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Corpo no limite

Exercício físico protege o organismo contra danos provocados pela privação de sono

Alexandre Cappi

Em 2003 um breve telefonema pôs fim a meses de busca dos pesquisadores Marco Tulio de Mello e Hanna Karen Antunes, do Instituto do Sono da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Estudiosos dos efeitos que o exercício físico produz sobre o organismo, Mello e Hanna Karen planejavam um experimento para descobrir o que acontece com o corpo e a mente de quem passa dias sem dormir. E tinham quase todo o necessário para a pesquisa à disposição. Faltava apenas encontrar pessoas dispostas a passar algumas noites em claro nos laboratórios do Instituto do Sono – sem receber nada em troca, uma vez que a legislação brasileira impede a remuneração de voluntários de pesquisas. Do outro lado da linha, o jornalista Celso Lobo, da Rede Globo, apresentou a solução. Uma equipe do Fantástico faria uma reportagem sobre a primeira edição brasileira de uma das mais longas e extenuantes competições do planeta – a Ecomotion-Pro, em que os participantes passam dias quase sem dormir – e convidou a equipe da Unifesp para acompanhar o desempenho dos atletas. Era a oportunidade que Mello e Hanna Karen tanto perseguiam.

Após semanas de planejamento, Hanna Karen desembarcou com quase meia tonelada de equipamentos em Lençóis, no interior da Bahia, onde transformou uma ala inteira de um dos principais hotéis dessa cidade de apenas 10 mil habitantes em uma unidade de pesquisa. Ali, à entrada do Parque Nacional da Chapada Diamantina, ela submeteu 11 competidores de três equipes diferentes a baterias de testes físicos, psicológicos e de análise do sono antes e depois da prova. Os primeiros resultados desse experimento, repetido em mais duas edições da Ecomotion-Pro e também na sede do Instituto do Sono em São Paulo, emergem agora em uma série de artigos científicos que revelam como o exercício físico pode, até certo ponto, proteger o organismo dos efeitos nocivos causados pela falta de sono. São informações úteis não apenas para atletas acostumados a submeter corpo e mente a situações extremas, mas também – e principalmente – para melhorar a qualidade de vida e o desempenho das pessoas que trabalham em jornadas muito longas ou irregulares, como médicos, enfermeiros, pilotos de avião, motoristas de ônibus, policiais e bombeiros, entre outros, que somam 15 milhões de pessoas nos Estados Unidos.

A confirmação do efeito protetor da atividade física tornou-se evidente quando Hanna Karen e o grupo coordenado por Mello compararam os dados sobre quase 300 variáveis relacionadas à saúde física e mental dos atletas com o desgaste a que haviam se submetido durante a prova. Durante sete dias e seis noites os participantes da Ecomotion-Pro de 2003 percorreram 477 quilômetros no Parque Nacional da Chapada Diamantina, uma das poucas áreas preservadas de Cerrado no país. Correram, pedalaram, escalaram ou remaram para atravessar campos com vegetação rasteira e árvores esparsas, matas fechadas, serras, rios e cachoeiras. Tudo isso, sem tempo para descanso. Formadas por quatro participantes, geralmente três homens e uma mulher, as equipes só dormiam quando não agüentavam mais – em média, descansavam meia hora a cada dia. Além do desafio físico, acentuado pela variação de temperatura que oscilou de 20° a 36° C naquele mês de novembro, essa modalidade esportiva criada na década de 1980 na Nova Zelândia impõe aos competidores um intenso desgaste mental. As equipes têm de permanecer alertas o tempo todo para encontrar o caminho a ser trilhado apenas com o auxílio de uma bússola, um altímetro e um mapa do relevo da região. “Nesse tipo de competição o menor erro do atleta responsável por guiar o deslocamento do grupo, o navegador, costuma resultar em um aumento de quilômetros no trajeto da equipe. E em muita energia desperdiçada”, explica Hanna Karen.

Só o esforço de cruzar uma distância semelhante à que separa São Paulo do Rio de Janeiro em uma semana seria suficiente para deixar qualquer pessoa fisicamente esgotada. Imagine-se, então, fazer tudo isso sem pregar os olhos. Estudos publicados nas últimas três décadas mais do que demonstraram que a privação de sono deixa as pessoas agressivas e agitadas, além de, claro, cansadas. Era precisamente assim, esgotados e com alterações no humor, que Hanna Karen esperava encontrar os atletas que atravessaram a linha de chegada das três edições da Ecomotion-Pro que acompanhou. E foi, em parte, o que constatou.

