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Bioquímica

Como um punhal

Veneno de ferrão de arraia fluvial provoca dor, inchaço e necrose

REPRODUÇÃO DE PEIXES DO RIO NEGRO/ ALFRED WALLACEArraia fluvial (Potamotrygon sp): ilustração do naturalista britânico Alfred Wallace, que percorreu o rio Negro entre 1850 e 1852REPRODUÇÃO DE PEIXES DO RIO NEGRO/ ALFRED WALLACE

Quem freqüenta as praias do rio Tietê no interior de São Paulo deve prestar atenção onde pisa. Há três anos banhistas e pescadores vêm dividindo esse espaço de lazer com arraias fluviais que, às vezes, causam dolorosos acidentes. Com o corpo em forma de disco, esse peixe de até 30 quilos costuma se enterrar na lama nas regiões rasas do rio. Quando um turista distraído pisa seu corpo, leva uma ferroada. Não que a arraia seja agressiva. Mas o pisão aciona um mecanismo involuntário de defesa do peixe, que agita seu longo rabo e acaba enterrando o ferrão na perna ou no pé do banhista –  a morte em setembro do zoólogo e apresentador de TV australiano Steve Irwin, vítima de uma ferroada no peito desferida por uma arraia marinha, é um caso raro.

Com quase 10 centímetros de comprimento, o ferrão da arraia fluvial é uma estrutura óssea em forma de faca serrilhada, recoberto por um tecido glandular que se rompe na ferroada e libera o veneno no organismo da vítima. O aumento desse tipo de acidente nos últimos anos levou uma equipe de pesquisadores paulistas a investigar as carac- terísticas dos ferimentos e do próprio veneno desse peixe, que até alguns anos atrás não freqüentava o Tietê.

Análises coordenadas pela biomédica Kátia Cristina Barbaro, do Laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan, mostraram que o veneno da arraia fluvial (Potamotrygon falkneri) é mais tóxico que o de uma arraia marinha encontrada em todo o litoral brasileiro: a Dasyatis guttata, mais conhecida como arraia-bicuda ou arraia-prego. Para avaliar os efeitos de uma ferroada, a equipe de Kátia aplicou doses iguais de veneno de cada uma dessas espécies em grupos diferentes de camundongos.

Um dia após injetar o veneno da arraia fluvial em quatro camundongos, só dois continuavam vivos. No segundo dia, todos estavam mortos. Já os roedores que haviam recebido o veneno da arraia-bicuda sobreviveram. Os testes mostraram ainda que os venenos de ambas as espécies provocam inchaço e dor intensa. Só a penetração do ferrão, aliás, já causa um ferimento profundo que arde como fogo. Mas é o veneno que contribui para que a dor, comparável à de uma facada, estenda-se por até 24 intermináveis horas.

Não bastassem esses efeitos nada agradáveis, o veneno da arraia fluvial também causa a morte do tecido (necrose) na região da ferroada, além de lesão muscular. Em geral são necessários até três meses para a cicatrização completa do ferimento. Kátia também notou que o veneno da Potamotrygon falkneri parece se espalhar mais facilmente no organismo. É que um de seus componentes é a enzima chamada hialuronidase, que ajuda a dispersão das toxinas. A hialuronidase dissolve um composto gelatinoso – o ácido hialurônico – que mantém unidas as células dos tecidos.

Estudando a morfologia do ferrão e o tecido que o envolve, a equipe do Butantan, com o auxílio de pesquisadores do Laboratório de Biologia Celular, constatou que a arraia de água doce também pode liberar maior quantidade de veneno em uma ferroada porque seu ferrão é todo recoberto por tecido glandular – produtor de veneno. Já no ferrão da arraia marinha o tecido glandular restringe-se a apenas dois pontos.

Marcela da Silva Lira, bióloga do grupo de Kátia, tenta atualmente produzir um soro capaz de combater a atividade do veneno da arraia de água doce e reduzir seus efeitos. Embora ainda não se tenha chegado ao antídoto, há uma boa notícia. Nos testes feitos no Butantan, o veneno da Potamotrygon e o da Dasyatis estimularam o organismo de coelhos a produzir anticorpos. “É um sinal de que o soro pode neutralizar o veneno das arraias,  diz Kátia.

Origem remota
Apesar da diferença aparente – a Dasyatis guttata tem o corpo em forma de triângulo e pode atingir o triplo do tamanho da arraia de água doce -, imagina-se que essas duas espécies tiveram um ancestral comum que viveu no mar e chegou ao continente entre 20 milhões e 10 milhões de anos atrás, quando o oceano Atlântico ocupava parte das atuais regiões Sul e Centro-Oeste do país. Até pouco tempo atrás, as quase 20 espécies de arraias fluviais existentes no Brasil eram encontradas apenas nos rios Paraná, Paraguai, Araguaia, Tocantins e na bacia amazônica. Acredita-se que a construção de barragens das hidrelétricas da bacia dos rios Paraná e Tietê nas últimas três décadas tenha favorecido a migração das arraias até pelo menos a região de Presidente Epitácio e Castilho, no interior de São Paulo.

Foram os acidentes com a P. falkneri no alto rio Paraná que chamaram a atenção dos médicos João Luís Costa Cardoso, do Hospital Vital Brazil, e Vidal Haddad Júnior, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, para a chegada desse peixe ao interior de São Paulo. Cardoso e Haddad decidiram procurar Kátia após verificar que as pessoas ferroadas pela arraia fluvial desenvolviam necrose semelhante à causada pelo veneno da aranha-marrom (Loxosceles sp), estudada pela pesquisadora. Do primeiro contato para cá, Kátia tornou-se uma das coordenadoras da rede que acompanha os acidentes com a arraia de água doce no Paraná, no Mato Grosso do Sul e em São Paulo e investiga o impacto ambiental provocado por esse peixe. Em colaboração com Patrícia Charvet-Almeida, ela estuda também o veneno de arraias do Pará.

Enquanto não se produz um antídoto para o veneno das arraias, os pesquisadores aprendem a amenizar a dor das ferroadas com os ribeirinhos, que costumam mergulhar a perna ou o braço ferido pelo ferrão em uma bacia com água quente. A água quente diminui a dor porque o veneno da arraia é sensível ao calor, como Kátia comprovou em experimentos de laboratório. Essa estratégia simples, porém, não impede a necrose na região do ferimento-  no caso dos pescadores, geralmente a mão ou o braço, atingidos quando tentam livrar o peixe da rede ou do anzol. Incomodados pelos acidentes ou ainda pouco habituados ao peixe recém-chegado, os ribeirinhos e freqüentadores do Tietê não apreciam a presença das arraias nem sua carne, embora seja muito saborosa.

O Projeto
Estudos comparativos entre glândulas secretoras de venenos de arraias fluviais (gênero Potamotrygon) e arraias marinhas (gênero Dasyatis)
Modalidade

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa
Coordenadora

Kátia Barbaro –  Instituto Butantan
Investimento

R$ 37.750,00 (FAPESP)

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