Rochas encontradas no Nordeste brasileiro e em países africanos indicam que, há 610 milhões de anos, montanhas tão imponentes quanto o atual Himalaia brotaram no supercontinente conhecido como Gondwana. O surgimento dessa cordilheira antiga, de quase 2.500 quilômetros de extensão, corresponde ao primeiro momento da história da Terra no qual uma cadeia montanhosa dessa magnitude teve condições de se formar, gerando repercussões que podem ter ido além da geologia. Os nutrientes vindos dessas supermontanhas teriam chegado aos oceanos e impulsionado a evolução dos primeiros seres vivos complexos, com organismos formados por muitas células.
A existência remota desse “Himalaia afro-brasileiro” foi descrita em um artigo publicado em outubro na revista Nature Communications, numa colaboração entre especialistas do Brasil, da Austrália e da França. O primeiro autor do estudo é Carlos Ganade de Araújo, do Serviço Geológico do Brasil (SGB), no Rio de Janeiro. Araújo concluiu recentemente seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Umberto Cordani, outro dos autores da pesquisa, depois de passar uma temporada no laboratório de Daniela Rubatto, na Universidade Nacional da Austrália, e de Renaud Caby, na Universidade de Montpellier II. Além de amostras brasileiras, os geólogos estudaram rochas encontradas no Togo e no Mali, países da África Ocidental.
“A associação entre a formação de montanhas desse tipo e o surgimento da vida complexa é algo que vários trabalhos anteriores já vinham propondo”, conta Araújo. “A novidade do nosso trabalho é mostrar que o surgimento desse arco de montanhas foi sincrônico, dentro da margem de erro das técnicas usadas para medir esse timing, e que ele coincide com o surgimento da fauna ediacarana [Ediacarano é o nome dado ao período geológico em que ocorre o primeiro grande florescimento da vida multicelular].”
A cadeia montanhosa teria surgido a partir da colisão de dois grandes blocos da crosta terrestre: de um lado, estava uma área incluindo blocos rochosos que hoje formam parte da África Central, do Saara e da bacia do rio São Francisco; de outro, uma região na qual estavam unidos blocos da atual África Ocidental e da bacia do rio Amazonas. Araújo e Miguel Basei, também da USP, coletaram as amostras dessas rochas em Forquilha, município perto de Sobral, no sertão do Ceará; numa área de floresta tropical próxima à vila de Lato, no Togo; e em afloramentos rochosos em meio às areias do Saara, no Mali. Esses três locais se situam ao longo de uma fratura geológica profunda – o chamado Lineamento Transbrasiliano-Kandi, muito estudado pela equipe da USP e pelo grupo de Reinhardt Fuck e Márcio Pimentel, da Universidade de Brasília –, resultado do choque entre blocos rochosos que teriam gerado o Himalaia afro-brasileiro.
Cápsulas do tempo
A datação relativamente precisa de minerais tão antigos só é possível graças à presença dos zircões, cristais ricos em elementos químicos radioativos, como o urânio. Cada exemplar de zircão, ao se formar, funciona como uma espécie de cápsula do tempo. Uma vez transformado em cristal sólido depois do resfriamento do magma, o material passa a abrigar uma determinada concentração de urânio, que, por meio da perda lenta e constante de partículas subatômicas típica dos elementos radioativos, origina elementos químicos mais leves, como o tório e o chumbo, a uma taxa conhecida. “Depois de cristalizado, o mineral não troca mais átomos de urânio com o meio externo. É como se a estrutura cristalina fosse um sistema fechado”, explica Lêda Maria Fraga, que também trabalha no SGB e é autora de um estudo que identificou alguns dos zircões mais antigos do mundo.
Os pesquisadores medem, então, a concentração das variedades (isótopos) do elemento químico chumbo derivadas do urânio e calculam quanto tempo antes se formou o zircão. Também foi possível determinar que as rochas brasileiras e africanas que abrigam os zircões se formaram em ambientes de altíssima pressão, a profundidades superiores a 90 quilômetros. Conhecidas como eclogitos, essas rochas que nascem em situações de pressão ultra-alta derivam do encontro entre duas placas tectônicas, os imensos blocos rochosos que formam a crosta terrestre.