Do ponto de vista fisiológico, o organismo dos competidores estava bastante debilitado ao final da prova. Eles chegavam com os pés bastante machucados, cãibras pelo corpo e de 7 a 10 quilos mais magros porque durante a prova consumiam 3.500 quilocalorias por dia e gastavam três vezes mais. Os níveis sangüíneos de uma proteína que indica lesões nos músculos e no coração eram cerca de 20 vezes mais elevados que o normal, semelhante ao de quem sofre um infarto, e as taxas das enzimas hepáticas sugeriam uma lesão grave no fígado. Entre os homens, a taxa do hormônio masculino testosterona, essencial para a restauração das células musculares, encontrava-se 70% abaixo do normal, um sinal de que o corpo havia usado os recursos disponíveis para se manter em funcionamento.

Mas do ponto de vista cognitivo eles se encontravam bem, muito melhor do que se poderia esperar de quem estava quase sem dormir havia uma semana. Lembravam-se da dificuldade para escalar um paredão de pedras ou reencontrar o caminho por um trecho de mata fechada depois de se perder à noite. Também não estavam tristes nem irritados. “Foi surpreendente”, diz Hanna Karen, “eles chegavam felizes por terem terminado a prova e relatavam as aventuras por que passaram com uma riqueza de detalhes impressionante”. Bastou uma longa noite de sono com duração de 16 a 19 horas para que se recuperassem quase por completo. Antes mesmo de retornar a São Paulo e analisar os dados, a pesquisadora já imaginava que o responsável por esse bem-estar era o exercício físico. Mas faltava descobrir como os sedentários responderiam à privação de sono por período tão prolongado. Também queria saber se o fato de apresentar bom condicionamento físico era suficiente para prevenir os danos associados à falta de sono ou se esse benefício só favorecia quem pratica exercícios durante o tempo que fica acordado.

De olhos abertos
Nos laboratórios do Instituto do Sono, coordenado pelo médico Sérgio Tufik, um dos principais especialistas em distúrbios do sono no país, Mello e Hanna Karen decidiram reproduzir a prova da Chapada Diamantina. Dos 28 voluntários convidados para essa fase da pesquisa, oito eram sedentários e 20 realizavam exercícios físicos com freqüência e já haviam participado de competições como a Ecomotion-Pro. Quatorze atletas se exercitaram em aparelhos que simulavam as modalidades praticadas e as distâncias percorridas na Ecomotion 2003, carregando sempre os mesmos equipamentos que levaram na competição. Os atletas conseguiram cumprir as tarefas em aproximadamente quatro dias, tempo em que os outros voluntários tiveram de se manter acordados com leituras, filmes, jogos de tabuleiro ou videogame e navegando na internet. Quem não fez exercícios só podia dormir, na verdade tirar um cochilo que durava pouco mais de uma hora, quando o grupo da atividade física decidia parar para repousar – e pelo mesmo tempo. “Os sedentários tentavam o tempo todo convencer os atletas a repousarem por alguns minutos”, conta Hanna Karen. Os voluntários que não fizeram exercícios passavam boa parte do experimento se divertindo com um videogame de corrida de carros em que conseguiam superar vários estágios da disputa e passar horas diante da tevê. “No final”, diz a pesquisadora, “já não eram capazes de passar da primeira curva”.

Para avaliar a qualidade e o padrão do sono, Hanna Karen e Mello repetiram exames de polissonografia antes e depois do experimento e durante os cochilos. Na primeira noite em que puderam dormir à vontade, os voluntários que se exercitaram durante os quatro dias apresentaram um aumento do sono de ondas lentas, fase em que é maior a produção de hormônio do crescimento, essencial para a multiplicação celular e a restauração dos órgãos. Apenas na noite seguinte houve um acréscimo do sono associado à recuperação das funções cognitivas, o chamado sono REM (Rapid Eyes Movement), quando a maior parte dos músculos do corpo fica paralisada e ocorrem os sonhos. Os que permaneceram acordados sem fazer exercícios, no entanto, apresentaram aumento de sono REM já na primeira noite. “Essa alteração no padrão de sono parece bastante lógica”, comenta Hanna Karen, “o organismo recupera primeiro o corpo e depois a mente, no caso em que o desgaste físico foi maior”.

