Quando começa a sentir a garganta arranhando, “querendo inflamar”, o gestor ambiental Luciano Assunção entra no mato atrás de folhas de pitanga. Em casa, prepara uma receita que sabe de cor: mergulha as folhas na água quente e faz um chá, que deve ser engrossado na panela com açúcar, até virar um xarope. Para melhorar a dor de garganta, tem que ser ingerido uma vez por dia, de preferência à noite. “É só tomar que logo passa”, diz Assunção, que aprendeu a fórmula com os pais quando era criança. Ele mesmo é pai de duas crianças pequenas e lhes administra a beberagem quando é preciso.
A receita não é um tratamento milagroso nem foi tirada de fontes duvidosas da internet, mas faz parte da tradição centenária de uso de plantas medicinais pela comunidade do Quilombo da Fazenda, que fica em Ubatuba (SP). Tanto essa receita quanto outros 436 tipos de uso de 221 plantas foram registrados no livreto O uso das plantas pelo Quilombo da Fazenda, feito pela própria comunidade com a ajuda de pesquisadores do Centro de Estudos Etnobotânicos e Etnofarmacológicos (CEE) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Desde 2015, uma equipe do CEE auxilia os moradores do Quilombo da Fazenda e do Quilombo do Cambury – ambos no litoral paulista – a registrar seus conhecimentos sobre o uso da vegetação local. Os saberes tradicionais dos residentes vão desde fins medicinais até o uso de plantas em peças artesanais e receitas culinárias. “É um conhecimento passado de geração a geração, mas que está se perdendo”, comenta a cientista ambiental Thamara Sauini, estudante de doutorado em biologia química na Unifesp e integrante do CEE. Em oito anos de trabalho, o grupo produziu, com a ajuda dos moradores de cada quilombo, cinco documentários, dois livretos, um manual para manejo da taboa (Typha domingensis) – planta usada para artesanato – e seis trabalhos acadêmicos (artigos e dissertações). O artigo mais recente, publicado em novembro na revista PeerJ, compara o uso de plantas nos dois quilombos com base na etnobotânica participativa. Há também vídeos com instruções para a produção de cosméticos, disponíveis no YouTube.
A metodologia usada pelos pesquisadores para essa produção foi denominada etnobotânica participativa. “Quando me perguntam o que eu, como cientista, pretendo devolver para a comunidade com esse trabalho, digo que não posso devolver algo que já é daquela comunidade”, reflete a bióloga Eliana Rodrigues, coordenadora do CEE e idealizadora da proposta de etnobotânica participativa. “Eles são protagonistas, atores e pesquisadores do projeto”, conta Rodrigues. Na primeira fase do trabalho, entre 2016 e 2018, os moradores dos dois quilombos receberam oficinas sobre métodos de antropologia cultural, botânica e como fazer o levantamento etnobotânico em seus territórios. De 2019 em diante, os pesquisadores da universidade e da comunidade colocaram os aprendizados em prática.
“A comunidade não tem recursos para fazer um livro ou um filme”, afirma Assunção, que só toma remédios alopáticos em casos de urgência. “Prefiro sempre o remédio do mato”, diz. Por muito tempo, a natureza era a única fonte de remédio que a comunidade conhecia. Foi no final dos anos 1970, com a construção da rodovia Rio-Santos, que os moradores quilombolas passaram a ter acesso a serviços de saúde e farmácias nas cidades mais próximas.
No Quilombo da Fazenda, além do registro de saberes para futuras gerações, havia uma demanda por um plano de manejo participativo da taboa. “Como o Parque Estadual da Serra do Mar foi implantado em cima da nossa comunidade, a área de roça ficou mais restrita e precisamos de um registro de como fazemos o manejo, mostrando que não é prejudicial ao ambiente”, explica o gestor ambiental. De acordo com o parque, as comunidades tradicionais localizadas na região podem usar os recursos naturais de forma sustentável desde que haja um plano de manejo para cada espécie utilizada por elas.
A taboa é uma das principais matérias-primas para os artesãos do Quilombo da Fazenda. Trata-se de uma planta aquática nativa do Brasil que, nas mãos de pessoas habilidosas, se transforma em esteiras, bolsas, chapéus, tapetes, fruteiras, descanso de panela e até em porta-retratos. Para isso, colhem as folhas no taboal – preferencialmente na semana de Lua minguante, quando não há muitas pragas nas plantas – no período da manhã e antes da floração. É preciso esperar pelo menos três meses para uma nova colheita. As melhores folhas para o artesanato são as maiores, não amareladas e sem flores. Com a matéria-prima em mãos, os artesãos secam o conjunto de folhas ao Sol, o que pode levar até três dias. Depois, destalam a taboa, ou seja, separam as folhas para mais um período de secagem, que pode ser de quatro até oito dias, dependendo das condições climáticas.
Quando secas, as palhas de taboa podem ser guardadas por longos períodos, segundo o manual Recomendações de boas práticas de manejo para o extrativismo sustentável da taboa, produzido pelo grupo do CEE com os moradores do Quilombo da Fazenda. Os artesãos coletam as folhas de acordo com a demanda local de vendas dos artesanatos. Para fazer as peças de artesanato que são expostas e vendidas na Casa de Artesanato do quilombo, as folhas são trançadas e amarradas à mão.
