ABIURO
Apesar dos avanços nos últimos anos, o Brasil ainda não ocupa, no cenário mundial, posição de destaque no campo da inovação tecnológica. Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento do setor privado são tímidos e as parcerias entre centros de pesquisa e empresas transformaram-se em uma saída importante para superar obstáculos tecnológicos existentes principalmente no ambiente industrial. Uma das mais importantes e produtivas formas desse tipo de aproximação está no Instituto Fábrica do Milênio (IFM), uma organização de âmbito nacional apoiada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) criada em 2002. Com foco na pesquisa e no desenvolvimento de produtos, no gerenciamento da produção e em soluções técnicas no chão de fábrica, a finalidade do IFM é estreitar o vínculo entre instituições acadêmicas e indústrias do setor de manufatura. “Queremos empregar novas tecnologias de produtos, processos ou gestão para resolver problemas específicos das indústrias e aumentar sua competitividade nos cenários nacional e mundial”, explica João Fernando Gomes de Oliveira, coordenador-geral do IFM e professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP).
Na prática, o IFM é uma grande rede virtual formada por 600 pesquisadores distribuídos em 39 grupos de pesquisa e alocados em 32 instituições de ensino superior do Brasil e do exterior. Essas instituições formam os chamados nós da rede, que são articulados para desenvolver estudos sobre gestão e transformação organizacional, engenharia de ciclo de vida de produtos, processos de fabricação e automação industrial e gestão do desenvolvimento de produtos e de cadeias de suprimentos. Por meio de um portal na internet (www.ifm.org.br), o IFM coloca à disposição do mercado um banco de dados abastecido por cada um dos nós da rede com uma extensa lista de pesquisadores, informações sobre resultados de pesquisas e mapeamento das demandas das indústrias.
Desde o início de seu funcionamento, a rede de pesquisas já interagiu com mais de 400 empresas do setor de manufatura, como Embraer, Fiat, Rhodia, Embraco e TRW, resultando em cerca de 50 projetos de pesquisa de mestrado ou doutorado que se transformaram efetivamente em soluções para o setor produtivo. Com a TRW, por exemplo, em um dos projetos que o IFM colaborou, o objetivo foi melhorar o desempenho das atividades de fabricação de válvulas para motores automotivos. Novos processos e novas condições de trabalho foram desenvolvidos. Tais tecnologias são hoje utilizadas por diversas fábricas da empresa na Ásia, nos Estados Unidos e na Europa.
Uma das soluções propostas por pesquisadores do IFM e encampadas pela indústria foi um projeto voltado à mecanização do processamento de moluscos por produtores de Santa Catarina. Coordenado pelo professor Fernando Antônio Forcellini, do Grupo de Pesquisa da Gestão do Desenvolvimento de Produto, o projeto desenvolveu uma linha de quatro equipamentos para auxiliar nas atividades da maricultura catarinense. O primeiro deles é um módulo para processos de seleção e limpeza dos mexilhões e o segundo destina-se à lavagem de equipamentos utilizados para o cultivo de ostras.
O terceiro dispositivo serve para lavagem e classificação de ostras e o quarto faz o manejo e o deslocamento de estruturas de cultivo de moluscos marinhos. Os quatro aparelhos suprem problemas enfrentados pelos maricultores na expansão e na manutenção de suas atividades e, ao mesmo tempo, trazem mais segurança e qualidade ao ambiente de trabalho. Os protótipos dos equipamentos, apresentados em meados do ano passado, foram bem recebidos e começam a ser incorporados pelos produtores de ostras e mexilhões de Santa Catarina.
Os trabalhos realizados pelos pesquisadores vinculados ao IFM já resultaram em 17 patentes de tecnologia industrial, numa prova do potencial inovador da rede e da capacidade de melhorar a produtividade das empresas nacionais. Entre as patentes se destaca a de um novo óleo de corte, um fluido indispensável para processos de usinagem e retificação de peças em indústrias de manufatura. A novidade do produto criado por pesquisadores associados ao IFM é que ele é biodegradável e, por isso, não causa danos ao ambiente. Segundo João Oliveira, apesar de essenciais ao processo produtivo, há uma tendência mundial de redução do uso desses fluidos em razão de seu elevado custo de produção e dos riscos que trazem à saúde humana e ao ambiente.
