Pesquisadores de vários estados brasileiros e de países europeus vão embrenhar-se na Amazônia nos próximos três anos para coletar dados sobre vegetação e clima, amostras de material biológico e mineral e peças da cultura nativa e popular da região amazônica, em um esforço concentrado para multiplicar o conhecimento sobre a diversidade biológica e social presente na maior floresta tropical do planeta. Uma chamada de propostas que ficará aberta até 29 de abril vai investir cerca de R$ 96 milhões no financiamento da organização e dos custos logísticos de expedições científicas em áreas da Amazônia pouco conhecidas e exploradas por pesquisadores.
O edital é o segundo lançado pela Iniciativa Amazônia+10, inicialmente uma articulação entre as fundações de amparo à pesquisa (FAP) dos nove estados da Amazônia e a FAPESP (daí o nome +10), que foi ampliada e hoje reúne agências de fomento de 25 estados brasileiros. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência federal de apoio à pesquisa, vai investir R$ 30 milhões na chamada e instituições de fomento de países como Reino Unido, Alemanha e Suíça participarão com R$ 37 milhões, cabendo a 19 FAP financiar R$ 29,2 milhões. As expedições deverão ter equipes multidisciplinares coordenadas por pesquisadores de ao menos dois estados da Amazônia. Será obrigatória a participação de um representante dos detentores do conhecimento tradicional a ser estudado pelas missões, como indígenas e quilombolas.
A Amazônia+10 surgiu em 2021, anunciada em Glasgow, na Escócia, na 26ª Conferência do Clima das Nações Unidas, na esteira da disposição do governo do estado de São Paulo de aplicar recursos no apoio a projetos de pesquisa na Amazônia em um momento que instituições da região se ressentiam de falta de financiamento para projetos e bolsas. A então secretária de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, Patrícia Ellen, que à época coordenava o Conselho Nacional de Secretários para Assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (Consecti), consultou a FAPESP sobre a oportunidade de organizar esse esforço. A Fundação, que nas últimas décadas investiu mais de R$ 500 milhões em projetos relacionados à Amazônia, capitaneados por pesquisadores paulistas, sugeriu que fosse estimulada a criação de redes de pesquisa com instituições de vários estados da Amazônia.
Em dezembro de 2021, a FAPESP, em entendimento com o Consecti, formulou e apresentou a proposta de criação da Amazônia+10 em uma reunião do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) realizada em Foz de Iguaçu. A proposta foi recebida com entusiasmo e aprovada por todos. A FAPESP já tinha sido a proponente de acordos bilaterais de apoio à pesquisa no âmbito do Confap, mas foi a primeira iniciativa de apoio coordenado de pesquisa envolvendo várias FAP.
Chegou-se a um modelo, consolidado na primeira chamada de propostas, baseado no apoio a projetos colaborativos com pesquisadores de ao menos três estados, um deles necessariamente da Amazônia, e dividido em três grandes áreas de interesse: o estudo do território da Amazônia e das pessoas que vivem na floresta e nas cidades da região e o fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis. “O modelo foi bem recebido e acabamos tendo a adesão de 20 FAP já no primeiro edital, cada uma financiando os pesquisadores de seu estado”, explica Odir Dellagostin, presidente do Confap, que coordena a iniciativa juntamente com o Consecti. Ele destaca que foi a primeira vez que tantas fundações estaduais atuaram juntas. “As FAP têm bastante experiência com cooperação bilateral, inclusive com instituições internacionais, mas não com vários estados ao mesmo tempo”, observa. O CNPq teve participação no primeiro edital suplementando o investimento de alguns estados que não dispunham de recursos suficientes para financiar todos os projetos aprovados, a exemplo do Acre, do Amapá e do Pará.
Rafael Andery, secretário-executivo da Iniciativa Amazônia+10, conta que uma das inspirações para o arranjo previsto no primeiro edital foram as chamadas do Belmont Forum, um grupo formado por 27 instituições de fomento de diversos países, entre as quais a FAPESP, que financiam projetos de pesquisa em rede sobre mudanças ambientais. Uma preocupação era garantir que os projetos tratassem de temas com impacto na sociedade dos estados da Amazônia. “Uma condição que estabelecemos foi que os projetos buscassem ter impacto no desenvolvimento da região”, explica Marcel Botelho, diretor da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), ligada ao governo do Pará, que integra o comitê executivo da iniciativa juntamente com o diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, Carlos Américo Pacheco, e a diretora-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa da Amazônia (Fapeam), Márcia Perales.
“Consideramos essencial olhar abaixo do dossel da floresta, que é onde vivem os amazônidas”, diz Botelho, contrapondo-se a pesquisas baseadas em imagens de satélites que veem a Amazônia acima da copa das árvores. As expedições científicas também se preocuparão com o impacto econômico dos resultados da pesquisa. “Hoje, o que se conhece na Amazônia é o que está à beira dos rios e das estradas. Conhecemos, quando muito, 300 espécies de peixes da Amazônia, mas isso deve ser apenas 10% das que existem. Ampliar esse conhecimento pode ajudar a gerar riqueza para a região.”