Na colisão entre as placas, a borda de uma delas se enfia embaixo da outra – é a chamada subducção. A parte que afunda é submetida a pressões altíssimas que alteram suas rochas. Mais tarde, algumas dessas rochas alteradas retornam à superfície – ou são exumadas, como dizem os geólogos –, processo que pode gerar grandes cadeias de montanhas, como o Himalaia de hoje e sua contraparte do Ediacarano.
Segundo Araújo, esse é outro ponto importante do estudo: trazer as evidências mais antigas de um mecanismo de tectônica de placas como os que se conhecem hoje. “Embora existam indícios de que as placas tectônicas poderiam estar em atividade de alguma maneira desde o Arqueano, há mais de 3 bilhões de anos, só no Ediacarano é que vemos sinais de uma subducção profunda o suficiente para fazer com que as placas continentais desçam muito e, consequentemente, desencadeiem a formação de montanhas tão altas quanto as do Himalaia atual.”
Esse fenômeno geológico, possivelmente inédito até então, pode ter tido consequências igualmente inéditas sobre a evolução da vida no planeta, afirmam os pesquisadores.
Vida misteriosa
Por volta da época em que se formou o Himalaia afro-brasileiro surgiram na Terra formas de vida ainda hoje envoltas em um ar de mistério. É a chamada biota de Ediacara, formada por organismos multicelulares cujas relações de parentesco com os grupos de seres vivos que evoluíram mais tarde ainda não estão muito claras, embora haja quem identifique, entre os fósseis de seres que viveram naquela época, os precursores dos cnidários (águas-vivas e corais) de hoje.
Em geral, os membros da biota de Ediacara são criaturas de corpo mole, com aspecto discoidal ou semelhante a talos de algas. Também há marcas fossilizadas (icnofósseis) deixadas pela passagem do animal que parecem indicar a presença de seres vermiformes, arrastando-se pelo solo marinho. Outros dados fósseis indicam ainda que, por volta daquela época, já havia organismos com desenvolvimento embrionário complexo, essencial para que seres multicelulares produzam tecidos especializados para diversas funções, como músculos ou gânglios. Essas formas macroscópicas de vida eram exclusivamente aquáticas. Microrganismos já haviam colonizado ambientes de terra firme, embora animais e plantas só começassem a deixar os mares a partir do Cambriano, há 540 milhões de anos, com o surgimento progressivo de adaptações para resistir à perda de água.
O surgimento da cordilheira que se estendeu por parte do que hoje é a África e o Brasil pode ter impulsionado a evolução dessas criaturas por inundar os oceanos com alimento. Essas grandes montanhas teriam passado por um processo erosivo sem precedentes, de maneira a carregar os nutrientes presentes nas rochas para o oceano. Esse “banquete” mineral teria levado à multiplicação de microrganismos marinhos que fazem fotossíntese e produzem oxigênio, aumentando a quantidade disponível desse gás nos mares e na atmosfera. Mais oxigenados, esses ambientes teriam sido muito mais propícios para sustentar o metabolismo de seres vivos complexos.
“A gente também pode comparar os efeitos do aparecimento das montanhas do Ediacarano com o que ocorreu após o surgimento dos Himalaias”, lembra Araújo. De fato, essa megacordilheira ajudou a moldar o relevo e o clima na Ásia, controlando, por exemplo, as monções (chuvas anuais que caem sobre o subcontinente indiano) e impedindo que ventos frios do Ártico cheguem ao sul da Ásia. O curioso é que processos desse tipo parecem ter acontecido de novo algumas dezenas de milhões de anos mais tarde, durante a chamada Explosão Cambriana, um evento evolutivo de grande escala iniciado há cerca de 540 milhões de anos, ainda mais importante do que a gênese da biota de Ediacara. A Explosão Cambriana marca o aparecimento de quase todos os grandes grupos de animais conhecidos hoje no registro fóssil, incluindo tanto os primeiros artrópodes (atualmente os animais mais numerosos e diversos do planeta, como insetos e crustáceos) quanto os primeiros cordados (grupo que inclui os vertebrados, como o ser humano).