Patentes industriais
Para ter uma idéia do potencial contaminador dos óleos de corte comerciais que utilizam cloro em sua composição, basta saber que o despejo inadequado de 1 quilo de agente clorado pode envenenar até 40 milhões de litros de água. O grande diferencial químico do novo fluido de corte é a sua elevada concentração de óleo de mamona, por volta de quatro vezes superior à dos produtos atualmente disponíveis no mercado. Além disso, uma variedade menor de aditivos, apenas três, é empregada na sua produção, enquanto na maioria dos óleos tradicionais são utilizados pelo menos dez tipos diferentes.
“Os problemas industriais nos ajudam a formar recursos humanos com uma visão muito mais realista do mercado, com um claro entendimento do negócio em si, com domínio de tecnologia de informação e de manufatura e maior poder de criar inovações”, diz Oliveira. “Com isso, nossos pesquisadores conseguem entender o sistema empresarial de forma mais pragmática e, atuando como verdadeiros “clínicos gerais”, são capazes de diagnosticar problemas e propor soluções.” A visão de mercado está intimamente ligada ao conhecimento acadêmico. Nos últimos cinco anos, os 30 coordenadores dos nós da rede do IFM publicaram mais de 280 artigos em revistas científicas.
Embora tenha poucos anos de existência, o IFM acumula uma experiência nada desprezível que tem origem em um dos embriões da organização: o Núcleo de Manufatura Avançada (Numa) da USP de São Carlos, uma organização virtual criada em 1996 no âmbito do Programa de Núcleos de Excelência (Pronex) do MCT, também com as participações da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e a Universidade de Aachen, na Alemanha. O Numa, atual sede do IFM, era um projeto que agregava pesquisadores de várias áreas do conhecimento e instituições em torno da manufatura, inclusive as indústrias desse setor. A diferença entre ele o IFM é que o Numa tinha uma atuação regional, limitada ao estado de São Paulo, enquanto o instituto está presente em todo o país.
Celeiro de empresas
Além de trabalhar em parceria com as indústrias, outra potencialidade do Numa e do IFM é a criação de novas empresas de base tecnológica. Em seus quase 11 anos de atuação, o Numa acompanhou a criação de pelo menos uma dezena de empresas formadas por seus pesquisadores. “A visão integrada dos negócios e da tecnologia é o principal fator para que tenhamos tantas empresas de sucesso fundadas por nossos ex-alunos”, afirma João de Oliveira. Um exemplo disso é a KSR, empresa de software criada em São Carlos que desenvolveu um produto inovador para a geração de documentação de processos em indústrias para atender a demandas das normas ISO 9000 e QS 9000, referentes ao controle de qualidade empresarial, além da elaboração de análises de falhas. O sistema desenvolvido pelos ex-alunos do Numa venceu concorrentes poderosos no Brasil, como a multinacional IBM. Após o sucesso brasileiro, a KSR iniciou o fornecimento de sistemas ao exterior e recebeu uma proposta de compra da T-Systems, da Alemanha, pertencente ao conglomerado da Deutsche Telekom. “A empresa foi vendida para o grupo alemão e hoje o produto da KSR é empregado por indústrias de todo o mundo”, destaca Oliveira. No início de suas atividades, em 1997, a KSR contou com financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) e teve o seu projeto cancelado com a venda da empresa.
O aumento da participação de soluções em tecnologia da informação nas empresas abriu as portas para o sucesso de outra empresa ligada ao Numa e ao IFM: a Spring Wireless, criada em 2001. A empresa é líder em soluções para mobile business no Brasil e na América Latina, com mais de 100 mil usuários e 200 clientes em 20 países, incluindo empresas do porte da Ambev, Souza Cruz, Nestlé, Procter & Gamble, Unilever, Citibank e AES Eletropaulo. A companhia, que tem entre seus investidores dois gigantes dos setores de telecomunicação e tecnologia da informação, a Ericsson e a Intel, desenvolve, implanta e gerencia soluções de negócio baseadas em computação móvel e comunicação sem fio. Essas soluções permitem que os clientes da Spring automatizem e gerenciem seus processos de negócio em campo (vendas, marketing, serviços, logística etc.), aumentando a produtividade e a eficácia desses sistemas, além de reduzir custos operacionais e tempos de resposta.
