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Musicologia

Coleção explora diversidade musical das regiões do país

Livros conjugam o estudo da sonoridade com a história social das festas, concertos e bandas

João da Baiana (1940-1950) / Fotógrafo não identificado / Coleção Almirante / Acervo do FMIS-RJO sambista João da Baiana no Rio de Janeiro, entre as décadas de 1940 e 1950, com seu pandeiro: instrumento foi alvo de perseguição policial no início do século XXJoão da Baiana (1940-1950) / Fotógrafo não identificado / Coleção Almirante / Acervo do FMIS-RJ

Quando um grupo se reúne em torno da mestra griô Ana do Coco, na roda de coco Novo Quilombo, no município paraibano de Conde, a música que se toca ali é resultado de influências múltiplas. A sonoridade, a dança e o canto evocam fontes africanas, indígenas, árabes e europeias. Essa diversidade de referências também ocorre no extremo norte do Brasil: em Roraima, estado com 640 mil habitantes, festas cívicas e festivais de jazz apresentam sons nascidos do encontro de ritmos caribenhos, cantos ameríndios e até mesmo tradições gaúchas. Já no samba, o pandeiro, instrumento considerado como um dos símbolos nacionais, reflete uma história tortuosa de conflito racial e nacionalismo populista juntamente com o ritmo que produz.

Esses são alguns dos relatos presentes na coleção Histórias das músicas no Brasil, composta de cinco livros, cada um dedicado a uma das regiões do país. Editada pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (Anppom), a série está disponível para download gratuito no site da instituição. Ao colocar no plural tanto “história” quanto “música”, a coletânea ressalta a enorme variedade de influências que determinam como a música se faz em um país continental e multirracial como o nosso.

Organizado pelos musicólogos Marcos Holler, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), e Mónica Vermes, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o projeto busca dar visibilidade à produção acadêmica atual. “Um dos nossos objetivos foi mostrar como a história da música tem se enriquecido ao interagir mais de perto não só com a etnomusicologia, mas também com a sociologia e a antropologia”, afirma Vermes, diretora de publicações da Anppom.

“Há muita pesquisa em música sendo feita no Brasil, mas percebemos que a divulgação muitas vezes fica restrita à região onde ela é produzida”, acrescenta Holler. “Foi por isso que escolhemos dividir a publicação em cinco volumes, com recorte regional bem definido.”

Esse campo de estudos vem crescendo no Brasil desde a década de 1980 – a própria Anppom foi fundada em 1988. Neste século, a tendência se acelerou, acompanhando a expansão das universidades no país, de acordo com o músico e historiador André Acastro Egg, da Universidade Estadual do Paraná (Unespar) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que editou, com a historiadora Márcia Ramos de Oliveira, da Udesc, o volume dedicado à região Sul. O crescimento trouxe consigo a diversificação temática que, além da análise da prática musical e das sonoridades, incorporou o estudo dos aspectos sociais, políticos, étnicos, econômicos e de gênero.

Ao longo do século XX, o estudo da música feita no Brasil se concentrou excessivamente no desenvolvimento da vertente erudita, segundo Egg. “No singular, a expressão ‘história da música’ remete a um jeito de pensar herdeiro do positivismo do século XIX, que produz, sobretudo, estudos focados em compositores e obras, principalmente clássicos”, diz o pesquisador. “A partir do final do século XX, começou uma renovação metodológica, que consiste em pensar a música no país em relações históricas mais amplas.”

De acordo com a musicóloga e historiadora Ana Guiomar Rêgo Souza, da Universidade Federal de Goiás (UFG), apenas nos últimos 20 anos a pesquisa em história da música se abriu de fato para a pluralidade das manifestações, além da matriz europeia. “É claro que não é possível excluir as fontes europeias, portuguesas em particular, até primórdios do século XIX, da música brasileira. Mas nosso objetivo é mostrar como ela sempre esteve em contato com outras manifestações”, explica Souza, que organizou com a educadora Flavia Maria Cruvinel, também da UFG, o volume sobre o Centro-Oeste.

Segundo Holler, a produção acadêmica em história da música foi muito impulsionada pela tecnologia digital. A fonte mais evocada nesse campo é a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, que desde 2012 disponibiliza on-line os periódicos brasileiros publicados a partir de 1808, exceto os que ainda estão em circulação. É nesse amplo acervo que se encontram notícias de apresentações, gravações e turnês, críticas e crônicas musicais, além de anúncios de instrumentos, discos e salas de concerto.

