No centro de tecnologia da Mahle Metal Leve, instalado em uma área de proteção ambiental da serra do Japi, em Jundiaí, a 50 quilômetros da capital paulista, componentes de motores – como pistões, anéis, camisas, bronzinas, filtros de ar e de combustível – são desenvolvidos e testados em amplas salas envidraçadas para que visitantes e clientes possam percorrer as instalações sem atrapalhar a rotina de testes e pesquisas. O edifício, composto por três prédios independentes, segue os preceitos da arquitetura sustentável, com um espelho d’água no teto que funciona como isolante térmico, amplas claraboias que deixam vazar a luz natural e a preservação da inclinação natural do terreno. Cerca de 300 pessoas trabalham no local, entre técnicos, engenheiros e estagiários, das quais mais de 200 estão envolvidas diretamente com pesquisas.
“Aqui fica o segundo maior centro de tecnologia da Mahle no mundo”, diz o engenheiro mecânico Ricardo Simões de Abreu, de 56 anos, graduado pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e vice-presidente mundial de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da empresa criada há mais de 90 anos na Alemanha para fabricar pistões de motores de liga leve. O modelo dos centros de tecnologia foi estruturado por Abreu após ele assumir, em 2005, o cargo de responsável mundial pelo desenvolvimento de componentes metálicos do grupo. Cada um dos sete centros, dos quais quatro com competência mundial, possui um diretor-geral, especialistas em produtos e responsáveis pelas tecnologias. “Estabeleci um modelo em que todos os centros têm competência para trabalhar com todos os componentes de motores, mas um deles lidera o processo”, diz Abreu, que deu aulas durante vários anos no Instituto Mauá de Tecnologia, no Centro Universitário da FEI e na UMC antes de entrar para a Mahle, onde está há 17 anos.
O principal centro de tecnologia está em Stuttgart, na Alemanha, e responde por pistões, pinos, eixo comando, entre outros componentes. O do Brasil, por anéis e camisas para cilindros de motores, além de ser referência mundial em motores flex fuel. O de Northampton, na Inglaterra, é responsável por serviços de engenharia. O de Detroit (Estados Unidos), por bielas. Já os dois no Japão e um na China atendem os clientes dos seus respectivos países. Cerca de 48 mil pessoas trabalham em 100 fábricas espalhadas pelo mundo e nos sete centros de P&D. Em 2012, o grupo Mahle mundial teve um faturamento (receita líquida de vendas) de cerca de R$ 19,7 bilhões. Os investimentos com P&D foram de cerca de R$ 930 milhões (4,70% da receita líquida). A Mahle Metal Leve teve um faturamento de R$ 2,2 bilhões no ano passado e investiu R$ 67 milhões (3,02% da receita líquida) em P&D.
Entre as inovações desenvolvidas pelo centro de pesquisa brasileiro estão desde filtros de nova geração para aplicação em motores flex fuel até o uso de carbonitreto de cromo – um composto químico formado por carbono e cromo – em escala nanométrica para revestimento de anéis de pistão, o que resulta na redução de atrito e, portanto, maior durabilidade das peças, além de diminuição da queima de combustível e das emissões de gás carbônico. A inovação vai substituir o material galvanizado utilizado atualmente para essa finalidade. “O carbono na forma de grafite não tem resistência mecânica, mas responde por uma função muito importante, que é a redução do atrito”, diz o engenheiro mecânico Paulo Mordente, de 37 anos e há 14 na empresa, pesquisador da área de ciência dos materiais e coordenador do projeto. A redução do atrito – entre 10% e 20%, segundo o pesquisador – se dá pela distribuição de ilhas de grafite da ordem de 5 a 10 nanômetros espalhadas pelo revestimento cerâmico dos anéis do pistão. Como consequência, os carros gastarão 1% menos combustível.
O projeto de nanotecnologia teve origem em 2004 dentro de um consórcio europeu, formado por empresas interessadas em revestimentos de proteção superficial e universidades como a de Basel, na Suíça, com apoio governamental. “Após três anos e meio o consórcio foi encerrado, mas a Mahle decidiu continuar as pesquisas, que resultaram em três depósitos de patente e um produto previsto para entrar no mercado em 2017”, diz Mordente, graduado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, e com mestrado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O novo produto será aplicado inicialmente em motores de carros europeus.
“A demanda de motores é maior na Europa e nos Estados Unidos, mas isso não significa que os componentes inovadores são desenvolvidos lá fora”, diz o engenheiro mecânico André Ferrarese, de 35 anos, coordenador da área de inovação, que desde 1999 está na empresa, onde começou como estagiário. “Hoje 70% dos motores diesel para carros de passageiros fornecidos pela Mahle para a Europa utilizam um anel de pistão desenvolvido aqui.” Trata-se de um anel controlador de óleo de nome X-Taper capaz de reduzir a força e, com isso, o atrito, mas sem perder o poder de vedação e raspagem. “Com isso há um ganho no consumo de combustível”, diz Ferrarese, graduado e com mestrado na Poli-USP.
