Uma artista talentosa a causar escândalo na sociedade burguesa após tornar-se amante de seu mestre, homem casado, e dele engravidar duas vezes. Outra a apresentar ao júri de um importante concurso de escultura um parecer positivo de Rodin sobre sua obra, que perdera a competição. Histórias como essas se confundiriam facilmente com situações vividas por Camille Claudel ou outra artista parisiense de seu tempo.
Fazem parte, porém, de um agitado cenário artístico situado bem longe de Paris no mesmo período: o Rio de Janeiro. Essas histórias aconteceram com Abigail de Andrade e Julieta de França, duas das mulheres cujas trajetórias estão narradas na tese de doutorado Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras entre 1884 e 1922, defendida por Ana Paula Simioni, após pesquisa financiada pela FAPESP. O assunto foi levado às bancas universitárias da Universidade de São Paulo (USP) no início de agosto, poucos dias antes de a Pinacoteca do Estado de São Paulo inaugurar a mostra Mulheres pintoras – a casa e o mundo, na qual obras de algumas das mulheres citadas na tese podem ser vistas.
As histórias de Abigail e Julieta surgiram de uma intensa pesquisa feita nos dicionários artísticos brasileiros e em catálogos e documentos da Academia Imperial de Belas-Artes, que, com o advento da República, transformou-se em Escola Nacional de Belas-Artes. “Minha curiosidade sobre o assunto foi decorrente da observação de que, a despeito de os dois maiores nomes das artes plásticas do Modernismo serem femininos (Tarsila do Amaral e Anita Malfatti), não se ouve falar de pintoras mulheres anteriores a elas”, explica Ana Paula. “Comecei a indagar se essas modernistas teriam vindo do nada”, continua.
Academia Imperial
Em uma pesquisa preliminar nos principais dicionários artísticos, Ana Paula encontrou 91 nomes de mulheres que atuaram como artistas plásticas entre 1840 e 1922. Quando passou a estudar os catálogos das exposições da Academia Imperial, no intuito de focar seu trabalho na mais importante instituição artística do Império, o número subiu para 212, apenas entre os anos de 1844 e 1922. De fato, as modernistas não tinham vindo do nada. O que a nova cifra mostrou, também, é que muitas mulheres foram excluídas dos registros históricos (os dicionários). Daí, possivelmente, pouco ou nada ter se ouvido de outros nomes femininos antes de Tarsila e Anita.
“Na medida em que o foco da pesquisa passou a ser a Academia, uma série de recortes se impôs sobre o assunto”, conta Ana Paula. Por exemplo, o conhecimento do trabalho dessas artistas teve de se limitar às modalidades aceitas pela instituição – a pintura e a escultura. Também se estabeleceu um recorte geográfico, uma vez que a maior parte das artistas que expuseram na Academia Imperial era proveniente do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Conforme a pesquisa avançou, Ana Paula percebeu que seria impossível dissociar a história das artistas brasileiras do final do Império e início da República da história da educação feminina. Se por um lado as meninas eram treinadas para as prendas do lar nas instituições do ensino formal, por outro foram proibidas, até a proclamação da República, de se matricular em escolas de belas- artes – o que não as impedia de inscrever seus trabalhos nas exposições anuais, daí um número tão grande de participantes da ala feminina desde 1844.
Modelo vivo
A proibição ocorria em razão do uso do modelo vivo nas disciplinas das belas-artes, herança da tradição francesa, a mesma que legara ao Rio de Janeiro a própria constituição da Academia Imperial. Essencial para o aprendizado das artes acadêmicas, o modelo vivo era considerado abusivo para a educação e a moral das moçoilas. O que levou, então, tantas mulheres a exporem na Academia Imperial, se essa lhes foi interditada até o final do Império? Ana Paula mostra que diversos outros espaços permitiram o aprendizado das artes pelas mulheres, apesar de tantos fatores contra seu desenvolvimento criador – as atribuições domésticas, o distanciamento oficial dos estudos.
“Um espaço importante foi o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro”, observa a pesquisadora. “Desde 1881 as mulheres puderam se matricular no Liceu, onde não havia o uso de modelo vivo”, conta. “O perfil da instituição, porém, era menos ligado às belas-artes e mais voltado à atividade artesã – elas aprendiam a datilografar, por exemplo.” Também os ateliês particulares fizeram muito sucesso no Rio de Janeiro. O mais famoso, dos irmãos Rodolfo e Henrique Bernardelli, rendeu boas cifras aos proprietários, multiplicando também a notoriedade deles, principalmente a de Rodolfo, que foi diretor da Academia Imperial.