Milena MedeirosIntegrantes do grupo de coco de roda Novo Quilombo, da ParaíbaMilena Medeiros

Na introdução do volume dedicado ao Sudeste, as historiadoras Virgínia de Almeida Bessa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Juliana Pérez González, pesquisadora independente, afirmam que o século XX também testemunhou a tendência de procurar uma música nacional, ou seja, a “brasilidade” nessa manifestação artística. Mas, em se tratando de um país continental, como falar em uma música nacional única?

Essa questão é abordada pelo percussionista e musicólogo Eduardo Vidili, da Udesc, em seu artigo no mesmo volume. O pesquisador observa que diversas canções consideradas a quintessência da brasilidade tratam o pandeiro como símbolo nacional: é o caso de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (1903-1964), com o verso “terra de samba e pandeiro”, e Brasil pandeiro, de Assis Valente (1911-1958), que coloca a associação diretamente no título.

Contudo, esse pequeno instrumento de percussão chegou a ser perseguido pela polícia nos primeiros anos do século XX: associado à vadiagem, podia levar sambistas à cadeia. Músicos hoje admirados, como João da Baiana (1887-1974), relataram em entrevistas anos mais tarde a repressão que sofreram. Na década de 1930, entretanto, o pandeiro já “era reverenciado, investido de uma chave de orgulho, como algo que nos representava como nação”, diz Vidili. Explicar essa transição rápida passa por circunstâncias como a interação entre ranchos carnavalescos e jornalistas, a portabilidade do instrumento e o esforço do governo de Getúlio Vargas (1882-1954), que transcorreu entre 1930 e 1945, para desenvolver um nacionalismo cultural no país.

“Foi a ascensão do rádio o fator decisivo para consolidar a posição do pandeiro no imaginário nacional”, constata Vidili. Em 1932, Vargas regulamentou a exploração de publicidade no rádio, o que permitiu a estruturação de emissoras comerciais, com destaque para a Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro. “Versátil, o pandeiro se encaixou muito bem no esquema de produção das rádios, em que conjuntos musicais contratados tocavam ao vivo. Ocorreu ali uma espécie de domesticação da batucada. Ao mesmo tempo, os pandeiristas do rádio passaram a ter destaque na imprensa”, prossegue o musicólogo.

De acordo com Vidili, nessa época, ganha força uma formação musical comum até hoje no contexto do choro: o chamado regional. Nele, o único instrumento de percussão é o pandeiro. “Isso acontece pela mesma razão que o leva a estar nas ruas, onde ocorre a perseguição policial: é portátil, produz sons variados e tem um alcance sonoro pequeno em termos de volume, que se adapta ao trio de violão, cavaquinho e flauta.”

No capítulo “A ‘ópera’ em Pirenópolis desde os oitocentos”, escrito em parceria com o filósofo Geraldo Márcio da Silva, da Secretaria de Educação de Goiás, Souza, da UFG, mostra a relação do teatro musical da cidade de Pirenópolis (GO) com as formas de sociabilidade e as estruturas de poder local, sobretudo no século XIX e início do XX. A palavra “ópera” é grafada entre aspas porque esse termo designava qualquer apresentação musical.

O eixo da sociabilidade musical na região eram as Festas do Divino Espírito Santo, que reuniam a população em torno de bandas que tocavam a céu aberto, principalmente com metais. Essas mesmas bandas se apresentavam em teatros, com o acréscimo de instrumentos de cordas, o que as tornava um pouco semelhantes às orquestras sinfônicas. “As festas eram instituições muito importantes em cada localidade, praticamente uma matriz identitária”, diz Souza.

Nesse contexto, as bandas desempenhavam um papel fundamental, segundo a historiadora e musicóloga. Os conjuntos tinham diferentes origens: formavam-se nas igrejas, nas instituições militares e policiais, mas também por iniciativa de particulares. É o caso da banda Phoenix, fundada no século XIX, em Pirenópolis, pelo músico Joaquim Propício de Pina (1867-1943), que até hoje permanece na ativa. “As bandas dominaram a cena musical da segunda metade do século XIX no Brasil, em um tempo sem televisão ou rádio. Não é possível imaginar uma festividade sem banda nessa época, porque só havia orquestras nas cidades maiores e, assim mesmo, eram poucas.” O tema das bandas e das festas figura em vários artigos do volume dedicado ao Centro-Oeste.

