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LITERATURA

Contra a colonização do pensamento

O escritor João Ubaldo Ribeiro contribuiu para as reflexões sobre as diferentes identidades brasileiras

João Ubaldo sentado na raiz de uma árvore nas ruínas da Igreja de  Nosso Senhor de Vera Cruz, em Itaparica, 1989. Na época, ele  estava escrevendo  O sorriso do lagarto

PEDRO MARTINELLIJoão Ubaldo sentado na raiz de uma árvore nas ruínas da Igreja de Nosso Senhor de Vera Cruz, em Itaparica, 1989. Na época, ele estava escrevendo O sorriso do lagartoPEDRO MARTINELLI

Quando tomou posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1992, disse o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, lembrando seu predecessor, Carlos Castello Branco: “Tampouco sou homem de letras no sentido rigoroso do termo. Sou apenas um romancista, um contador de histórias”. Para os estudiosos de sua obra ele foi mais do que isso: era um pensador da identidade de seu povo. Cronista, jornalista e roteirista, o intelectual que morreu no Rio de Janeiro em julho, aos 73 anos, era considerado, sobretudo, o narrador de uma história do Brasil.

João Ubaldo formou-se em direito, fez mestrado em administração e em ciência política, tornou-se professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas desistiu da vida acadêmica. Os pesquisadores que estudam sua obra consideram que ele ganhou relevância não só como escritor, mas também como intelectual e cientista político. Nesse campo, Viva o povo brasileiro teve papel vital. Para Rita Olivieri-Godet, professora titular de literatura brasileira na Université Rennes 2, na França, as páginas de Viva o povo brasileiro mostram a ilha de Itaparica, na Bahia, como um microcosmo do país. “O livro faz parte das obras fundamentais do pensamento brasileiro sobre o Brasil. Ubaldo pertence à classe dos grandes intérpretes da nação”, diz ela. Para a pesquisadora, pelo viés de um amplo afresco dos processos históricos constitutivos da sociedade brasileira e de seus deslocamentos, o romance revisita as diversas visões interpretativas produzidas por intelectuais e escritores ao longo dos séculos. “E reserva um lugar de destaque às manifestações da cultura afro-brasileira, o que lhe permite interrogar as origens dos dramas sociais vividos pela população mestiça, negra e pobre, explorando o saber histórico das lutas”, observa Rita, autora de Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro (Hucitec/EdUEFS/Academia Brasileira de Letras, 2009).

Prestes a celebrar 30 anos de sua primeira edição, em outubro próximo, Viva o povo brasileiro é considerado a obra-prima ubaldiana por mergulhar justamente nas contradições nacionais entre o real (o processo histórico de colonização) e o imaginário (a narrativa). Segundo Helena Bonito Couto Pereira, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a narrativa se insere no domínio da metaficção historiográfica – um tipo de ficção que problematiza a própria possibilidade de conhecimento histórico através de uma releitura intencionalmente subversiva do passado. No enredo marcado entre os séculos XVII e XX, com pitadas de ironia literária, ingredientes do universo fantástico e doses de subversão do discurso oficial, o autor explora trajetórias de diferentes personagens, entre representantes das três etnias responsáveis pelo povoamento do país (o branco, o índio e o negro). “Num extremo, encontram-se personagens que remetem a Macunaíma, no irrefreável egoísmo e no descompromisso moral. Noutro, personagens autenticamente dedicados às lutas políticas, especialmente pela emancipação dos escravos – mas, mais que isso, pela instauração de uma sociedade mais justa”, diz Helena, que é também pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa do Mackenzie. “Trata-se, portanto, de uma obra que suscita reflexões sobre a desigualdade socioeconômica brasileira e de seus corolários, como violência, miséria e crueldade, resultantes do processo de colonização e da complexa composição étnica do país.”

Ubaldo contribuiu para o pensamento antropológico, histórico e sociológico sobre as diferentes identidades no Brasil, dos tempos coloniais ao presente – nas mesmas veredas, mas mais literárias, que Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Darcy Ribeiro (O povo brasileiro, 1995), entre outros. Das diferentes construções no livro, salta aos olhos do leitor uma identidade mestiça, plural e transcultural. De acordo com Rita Olivieri-Godet, por um lado, há a identidade “legitimante”, que corresponde ao olhar das elites e das instituições no poder ao longo de quatro séculos de história. Por outro, a identidade “resistência”, perspectiva dos atores sociais nas posições desvalorizadas pela lógica dominante. Para seus estudiosos, o principal legado é a condição intrínseca à obra ubaldiana de se rebelar contra toda e qualquer forma de colonização do pensamento, das mais evidentes e brutais às mais sutis.