Flutuações hormonais
Os benefícios do exercício se tornaram evidentes quando se analisou como variaram os níveis de dois hormônios: a testosterona, ligada à recuperação muscular, e o cortisol, liberado pelas glândulas supra-renais em situações de estresse como um assalto à mão armada ou uma competição. Tanto os que se exercitaram como aqueles que deixaram os músculos descansarem enquanto procuravam outra forma de se manter acordados apresentaram diminuição na taxa de testosterona, também associada ao desejo sexual e à ereção. Identificada anteriormente pela biomédica Monica Levy Andersen em estudos com roedores no Instituto do Sono, essa redução foi mais acentuada entre voluntários sedentários.

Já o cortisol variou de modo mais complexo. Acreditava-se que o nível desse hormônio se encontraria mais elevado no grupo que se exercitou durante o experimento, uma vez que a privação de sono e o excesso de atividade física são fontes diferentes de estresse e cada um deles acarreta aumento importante na liberação de cortisol. Diferentemente do esperado, os voluntários ativos apresentaram um aumento inicial seguido de uma redução importante na taxa do hormônio do estresse, que permaneceu elevada entre os sedentários. “Possivelmente existe uma chave de segurança que impede o aumento exacerbado no nível desse hormônio”, comenta Hanna Karen. É como se o corpo soubesse a hora de baixar a produção de cortisol e, assim, evitar o esgotamento de suas reservas de colesterol, substrato para a produção do próprio cortisol e de outros hormônios essenciais ao funcionamento do organismo.

Mais importante. Após a primeira noite de descanso, o nível de cortisol havia retornado ao normal entre os voluntários que fizeram exercício, enquanto entre os sedentários isso só ocorreu em média três dias após o experimento. “Apesar de mais cansado, quem se manteve fisicamente ativo se recuperou mais rápido”, diz Hanna Karen. “Esses resultados sugerem que o exercício dispara respostas fisiológicas e neuroquímicas que funcionam como um antídoto aos prejuízos causados pela privação do sono”, diz Mello.

Já se sabe que passar uma madrugada em claro ou trabalhar até um dia e meio seguido para concluir um projeto cujo prazo está estourando não causa grandes danos ao organismo, que se restabelece rapidamente. Os problemas surgem quando o que deveria ser exceção torna-se regra e passa a se repetir com freqüência anos a fio, caso de médicos e enfermeiros que costumam trabalhar em turnos de até 36 horas quando estão de plantão. A conseqüência desse padrão inadequado de descanso é o aumento de problemas cardiovasculares, como hipertensão e infarto. Para combater esses efeitos nocivos, calcula-se que bastariam três sessões de 50 minutos de exercício por semana.

Mas há um limite. Os exercícios físicos parecem combater os danos nas situações em que se permanece entre menos de 96 horas e 120 horas (quatro a cinco dias) sem descansar de forma adequada. Depois de tanto tempo acordado, o melhor que há a fazer é dormir. É que a partir desse estágio os níveis de irritação e as falhas de memória e o desequilíbrio fisiológico se tornam tão intensos que a atividade física deixa de proteger e passa apenas a mascarar o problema. “Estamos tentando identificar esse limite tênue que separa a ação protetora do exercício do efeito mascarador”, diz Hanna Karen.

Ao mesmo tempo, Mello e outro pesquisador de sua equipe, Márcio Rossi, testam o efeito de exercícios aeróbicos (natação e corrida) e anaeróbicos (musculação) realizados em momentos distintos do dia sobre o padrão de sono de sedentários. O objetivo é descobrir qual o tipo de atividade física mais adequado para trabalhadores que precisam se manter acordados durante a noite ou por longos períodos, como médicos, policiais, motoristas de caminhão e de ônibus. Ainda este ano, a equipe do Instituto do Sono pretende pôr à prova diferentes programas de exercício em experimentos com trabalhadores da usina nuclear de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, e de plataformas de petróleo da Petrobras, que trabalham em turnos irregulares. Na opinião de Mello, a atividade física pode representar uma forma barata e eficiente de ajudar essas pessoas, sem os efeitos indesejados provocados por estimulantes (café, pó de guaraná e energéticos) ou medicamentos. Além de combater os efeitos da privação de sono, esses profissionais poderiam se beneficiar de outros efeitos já conhecidos, como o fortalecimento muscular, o equilíbrio hormonal e o aumento da capacidade cardíaca e respiratória.