Vanguarda essencial
“O meu principal desafio como empreendedor é não apenas desenvolver tecnologias inovadoras, mas também transformá-las em negócios rentáveis e duradouros”, destaca Cristiano Bevitori de Oliveira, um dos criadores e diretor de Tecnologia da Spring Wireless. Para ele, os cinco anos em que atuou como pesquisador no Numa foram essenciais para o desenvolvimento dessas habilidades. “O Numa-IFM é um dos raros centros acadêmicos no Brasil que combinam pesquisa científica de vanguarda com aplicações práticas de negócio. Esse ambiente desafiador estimula os pesquisadores a selecionar problemas de fato que são relevantes para o mercado, abordá-los de forma estruturada e consistente, e desenvolver soluções aplicáveis e de impacto.” Entre os postos-chave da empresa, que possui 400 funcionários, dez vieram do grupo Numa-IFM.
Opinião semelhante tem o pesquisador e empresário Carlos Bremer, ex-professor da Escola de Engenharia de São Carlos da USP e atual diretor da Axia Consulting, empresa com sede em São Paulo que oferece serviços de consultoria em transformação organizacional com foco no aperfeiçoamento da cadeia de valor, que abrange desde o suprimento de matéria-prima ao atendimento ao cliente. Entre os clientes da empresa estão a Perdigão, Schincariol e o grupo Amanco, além das subsidiárias da Embraco, na China e na Itália, e a Gerdau, na Argentina. “O Numa e o IFM têm um rigor científico e uma cultura de excelência e de padrões internacionais. É essa filosofia que aplicamos na Axia”, diz Bremer, ele mesmo um ex-coordenador do Numa (veja Pesquisa Fapesp nº 48). “Além disso, essas instituições são fortes formadoras de profissionais, algo que valorizamos na Axia. Investimos com seriedade em treinamento conceitual e técnico e muito coaching, uma forma de desenvolvimento e retenção de talentos.” Boa parte do time de 40 consultores atuais da Axia foi formada no âmbito do Numa e do IFM. Desse total, 12 (30%) vieram de lá, mas na curta história da empresa já foram 25 os profissionais formados no mesmo grupo em São Carlos.
Bremer, que largou a academia quando vislumbrou a oportunidade de criar junto com dois colegas a Axia, em 2003, diz que a metodologia de transformação da lógica de gestão integrada proposta e aplicada pela empresa nasceu nas pesquisas feitas no Numa. “O embrião de nossa empresa foi um convênio firmado em 1998 entre o Numa e a SAP, multinacional alemã líder mundial em softwares de negócios. Esse acordo visava ao uso em pesquisa e ensino dos softwares de gestão empresarial da SAP”, recorda o pesquisador. Outro acontecimento-chave para a criação da empresa ocorreu em 2000, quando o seu projeto de pesquisa foi agraciado pelo SAP University Alliance Grant Awards, prêmio na categoria de melhor projeto aplicado nas Américas, concorrendo com 64 instituições de ensino dos Estados Unidos, Canadá e América Latina. “A conclusão da pesquisa foi que um projeto de implementação de softwares do tipo ERP (Enterprise Resource Planning ou Sistemas Integrados de Gestão) depende de uma grande transformação organizacional. Sentimos a necessidade de aplicar esse conhecimento e foi então que resolvemos investir na Axia”, conta Bremer.
