho específico do cérebro integrante do circuito envolvido no TOC, como giro do cíngulo.
Já a técnica de Gamma-knife atua sobre áreas profundas do cérebro. Os raios gama eliminam as células de uma estrutura chamada cápsula interna, formada por fibras nervosas que atravessam os núcleos da base e ligam o tálamo (responsável por interpretar as sensações de tato, dor e temperatura) ao córtex frontal. A intenção é a mesma – destruir neurônios que antes funcionavam em excesso -, com a vantagem de que o crânio não precisa ser aberto e os efeitos colaterais são menores. “Nos pacientes operados, não observamos hemorragias, infecções nem convulsões, que podem ocorrer em outras neurocirurgias”, relata Miguel Canteras, o neurocirurgião do projeto. O efeito mais temido é o inchaço do cérebro, controlado com antiinflamatórios.
Canteras preocupa-se em desfazer qualquer associaçãodesses dois procedimentos com a lobotomia, a primeira técnica cirúrgica empregada para tratar problemas mentais. Criada na década de 30 do século passado, foi empregada amplamente em indivíduos com esquizofrenia ou mesmo com ansiedade ou agressividade exacerbada. A lobotomia consiste na lesão de áreas extensas que ligam os lobos frontais ao restante do sistema nervoso, com impactos graves: era quase impossível evitar alterações de personalidade e distúrbios cognitivos. “Não havia noção das conseqüências das lesões provocadas pela lobotomia”, diz ele. “Hoje estamos em outro estágio e as neurocirurgias são feitas de acordo com as normas clínicas e éticas.”
Origens
Além de buscar opções de tratamento, a equipe da USP tem estudado a própria origem do TOC. Um dos principais trabalhos desse grupo confirmou a relação, até então apenas suspeitada, entre os sintomas obsessivo-compulsivos e a febre reumática, doença auto-imune provocada por anticorpos produzidos pelo próprio organismo para combater bactérias. A febre reumática causa dor de garganta, vermelhidão da pele e, em estágio mais avançado, pode atingir o sistema nervoso central – é quando está associada a outro problema neurológico, a coréia de Sydenham, com movimentos involuntários de braços e pernas, associado ao mau funcionamento dos núcleos da base. Os pesquisadores avaliaram 22 crianças que apresentavam febre reumática e coréia e outras 20 apenas com febre reumática. Depois, compararam os dados com os de 20 integrantes do grupo controle, crianças sem doenças auto-imunes. No primeiro grupo, quase metade das crianças sofria de TOC ou apresentava sintomas obsessivo-compulsivos, masaindanão intensos o bastante para caracterizar o quadro típico de TOC.
No grupo com febre reumática, também foi elevada (35%) a taxa de portadores de TOC ou traços obsessivo-compulsivos, enquanto não houve casos dessa doença psiquiátrica entre as crianças sem doença auto-imune. “A febre reumática, associada ou não à coréia de Sydenham, é um fator de risco para o TOC”, diz Marcos Mercadante, outro pesquisador do grupo. Sua colega Ana Hounie constatou que, em famílias de crianças com febre reumática (com ou sem coréia), a probabilidade de encontrar um parente de primeiro grau também com obsessões e compulsões era três vezes maior do que no grupo de controle, formado por familiares de crianças sem febre reumática. “O trabalho sugere que a febre reumática pode estar geneticamente ligada ao TOC”, afirma Ana, cujos resultados devem sair em breve no Journal of Clinical Psychiatry.
Em outra linha de trabalho, a equipe de Euripedes primeiro desconfiou, e depois confirmou, que o TOC não é uma doença única, mas um grupo de enfermidades semelhantes, que diferem na intensidade e no tipo de sinal apresentado. Os pesquisadores da USP acompanharam 42 pacientes com TOC, divididos em dois grupos, de acordo com a idade de início dos sintomas. Nos pacientes chamados precoces (início da doença até os 10 anos), a intensidade e a gravidade dos problemas eram bem maiores do que no chamado grupo de início tardio, a partir dos 17 anos. “Nos mais jovens, manias como o colecionismo e as repetições eram mais intensas, os tiques eram constantes e a resposta ao tratamento com medicamentos, menor”, explica Maria Conceição Rosário Campos. Os resultados reforçam a hipótese de que não existe um único tipo de TOC, mas subgrupos específicos, com características e manifestações diversas.
O Projeto
Patogênese e Tratamento do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (nº 99/12205-7); Modalidade Projeto Temático; Coordenador
Euripedes Constantino Miguel Filho – Universidade de São Paulo; Investimento R$ 677.449,05