A primeira chamada ficou aberta entre julho e agosto de 2022 e surpreendeu pelo número de projetos submetidos: 152 ao todo. Trinta e nove projetos foram selecionados, com investimentos de quase R$ 42 milhões, em temas como biodiversidade, mudanças climáticas, bioeconomia, uso da terra e melhoria das condições de vida da região amazônica. Desse total, a FAPESP investiu R$ 14,6 milhões em 20 projetos que têm a participação de pesquisadores do estado de São Paulo. As fundações do Amazonas e do Pará destinaram, respectivamente, R$ 7,1 milhões e R$ 5,3 milhões ao edital, seguidas pela agência do Rio de Janeiro (Faperj), com R$ 5,2 milhões. “A chamada tinha três objetivos que foram cumpridos com sucesso”, diz Andery. “Conseguimos injetar recursos de forma emergencial no sistema de ciência e tecnologia da Amazônia em um momento de escassez aguda, mapeamos as redes de pesquisa que existiam e, apesar dos prazos muito curtos para apresentar propostas, também estimulamos a formação de algumas redes novas.”
O biólogo Carlos Alfredo Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que coordenou a análise científica dos projetos da iniciativa financiados pela FAPESP, conta que grupos já atuantes na região foram contemplados no primeiro edital. “Como houve pouco tempo para apresentação das propostas, equipes com experiência em pesquisa da Amazônia tiveram mais facilidade de participar”, explica. Alguns projetos, observa Joly, descendem de um outro grande esforço de pesquisa na região: o Programa de Grande Escala da Biosfera-atmosfera na Amazônia, o LBA, criado em 1998.
Um exemplo é um projeto sobre as consequências ambientais do crescimento da aquicultura na região, em comparação com a pegada de carbono de produção de outros tipos de animais. O coordenador do projeto em São Paulo é o agrônomo Jean Ometto, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que participou do LBA. Há também um punhado de projetos no campo da saúde pública e da virologia. Um deles tem pesquisadores de nove estados e busca mapear a diversidade de protozoários, vírus e bactérias e analisar o risco que a degradação ambiental e a mudança no padrão de uso da terra podem ter nos ciclos de reprodução desses patógenos. Outro busca formar uma rede de pesquisadores para avaliar como o desmatamento em torno da rodovia BR-319, no Amazonas, e a mineração na região de Carajás, no estado do Pará, podem influir na disseminação de vírus emergentes.
O estudo do impacto das mudanças climáticas está presente em projetos como o que estuda a possibilidade de usar a herpetofauna (tartarugas e outros répteis e anfíbios) da Amazônia como referência sobre as respostas da biodiversidade às alterações da temperatura. Oito projetos têm como foco o estudo das cadeias de valor de produtos gerados pela floresta, entre peixes como o pirarucu e frutos como o açaí e a castanha-do-brasil. “Nenhum desses produtos, tomados isoladamente, parece ter força para impulsionar a bioeconomia na Amazônia, mas quando se vê que há um conjunto de oito iniciativas com objetivo convergente, aumentam as chances de que surjam grandes contribuições”, afirma Joly, que ressalta a necessidade de investir no treinamento dos grupos de pesquisa para garantir a padronização e a organização adequada dos dados coletados.
Com a retomada dos investimentos em ciência e tecnologia no país em 2023, a Iniciativa Amazônia+10 conseguiu atrair novas fontes de recursos e ampliou sua governança. O UK Research and Innovation (Ukri), principal agência de fomento à pesquisa do Reino Unido, disponibilizou para a chamada das expedições científicas £ 4 milhões (aproximadamente R$ 24 milhões). “É uma nova oportunidade para os pesquisadores britânicos trabalharem em parceria com os seus pares no país, de pesquisar áreas que não são muito conhecidas na Amazônia e de trabalhar em equidade com as comunidades tradicionais e povos indígenas”, disse à Agência FAPESP Rossa Commane, diretor da Rede de Ciência e Inovação para a América Latina da Embaixada Britânica no Brasil. Um edital para financiar workshops de pesquisadores brasileiros e do Reino Unido em temas da Iniciativa Amazônia+10, financiado por um fundo do governo do Reino Unido, esteve aberto entre novembro de 2023 e janeiro de 2024 – e deve divulgar seus resultados em breve. Instituições como a Fundação Nacional de Ciência da Suíça e o Centro Universitário da Baviera para América Latina também investiram no novo edital.
O CNPq ganhou, igualmente, protagonismo. “Temos tradição em pesquisas sobre a Amazônia e nossa abrangência nacional pode ser útil para impulsionar a iniciativa”, diz o físico Ricardo Galvão, presidente do CNPq. “Além disso, somos os responsáveis por autorizar a participação de cientistas do exterior em pesquisas no Brasil, que será necessária nas expedições.”
Outros editais devem ser lançados ainda neste ano. Um deles envolve um programa de mobilidade para estimular a fixação de doutores em instituições de pesquisa da região amazônica. “Não adianta financiar estudos sobre Amazônia sem formar recursos humanos que permaneçam na região e sigam ampliando o conhecimento sobre a diversidade social e biológica da floresta”, diz Carlos Joly. “Programas anteriores, como o LBA, não tinham essa preocupação e os pesquisadores acabaram voltando para seus estados ao final de seus projetos.” Outra ideia é investir na ampliação da infraestrutura científica da região. “Se queremos fixar pesquisadores, precisamos garantir a eles laboratórios onde possam trabalhar”, diz Odir Dellagostin. A iniciativa também deve gerar spin-offs. “Já temos grupos de trabalho analisando a possibilidade de criar um programa semelhante sobre a Caatinga, um bioma com potencial para gerar redes entre pesquisadores do Nordeste e colegas de outros estados”, afirma o presidente do Confap.
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