Arquivo da Banda Phoenix | Reprodução / Facebook / Trio RoraimeiraNo alto, a banda Phoenix, de Pirenópolis (GO), nos anos 1940, e, abaixo, o Trio Roraimeira, em 2017, expoente de movimento musical do Norte do BrasilArquivo da Banda Phoenix | Reprodução / Facebook / Trio Roraimeira

Souza acrescenta que uma descoberta importante de estudos recentes foi o papel das mulheres na sociabilidade musical da região. “A alta sociedade se reunia em saraus, que eram organizados fundamentalmente pelas mulheres. Elas tocavam e cantavam até com mais frequência do que os homens”, informa. As mulheres tinham papel de organização e comando, inclusive na música executada em catedrais. “Porém, quando vinham padres visitadores do Vaticano, elas recuavam e se afastavam discretamente dessa função.”

No volume dedicado ao Nordeste, os etnomusicólogos Eurides Santos, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e Erivan Silva, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), abrem seu artigo afirmando que, a exemplo de outras manifestações, “os cocos são, ao mesmo tempo, gênero musical e evento popular envolvendo música, dança e poesia”. Com base na conjunção de sons, sociabilidade e relações raciais, os autores analisam a presença e o significado dessa prática, caracterizada por um canto na forma de pergunta e resposta, acompanhada por palmas e dança em roda.

De origem afro-brasileira, o coco se espalhou por áreas rurais e urbanas de estados como Alagoas, Pernambuco e Paraíba, acompanhando a diáspora da população negra. É praticado em muitos quilombos até hoje. Adotado por comunidades indígenas em cerimônias como o Toré e o culto da Jurema, tornou-se “um símbolo de resistência e um capital simbólico afro-indígena em boa parte do Nordeste”, observa Santos, da UFPB. Laudos antropológicos usados em processos de demarcação de terras indígenas ou quilombolas chegam a apontar a manifestação do coco de roda como sinal de ocupação antiga da terra.

Já no Norte do país, a conjunção entre o processo histórico e a diversidade de sons se revela de maneira condensada em Roraima, segundo o musicólogo Gustavo Frosi Benetti e o educador musical Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva, ambos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Como escrevem em um dos capítulos do volume dedicado a essa região, a população de Roraima tem um perfil diverso, que reflete as sucessivas ondas de ocupação da Amazônia promovidas pelo governo brasileiro: das fazendas do fim do século XIX à migração incentivada pelo regime militar (1964-1985). Mais recentemente, o avanço da fronteira agropecuária, o garimpo e a chegada de imigrantes venezuelanos também ampliaram o leque demográfico de Roraima.

Como resultado, uma grande variedade sonora se encontra hoje no estado. Os pesquisadores fizeram um levantamento dos estilos praticados na capital Boa Vista e em 14 municípios do interior. Encontraram desde músicas de origem indígena, cujo primeiro registro foi feito pelo antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) entre 1911 e 1913, até o reggae caribenho que vem da Guiana. Em cidades como São João da Baliza e Amajari, a forte presença da população oriunda do Nordeste faz com que festas juninas sejam muito populares. Já em São Luiz, desde a década de 1990 migrantes gaúchos realizam festas tipicamente sulinas, como a Semana Farroupilha e a Vaquejada.

“No caso do reggae, o que chegou a Boa Vista através do município de Bonfim, que faz fronteira com a cidade guianense de Lethem, foi uma sonoridade particular, diferente daquela que associamos a Bob Marley [1945-1981] e outros nomes famosos do reggae original, que surgiu na Jamaica”, acrescenta Silva. “Assim, formou-se na região um caldeirão musical que mistura também o carimbó paraense, os elementos caribenhos vindos da Venezuela e outras referências. Esse cruzamento de sons é muito ouvido em ocasiões como o festival de jazz de Tepequém.”

Um momento decisivo para a formação da sonoridade da região foi a década de 1980. Na época, por meio de festivais de música e encontros de compositores, surgiu o Movimento Roraimeira. “Esse é um fenômeno bastante estudado no estado. Era fortemente calcado na produção autoral e tinha a perspectiva de criar uma identidade regional por meio das artes de forma geral, não só a música. Nomes como Eliakin Rufino, Neuber Uchôa e Zeca Preto se destacaram no período e em suas composições é possível perceber a variedade de matrizes, sejam europeias, dos povos originários ou de culturas afro-latinas”, finaliza Benetti.

Livro
HOLLER, M. e VERMES, M. (Orgs.). Histórias das músicas no Brasil (5 volumes). Vitória-ES: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (Anppom), 2023.

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