Controle da fábrica
O senso de oportunidade empresarial também foi o motivo que levou o engenheiro Carlos Magno de Oliveira Valente a criar, há três anos, a Sensoft Indústria e Automação, com sede em São Carlos. Ex-aluno de pós-graduação do Numa, Valente percebeu que os conhecimentos adquiridos durante o doutorado poderiam transformar-se em soluções valiosas para o setor produtivo e juntou-se a dois colegas para montar a empresa. “Atuamos com o estado-da-arte das ferramentas computacionais na área de automação industrial, oferecendo soluções para atender aos requisitos de instrumentação e controle dos processos desse setor”, destaca Valente. Um dos maiores clientes da empresa é a fabricante de aviões Embraer, para quem a Sensoft desenvolveu um sistema para monitoramento da linha de produção. “Criamos softwares para a coleta de dados durante o processo de manufatura com uma visão completa de toda a fábrica. Essa ferramenta computacional permite análises e tomadas de decisão baseadas na realidade da empresa”, explica o pesquisador. No lugar de um operador fazer apontamentos manuais sobre o tempo de produção de determinada peça ou sobre a quantidade de peças produzidas em certo período, o sistema elaborado pela Sensoft se comunica com a máquina e fornece, em tempo real, essas informações.
“A visão de mercado para nosso software foi desenvolvida durante o meu doutorado e de outro sócio da Sensoft. Fomos incentivados pelo ambiente de pesquisas e inovação do Numa e das empresas que o suportam”, destaca Valente. Batizado de sistema de coleta automático de dados de máquina, o software será instalado em 20 a 25 equipamentos industriais da linha de montagem da Embraer.
Outro projeto da Sensoft, que desde 2005 está incubado na Fundação Parque de Alta Tecnologia de São Carlos (ParqTec), é o desenvolvimento de um sistema para uso em cirurgias de laparoscopia. O projeto conta com auxílio financeiro da Fapesp por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe). Trata-se de um insuflador, que é o equipamento usado em operações laparoscópicas (em que sondas são inseridas no abdômen do paciente por meio de pequenos orifícios produzidos pelo cirurgião) para controlar o fluxo de dióxido de carbono (CO2) injetado nas cavidades abdominais. O software embarcado dentro do equipamento será responsável pela leitura de vários sensores – pressão, vazão, temperatura – além de permitir o controle de fluxo de CO2. “O grande diferencial da Sensoft é o conhecimento dos processos de fabricação e o contato contínuo com o desenvolvimento das técnicas de automação e de otimização. Da relação com os projetos de pesquisa e com as soluções que são padrões na indústria é que buscamos nosso caráter de inovação. Esse conhecimento integrado só foi possível graças aos anos de aprendizado no Numa e no IFM”, destaca Valente.
Busca de recursos
O IFM faz parte do Programa Institutos do Milênio, que são projetos de excelência em pesquisa e desenvolvimento tecnológico criados com incentivo do Ministério da Ciência e Tecnologia. No primeiro edital do programa, de 2002, o IFM recebeu R$ 5 milhões, sendo R$ 1 milhão em bolsas, para financiamento de seus pesquisadores. No ano passado, a parceria foi renovada por mais um triênio, mas a rede de pesquisas contou, dessa vez, com uma verba menor, de R$ 1,5 milhão. A redução, explica Oliveira, se deveu ao fato de os recursos, oriundos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), serem distribuídos para um número maior de projetos vinculados aos Institutos do Milênio.
“Estamos buscando com outros parceiros mais R$ 1,5 milhão para investir em nossos projetos e já temos um acordo quase fechado com a Confederação Nacional da Indústria (CNI)”, diz o coordenador do IFM. O objetivo da parceria será intensificar a aproximação do setor produtivo com instituições acadêmicas associadas ao instituto, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Embrapa Instrumentação Agropecuária, a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre outras. “O IFM atua na melhoria das plantas industriais, o que gera maior riqueza para as empresas e, conseqüentemente, para o país”, declarou Maurício Mendonça Jorge, coordenador de competitividade industrial da CNI, a uma newsletter do IFM. Para ele, o setor produtivo só tem a ganhar com esse intercâmbio. “Será um trabalho de divulgação e de aproximação, para criar uma espécie de agência de casamento entre as empresas e as instituições de pesquisa.”
Os projetos
1. Instituto Fábrica do Milênio (IFM); Modalidade Programa Institutos do Milênio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT); Coordenador
João Fernando Gomes de Oliveira – USP; Investimento R$ 1,5 milhão (CNPq)
2. Pesquisa e desenvolvimento de equipamento de videolaparascopia microprocessado; Modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe); Coordenador Carlos Magno de Oliveira Valente – Sensoft; Investimento R$ 381.642,96 (FAPESP)