Muitas artistas da época aprenderam seu ofício no ambiente familiar, com pais, outros parentes, maridos e amantes. Abigail de Andrade, primeira protagonista dessa história, foi uma delas. Por sua causa o estudo desenvolvido por Ana Paula tem o marco inicial em 1884 e não nos anos 1840, época sobre a qual a pesquisadora já tinha alguns indícios. “Em 1884 foi realizada a última mostra do Império – nos anos seguintes, devido à crise vivida pelo regime, não havia dinheiro para a realização de salões de arte”, conta a pesquisadora.
Pois naquele ano, Abigail de Andrade, originária de Vassouras, no interior do Rio de Janeiro, foi a única mulher a receber medalha de ouro por quatro telas no Salão Imperial, ao lado de três pintores. Entre as telas, Meu ateliê e Um cesto de compra. Sua participação no Salão Imperial foi comentada por Gonzaga Duque, importante crítico de arte da época, que não poupou elogios: “Ela é uma artista mesmo, direi uma grande artista que se deve esperar”. Gonzaga, pertencente ao grupo dos que consideravam amadoras as artistas mulheres em geral, via em Abigail uma verdadeira profissional: “Fez da pintura sua profissão, não como outras, que, acercadas dos mesmos cuidados paternais, aprendem unicamente a artezinha colegial”.
Mestre particular
Um escândalo para a época, porém, fez com que a história de Abigail fosse apagada por sua própria família. A artista tornou-se amante de Angelo Agostini, importante artista e ilustrador, seu mestre particular. O romance com o homem casado gerou uma filha, Angelina Agostini. O casal chegou a fugir para Paris, onde surgiu a segunda gravidez. O bebê morreu, porém, um pouco antes de a mãe também sucumbir. “A história causou tamanho escândalo no Rio de Janeiro que a própria família tratou de não deixar para a posteridade as marcas de Abigail”, comenta Ana Paula.
Outra alternativa para o aprendizado das artes era viajar a Paris e freqüentar a Academie Julien, um dos principais pólos de artes, que recebia inúmeras estudantes estrangeiras. Foi lá que Julieta de França estudou, assim como no Instituto Rodin. Sua história também caiu no esquecimento, dessa vez não por um motivo amoroso, mas político.
Após viver cinco anos em Paris, Julieta voltou ao Rio de Janeiro, em 1907, e inscreveu-se em um concurso para um Monumento à República. Não venceu, mas também não se convenceu da não validade de sua obra. Retornou a Paris e apresentou o trabalho a diversos artistas, tendo obtido pareceres positivos de diversos deles, inclusive de Auguste Rodin. Com os atestados em mãos, bateu de novo nas portas da Academia de Belas-Artes, então chefiada por Rodolfo Bernardelli, o mesmo que rechaçara sua obra. Curiosamente, Julieta desapareceu dos circuitos artísticos cariocas, provavelmente por ter desafiado, com sua chancela parisiense, um dos artistas mais poderosos da República.
Outro caso interessante foi o de Georgina Albuquerque, a mulher que marca o final do período escolhido por Ana Paula. Em 1922, ela foi a primeira artista a apresentar uma tela no gênero pintura de história, o mais nobre do academicismo, ainda que nesse período o gênero já estivesse em desuso. Não só o gênero, mas também o conteúdo chamaram a atenção. Trata-se de uma cena em que a Princesa Leopoldina chefia uma reunião do Conselho do Estado, em homenagem ao centenário da Independência. “Embora essa obra tenha sido apresentada em um período já de declínio do academicismo, ainda assim Georgina ganhou notoriedade por produzir uma cena histórica”, comenta Ana Paula.
A análise das diversas circunstâncias educacionais e as narrativas sobre algumas artistas – vale lembrar ainda Berthe Worms e Nicolina Vaz de Assis – fazem da tese de Ana Paula um curioso caminho para a compreensão de como as mulheres artistas, consideradas amadoras no Império, tiveram de ser aceitas por suas atividades profissionais com o tempo. “Muitas delas se sustentaram e sustentaram suas famílias por meio da arte, principalmente no Rio de Janeiro”, conta a pesquisadora. “Com a tese, espero ter demonstrado que, entre os escritos de Félix Ferreira, assentados em uma tradição, por sinal internacional, de estereotipar a produção feminina como tipicamente amadora, e a publicação de Paranóia e mistificação, onde Monteiro Lobato escrutinava a obra de Anita Malfatti como a de uma profissional, muita coisa já havia mudado no campo artístico”, encerra.
O projeto
Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras entre 1884 e 1922 (nº 06/52580-7); Modalidade Bolsa de Doutorado (FAPESP); Coordenador Sérgio Miceli – FFLCH/USP; Bolsista Ana Paula Simioni – FFLCH / USP