O plano de manejo foi uma demanda da comunidade para os pesquisadores e o manual sobre a extração foi produzido a partir do conhecimento local, e não pelo caminho inverso muitas vezes praticado pela ciência. “É muito diferente de quando fazemos uma pesquisa e chegamos a determinado resultado para ser aplicado a uma comunidade. A técnica participativa tem origem em um conhecimento que aquelas pessoas dominam e aplicam no cotidiano”, explica a engenheira florestal Sandra Pavan, doutora em ecologia pela Universidade de São Paulo (USP) e consultora ambiental, integrante do projeto. “Por isso é importante a participação dos moradores desde o começo do projeto”, avalia.
No caso da taboa, só quem pratica a extração sabe a melhor forma de fazê-la. “O taboal é alagado, tem lugar que afunda acima do joelho. Mas sabemos exatamente onde atola”, diz Assunção, que também é artesão e conhece muito bem a região – há mais de 20 anos atua como monitor ambiental no parque estadual. “O conhecimento científico muitas vezes ignora o conhecimento tradicional, embora eles se complementem. Essa união tem tudo para dar certo”, opina o morador do quilombo.
A ponte entre a ciência formal, feita em universidades e centros de pesquisa, e o conhecimento tradicional de comunidades quilombolas e indígenas não é fácil de ser construída nem é tão comum, aponta o pedagogo e antropólogo Antonio Carlos Benites Guarani-Kaiowá, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
“Esse diálogo é muito recente: por mais que a antropologia e as ciências sociais nessa área existam há décadas, há resistência da academia como um todo em aceitar que não existe uma única ciência e que há muito o que aprender com outros povos que já existiam muito antes da chegada da medicina e de outros conhecimentos”, avalia Benites, que nasceu e cresceu no município de Tacuru, na aldeia indígena Jaguapiré (MS). “Nossos conhecimentos são de vivência e de prática, não só de fala, mas de fazer. É uma ciência que a gente vive.” Para ele, a pesquisa colaborativa é importante para que esses dois lados comecem a se ouvir.
Em sua aldeia, Benites viu muitos pesquisadores irem e virem. Hoje, ele mesmo registra o conhecimento local e, às vezes, faz estudos de campo em outras aldeias. “O papel da pesquisa escrita é de deixar marcas da nossa resistência e da nossa existência, tanto para quem é de fora quanto internamente, para fortalecer nosso espaço e nossa cultura”, explica o pesquisador, que tem se concentrado em aprender a ciência ocidental, como ele classifica, para usá-la a favor de sua comunidade.
Para Assunção, o registro na academia do conhecimento quilombola é importante para as comunidades locais e vai abrir muitas portas. “Temos outras áreas dentro do parque em que pessoas que fazem o manejo de taboa podem usar o nosso material de base para registrar também seus usos”, diz o gestor ambiental. Segundo Rodrigues, do CEE, o plano de manejo da taboa pode servir de inspiração e fonte de informação para comunidades do Brasil inteiro.
Projeto
Etnobotânica participativa: Conservação e desenvolvimento local no Parque Estadual Serra do Mar ‒ Núcleo Picinguaba, Ubatuba, SP, Brasil ‒ fase 2 (nº 19/19313-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular, Programa Biota; Pesquisadora responsável Eliana Rodrigues (Unifesp); Investimento R$ 136.125,41.
Artigos científicos
BENITES, A. C. Autobiografia: Uma trajetória acadêmica kaiowá e guarani: Che reko ypy ete: Temiguata ava reko nhemombeypy ambue tavyterã/kaiowá e guarani. Revista Desenvolvimento Social. On-line. 20 dez. 2022
FRAGOSO, F. et al. Animais medicinais utilizados por duas comunidades quilombolas da Mata Atlântica, Ubatuba, São Paulo, Brasil. Revista Etnobiología. On-line. 27 abr. 2022.
RODRIGUES, E. et al. Participatory ethnobotany and conservation: A methodological case study conducted with quilombola communities in Brazil’s Atlantic Forest. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine. On-line. 13 jan. 2020.
SAUINI, T. Levantamento etnobotânico participativo entre os moradores do Quilombo Cambury, Ubatuba, SP, Brasil. Repositório Unifesp. On-line. 28 fev. 2019.
SAUINI, T. et al. Participatory methods on the recording of traditional knowledge about medicinal plants in Atlantic Forest, Ubatuba, São Paulo, Brazil. PLOS ONE. On-line. 07 mai. 2020.
SAUINI, T. et al. Participatory ethnobotany: Comparison between two quilombos in the Atlantic Forest, Ubatuba, São Paulo, Brazil. PeerJ. Life and Environment. On-line. 07 nov. 2023.
YAZBEK, P. B. Levantamento etnobotânico participativo entre os moradores do Quilombo da Fazenda ‒ Núcleo Picinguaba, Ubatuba, SP, Brasil: Diálogos entre os conhecimentos tradicionais e acadêmicos. Repositório Unifesp. On-line. 25 jul. 2018.
YAZBEK, P. B. et al. Plants utilized as medicines by residents of Quilombo da Fazenda, Núcleo Picinguaba, Ubatuba, São Paulo, Brazil: A participatory survey. Journal of Ethnopharmacology. On-line. 15 nov. 2019.
Documentários
Etnobotânica participativa
Quilombo da fazenda ‒ Raízes de resistência
Quilombo do Cambury ‒ Herança quilombola ‒ Cambury
Como fazer um shampoo em barra?
Como fazer um esfoliante a partir da casca do coco verde (Cocos nucifera L.)
Plano de manejo participativo da taboa
Parte 1: plano de manejo participativo da taboa
Parte 2: plano de manejo participativo da taboa ‒ Recomendações de boas práticas de manejo