Só em 2012 a empresa depositou 28 patentes originais do Brasil. Ou seja, todas foram geradas aqui. O número corresponde a quase o dobro dos 16 depósitos feitos em 2011. “Temos metas de número de patentes depositadas, de projetos transformados em produtos no mercado, de publicação de artigos científicos”, relata o engenheiro mecatrônico Fernando Yoshino, de 38 anos, formado pela Poli-USP e responsável pela área de engenharia de produtos para sistemas de filtração. Só neste primeiro semestre a sua equipe, composta por 11 pessoas, depositou nove patentes no Brasil. Inovações desenvolvidas pelo seu grupo já estão no mercado, a exemplo de um sistema para retirada de água do reservatório de filtros de combustível diesel. O acúmulo de água no reservatório constitui um sério problema para os sistemas de injeção. Sua equipe também cuida de inovações relacionadas aos motores flex fuel, como um filtro de combustível de nova geração com maior capacidade de filtração das impurezas e durabilidade, o que vai resultar na ampliação do intervalo de manutenção.
Portfólio diversificado
A Mahle, que começou suas atividades no Brasil em 1975 fabricando pistões para o setor automotivo, ao longo dos anos comprou empresas como a concorrente Metal Leve – que também fazia bronzinas – e junto com a Magnetti Marelli comprou a Cofap, que produzia amortecedores e anéis de pistão. “Nesses movimentos de aquisição a Mahle foi diversificando seu portfólio e agregando mais peças à sua capacidade de desenvolvimento”, diz Ferrarese. “De fabricante de pistões ela passou a produtora de componentes de motores.” A inauguração do centro de tecnologia de Jundiaí em junho de 2008 deu continuidade às pesquisas que já eram feitas em Santo Amaro, na zona Sul de São Paulo, e agregou novas atividades e grupos de pesquisa. Um exemplo são os laboratórios de componentes de peças automotivas, espalhados pelo segundo andar, e o laboratório de motores, que ocupa o terceiro andar do prédio. O grupo, com 52 integrantes, foi montado pelo engenheiro mecânico Carlos Roberto Camargo, de 48 anos, gerente de engenharia experimental de testes. “Quando vim para cá só havia técnicos, fui o primeiro engenheiro do grupo”, relata Camargo, formado pelo Centro Universitário da FEI. Ele formou a equipe de engenharia experimental e reorganizou os laboratórios.
Diferentes tipos de projetos fazem parte do dia a dia dos pesquisadores. Eles se dividem em portfólio de produtos, em que existe um compromisso de colocar a peça no mercado a um custo competitivo em curto prazo; de sistemas, em que a demanda é por uma solução sistêmica a partir de produtos existentes; ferramentas básicas, em que são desenvolvidos métodos de análise, de simulação ou ainda de testes que resultem em novos componentes; e portfólio de incubação tecnológica – ideias que a princípio, pelo seu grau de inovação, não são associadas a uma utilidade. “Somente quando se tem certeza do desempenho técnico e da capacidade de produção é que alguns conceitos ou ideias passam para o portfólio da empresa”, diz Ferrarese. A área de inovação é responsável por quatro processos: gestão de ideias, propriedade intelectual, imagem, que é a divulgação tecnológica e técnica de um novo produto, e inteligência competitiva.
A Mahle brasileira tem atualmente mais de 100 projetos em desenvolvimento, dos quais 70 contam com algum tipo de apoio governamental. Um dos projetos, financiado pela FAPESP na modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), envolve um consórcio entre empresas e universidades com foco nos motores bicombustíveis (ver Pesquisa Fapesp n° 196). Participam do estudo Volkswagen, Fiat, Renault, Mahle, Petrobras e Fundição Tupy, além da USP, Universidade Federal do ABC (UFABC) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“A ideia de estudar problemas do uso do etanol nos motores surgiu durante discussões de um grupo de tribologia na Poli, do qual faço parte”, diz o engenheiro mecânico Eduardo Tomanik, de 55 anos, consultor técnico de P&D da área de tecnologia dos produtos da Mahle, há quase 30 anos na empresa. A tribologia envolve ciências para o estudo dos fenômenos relativos ao atrito, desgaste e lubrificação. Ao longo de sua carreira Tomanik trabalhou em vários projetos, a exemplo dos anéis de pistão revestidos de PVD (técnica de deposição física a vapor), o que resulta em um produto com menor atrito. Em 2004 os anéis com PVD começaram a ser produzidos em Portugal para o mercado europeu e agora estão sendo fabricados também no Brasil.
Republicar