Os especialistas dizem que João Ubaldo assumiu o papel de um escritor intelectual, nos termos do pensador palestino Edward Said, buscando retratar com pena afiada e crítica as angústias individuais e as mazelas sociais, a partir de valores universais. “A missão literária de João Ubaldo era empenhada com o povo. Como um atuante representante intelectual, ele se dedicou inteiramente à atividade literária engajada e política, uma vez que lutou contra as formas de poder com competentes práticas intelectuais, porque soube como usar as palavras e quando intervir por meio delas, pois seus romances foram concebidos como um modo de testemunhar as mazelas sociais, de legar ao seu leitor a consciência das condições de subdesenvolvimento do país ex-colonizado”, afirma a linguista Angela Antunes Conceição, autora da tese de doutorado Caminhos e trilhas do comunitarismo cultural em José Luandino Vieira (Nosso musseque) e João Ubaldo Ribeiro (Viva o povo brasileiro): uma identidade em (trans)formação, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 2011.

“Sem perder de vista sua preocupação com a sociedade, o romance ubaldiano ainda inspira uma ‘vida’ à alminha do povo brasileiro, do oprimido, do marginalizado e, ao mesmo tempo, do opressor, da elite, do burguês. João Ubaldo Ribeiro capta magistralmente a alma pluralizada do Brasil”, pondera Angela. Almas brasileiras bravas, como mostram as últimas páginas do romance: “Não se sabe, nada se sabe, tudo se escolhe. Tudo se escolhe, como sabem as alminhas agora tiritando no frio infinito do cosmos, que as balança como as arraias empinadas pelos meninos de que têm saudades. Almas brasileirinhas, tão pequetitinhas que faziam pena, tão bobas que davam dó, mas decididas a voltar para lutar”.

De Itaparica para o mundo
Os livros de João Ubaldo não ficaram restritos ao Brasil. Títulos como Setembro não tem sentido (1968), Sargento Getúlio (1971), O sorriso do lagarto (1989), A casa dos budas ditosos (1999) e O albatroz azul (2009) foram traduzidos para 12 idiomas. Além de edições em inglês, francês, alemão, espanhol e italiano, suas letras reverberaram em línguas mais distantes como esloveno, finlandês, hebraico, norueguês e sueco. Ao longo de sua carreira, o escritor foi laureado com distinções como dois Jabuti (1972, por Sargento Getúlio, e 1984, por Viva o povo brasileiro) e o Prêmio Camões (2008). No exterior, venceu o prêmio Die Blaue Brillenschlange (1995) e o Anna Seghers (1994), concedido pela Academia de Artes de Berlim, na Feira do Livro de Frankfurt.

E se o intelectual baiano valorizou nos seus escritos a brasilidade, seu cosmopolitismo não foi esquecido. Ao lado de Jorge Amado, ele é um dos autores mais conhecidos no exterior. A consideração é de Rita, que integra o Institut Universitaire de France, há 20 anos fora do Brasil. “Ele é estudado nos cursos de licenciatura e pós-graduação na França. Nos últimos anos, sua presença no país, participando de mesas-redondas e palestras, também ajudou a mobilizar o público em torno de sua obra”, conta a autora, que em novembro lançará Viva o povo brasileiro: a ficção de uma nação plural (Editora É Realizações, 2014).

O próprio Ubaldo fez traduções para o inglês de suas obras, como Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro. Um trabalho hercúleo, considerando os requintes literários e as linhas históricas das duas obras. Por se tratar de um caso singular, essa proeza garantiu ao autor prestígio extra entre seus pares. Quem depois mergulhou nessa arena foi Maria Alice Gonçalves Antunes, diretora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora de estudo que se transformou no livro O respeito pelo original: João Ubaldo Ribeiro e a autotradução (Annablume, 2009). Entre outras considerações, Maria Alice indica que o texto traduzido é um exercício de equilíbrio entre o leitor estrangeiro e a cultura brasileira – e o autor soube se aproximar do leitor estrangeiro, sem apagar a cultura original de seu texto. “Sempre há mudanças quando se traduz, mas não gosto de comentar as possíveis perdas que ocorrem nas traduções. Isso vem de uma visão de tradução como atividade de segunda classe. Quantas obras e autores brasileiros, de literatura e de teorias científicas, estariam aprisionados dentro de um espaço geográfico e cultural se não fosse a tradução?”, argumenta a linguista.

Os pesquisadores são unânimes em afirmar que as histórias de João Ubaldo Ribeiro permitem uma identificação do leitor com questões universais, essencialmente complexas e humanas. Se há linhas do escritor dedicadas ao “exótico” latino-americano, há nas entrelinhas os dramas simplesmente humanos. E gingando entre o ser brasileiro e o cosmopolita, o regional e o universal, o singular e o plural, vive aí o legado de sua obra.

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