De acordo com Araújo, supermontanhas que coincidem com a explosão de vida no período Cambriano surgiram na região leste de Gondwana, quando houve o desaparecimento de um oceano na região onde hoje está Moçambique. “A gente poderia enxergar esse evento a leste como uma continuação do processo que já vinha estimulando a evolução da vida complexa desde o Ediacarano”, afirma o pesquisador.
Pedaços do Hades
Outro estudo geológico baseado na análise de zircões encontrou na fronteira entre o Brasil e a Guiana vestígios de um fragmento do que pode ter sido o mais antigo continente do planeta. Esse continente teria existido por volta de 4,2 bilhões de anos atrás – quando o planeta tinha cerca de 300 mil anos de vida – no chamado Éon Hadeano, o primeiro e mais turbulento período da história da Terra.
Até algumas décadas atrás se acreditava que naquele período cujo nome faz referência a Hades, o deus da mitologia grega ligado às profundezas da Terra e ao mundo dos mortos, a superfície terrestre fosse dominada por oceanos de rocha líquida e crateras formadas pelo impacto de corpos celestes. Mas registros geológicos encontrados na última década sugerem que, mesmo em um passado tão remoto, já existiam mecanismos capazes de produzir continentes comparáveis aos atuais.
O vestígio mais recente de que continentes tão primitivos podem ter mesmo existido é um zircão de 4,2 bilhões de anos extraído de rochas vulcânicas coletadas na Guiana em 2011 por equipes do Serviço Geológico Brasileiro e da Comissão de Minas e Geologia da Guiana. “Encontrar vestígios de quando e como se formou a ‘primeira’ crosta continental ou algo parecido com ela é sempre uma grande descoberta”, explica a geóloga brasileira Lêda Maria Fraga, coautora de um artigo que relata o achado no periódico Brazilian Journal of Geology. “Até onde sei, esse zircão é o mineral mais antigo da América do Sul”, diz.
Formados por três elementos químicos (zircônio, oxigênio e silício), os zircões são minerais muito resistentes, capazes de sobreviver às transformações pelas quais as rochas que formam os continentes podem passar. O zircão antigo da Guiana, por exemplo, permaneceu intacto mesmo após a rocha que originalmente o abrigava ter se fundido há cerca de 2 bilhões de anos, quando a região do planeta onde hoje se encontra a Amazônia era dominada por vulcões – acredita-se que um desses vulcões tenha entrado em erupção e trazido das profundezas da Terra material fundido no qual flutuavam cristais de zircão mais antigos.
Até o momento amostras de zircão tão antigas foram encontradas em menos de uma dezena de locais no mundo. A mais velha de todas, com 4,4 bilhões de anos, foi encontrada em Jack Hills, na Austrália. Minerais do Canadá, da China e dos Estados Unidos têm idades comparáveis ou um pouco inferiores às identificadas no sul da Guiana.
O zircão da Guiana, estudado por Lêda e por Serge Nadeau, primeiro autor do artigo do Brazilian Journal of Geology, foi datado levando em conta o decaimento radioativo do elemento químico urânio, a mesma técnica usada para determinar a idade dos zircões do Himalaia afro-brasileiro. Remontando a uma época tão distante, o surpreendente é que tenha sobrevivido às transformações por que a crosta continental passou desde então. “Demos uma sorte enorme”, diz Lêda.
Projeto
Caracterização geocronológica e termocronológica das rochas de alto grau associadas à orogênese neoproterozoica nas adjacências do Lineamento Transbrasiliano-Kandi (NE Brasil – NW África) (nº 2012/00071-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Umberto Giuseppe Cordani (IGC-USP); Investimento R$ 144.331,80 (FAPESP).
Artigos científicos
GANADE DE ARAUJO, C. E. et al. Ediacaran 2,500-km-long synchonous deep continental subduction in the West Gondwana orogen. Nature Communications. 16 out. 2014.
NADEAU, S. et al. Guyana: the lost Hadean crust of South America? Brazilian Journal of Geology. v. 43, p. 601-6. dez. 2013.