Antes que se saia por aí correndo pelos parques ou à procura de uma academia, Hanna Karen alerta que essa atividade física não pode ser aleatória e deve levar em consideração as características de cada pessoa – quantas horas dorme por dia, qual a qualidade do sono, quanto tempo e em que período do dia trabalha. Com base nessas informações, tenta-se em seguida encontrar os exercícios mais adequados para cada trabalhador, que deve ser acompanhado por um médico e receber a orientação de um profissional de educação física.

O sono e o sexo
Apesar das evidências do efeito protetor dos exercícios, acumulam-se cada vez mais dados confirmando os efeitos nocivos da privação de sono. Experimentos recentes conduzidos pela equipe de Monica Levy Andersen, do Instituto do Sono da Unifesp, indicam que os prejuízos das noites passadas em claro afetam de modo diferente o sexo masculino e o feminino. Poucos anos atrás, Monica mostrou que em ratos machos a privação de sono afeta o funcionamento de uma área do sistema nervoso associada ao prazer e provoca um efeito chamado hipersexualidade, número anormal de ereções e ejaculações espontâneas, o que não necessariamente é bom (veja Pesquisa FAPESP nº 110). Agora Monica e a biomédica Isabela Beleza Antunes provaram que a privação do sono REM, quando o cérebro se encontra tão ativo quanto na vigília, altera o ciclo reprodutivo das ratas.

Depois de retiradas de tanque com água no qual ficavam quatro dias quase sem dormir, se equilibrando sobre plataformas secas, as ratas passavam nove dias sem ovular nem menstruar, segundo artigo publicado no ano passado na Hormones and Behavior. Em seres humanos, esse tempo corresponderia a dois ciclos menstruais interrompidos – aproximadamente dois meses. “Esses dados sugerem que a falta de sono adequado pode ser um dos fatores associados à dificuldade que algumas mulheres apresentam de engravidar”, diz Isabela.

As pesquisadoras observaram essa alteração sempre que a privação de sono ocorria em um momento específico do ciclo estral das ratas (equivalente ao menstrual em mulheres), conhecido como diestro – quando o útero está se preparando para receber os óvulos liberados pelos ovários. Sem descansar plenamente, as ratas produziam níveis do hormônio corticosterona, correspondente em roedores ao cortisol humano, duas vezes superiores ao normal. O excesso desse hormônio no sangue leva à maior produção do hormônio sexual progesterona, que controla o funcionamento dos ovários. E mais progesterona, por sua vez, significa menor produção de dois outros hormônios: o folículo estimulante (FSH) e o luteinizante (LH), responsáveis pelo amadurecimento dos óvulos. “A menstruação só volta depois que as taxas de LH e FSH retornam ao normal”, explica Isabela.

Os danos causados pela falta de sono podem ser ainda mais graves. Após a menopausa, período em que os ovários deixam de produzir os hormônios estrogênio e progesterona, a privação de sono aumenta o risco de problemas cardíacos. Ratas que passaram por uma cirurgia para a retirada de ovários, situação semelhante à da menopausa, apresentaram risco 20% maior de desenvolver problemas cardiovasculares do que aquelas que permaneceram com o aparelho reprodutor intacto e também não puderam dormir. Monica e Isabela já esperavam algum aumento no risco de doenças cardiovasculares, uma vez que o estrogênio funciona como protetor do sistema cardiovascular. Mas não imaginavam que seria tão elevado quanto o observado no estudo publicado em janeiro na Behavioural Brain Research. Segundo Monica, a probabilidade de as fêmeas sem ovários sofrerem problemas do coração tornou-se praticamente igual à dos machos, naturalmente mais elevada. “Acreditamos”, diz Isabela, “que o estresse associado à falta de sono reduz ainda mais o nível de estrogênio, aumentando o risco cardiovascular”.

O Projeto
Centro de Estudos do Sono; Modalidade: Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coordenador: Sergio Tufik – Unifesp; Investimento: R$ 16.403.545,87 (FAPESP)

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