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Poluição

Cortina de fumaça

São Paulo, Cidade do México e Santiago economizariam US$ 165 bilhões gastos em atendimento médico se melhorassem a qualidade do ar

MIGUEL BOYAYANEm um dos consultórios do pronto-socorro infantil do Hospital das Clínicas de São Paulo, João Vitor, 1 ano e 5 meses, acabou de passar por uma inalação. Estava gripado e ainda tossia bastante, mas a respiração já se acalmara. “Moramos em uma casa com pouca ventilação, só uma janela, e o ar fica viciado”, contou sua mãe, Maria da Conceição da Silva Araújo. Mais tranqüila, saiu com o filho e a sala ficou vazia. É um cenário bem diferente dos agitados meses de maio, quando o pronto-socorro registrou uma média de 211 consultas por dia, ou de junho, com quase 200 por dia. A procura por inalações foi intensa, já que 70% das reclamações estavam relacionadas a dificuldades respiratórias, provocadas em grande parte pelo tempo seco do inverno, quando os níveis de poluição também aumentam. Apesar dos avanços obtidos na última década no controle da emissão de gases e partículas poluentes, respirar o ar de São Paulo continua sendo um ato de heroísmo, e não apenas para as crianças. Estima-se que nove pessoas ainda morram por dia na cidade, vítimas de problemas cardiovasculares, respiratórios ou cânceres de pulmão, direta ou indiretamente associados à poluição atmosférica.

A cada ano, a poluição é responsável pela morte de cerca de 3.500 moradores da cidade de São Paulo. Se considerados apenas os impactos econômicos, a perda dessas vidas representa um custo total de US$ 350 milhões, levando em conta os anos de vida potencialmente produtivos que foram perdidos ou a perspectiva de conviver com doenças crônicas, que reduzem a capacidade de trabalho, de acordo com um estudo coordenado por Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Nelson Gouveia, que também leciona na Faculdade de Medicina da USP, publicou em março na revista Environmental Research um trabalho mostrando que São Paulo, Cidade do México e Santiago, no Chile, poderiam evitar 150 mil mortes, 4 milhões de crises de asma, 300 mil internações de crianças e 48 mil casos de bronquite crônica em um período de 20 anos e gerar uma economia de US$ 165 bilhões se reduzissem os níveis de poluição aos parâmetros indicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Outras pesquisas recentes revelam que o ar poluído pode ser bastante prejudicial a dois grupos da população. O primeiro são as gestantes, fazendo com que os bebês nasçam com menos peso e mesmo interferindo no sexo dos bebês: em regiões mais poluídas nascem mais meninas que meninos. O outro grupo são os fiscais de trânsito, cujo organismo sofre alterações tão intensas sob o ar da rua a ponto de liberar no sangue substâncias associadas ao infarto.

Os veículos ainda são os principais responsáveis pelas camadas de fumaça grossas e cinzentas que se formam no céu de São Paulo. Podem ser observadas com nitidez no horizonte em especial no inverno. É quando a inversão térmica – a formação de uma tampa de ar quente próxima à superfície que impede a subida do ar mais frio – dificulta a dispersão de gases e de partículas tóxicas. As partículas não se diluem e se tornam maiores com menos umidade. As vias respiratórias do corpo humano produzem menos muco que filtra as impurezas do ar, que assim entram no organismo mais facilmente, atacam as células de defesa do organismo e diminuem a capacidade de resistência. A garganta arranha, os olhos coçam. “Sem cuidados, o quadro pode se agravar e abrir caminho para inflamações de ouvido, crises de asma e pneumonias”, observa Roberto Tozze, médico assistente do Instituto da Criança do HC paulista.

Avanços
Os poluentes se originam essencialmente dos escapamentos dos 7,6 milhões de veículos que trafegam pela maior cidade brasileira. O Programa de Controle de Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), gerenciado pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) de São Paulo e implantado a partir de 1996, minimizou o problema ao exigir que os carros saiam de fábrica já com catalisadores e injeção eletrônica, que controlam a emissão de poluentes. O limite máximo de concentração de monóxido de carbono foi ultrapassado 65 vezes em 1997, mas apenas uma vez em 2005. De acordo com o estudo de Saldiva, que avaliou a década de 1996 a 2005, o Proconve também reduziu os impactos econômicos da poluição, evitando 1.500 mortes por ano, o que representa uma economia anual, em termos de produtividade, de US$ 150 milhões. “Melhoramos, mas ainda estamos pagando uma conta extremamente alta”, comenta Saldiva.

O Proconve parece ter chegado a um limite. O dilema é de difícil solução: a fiscalização periódica dos veículos, embora prevista pela legislação, não acontece na prática. Se o catalisador deixa de funcionar, não há como garantir que será consertado. “Não ficou definido como a manutenção seria realizada, de que forma e quando os motoristas seriam convocados e quem arcaria com os custos”, diz Jesuíno Romano, gerente da divisão de tecnologia de avaliação da qualidade do ar da Cetesb. A idade média da frota paulistana é outro obstáculo. Segundo o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) de São Paulo, metade dos carros que circulavam pela cidade em junho de 2006 tinha mais de dez anos.

Se os níveis de monóxido de carbono atingiram patamares aceitáveis, as emissões de ozônio e de material particulado, a exemplo de zinco, manganês, níquel e chumbo, ainda superam os limites estabelecidos pela legislação brasileira. “Qualquer veículo, mesmo com a tecnologia mais moderna, emite elementos precursores do ozônio, ainda que de forma reduzida”, comenta Simone Georges El Khouri Miraglia, professora do Centro Universitário Senac e pesquisadora do Laboratório de Poluição Atmosférica da USP.

MIGUEL BOYAYANO controle das partículas também não é nada simples. São emitidas basicamente pelos escapamentos dos caminhões, movidos a diesel, que constituem uma frota ainda mais antiga: quase 70% dos caminhões paulistanos saíram da fábrica há mais de dez anos. Além disso, a cidade de São Paulo é uma passagem para caminhões que vêm de outras regiões do país.

Quem sofre bastante com essa poluição são os fiscais de trânsito. “Os gases sufocam e deixam o rosto preto”, conta Waldir Bravo, que durante anos trabalhou no cruzamento das avenidas do Estado e Mercúrio, no centro de São Paulo, antes de se tornar representante dos funcionários no Conselho de Administração da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET).

Risco de infarto
“Eu ficava seis horas em pé, de frente para a Marginal, em cima da ponte das Bandeiras, com caminhões e carros passando dos dois lados, sugando toda aquela fumaça concentrada, sem ter para onde fugir”, descreve Venceslau Coimbra, técnico de trânsito que participou de um estudo coordenado por Ubiratan de Paula Guimarães, médico do Instituto do Coração (InCor). Em um trabalho publicado no European Heart Journal, Guimarães avaliou 50 trabalhadores da CET – os marronzinhos, por causa da cor do uniforme que usam – que atuavam nas marginais do Tietê e do Pinheiros. Nos meses de inverno, que registram as maiores concentrações de poluentes, os trabalhadores apresentaram pressão alta, diminuição na variação da freqüência cardíaca (o coração fica mais rígido, o que pode ocasionar morte súbita) e inflamação dos brônquios, que acabava por liberar para o sangue uma quantidade elevada de substâncias associadas ao infarto, como a proteína C reativa. “Sugeri à empresa um acompanhamento de longo prazo, para pensar em medidas de prevenção”, afirma Guimarães. “A intenção é aproveitar o trabalho para modificar a legislação e classificar nossa atividade como penosa”, afirma Luiz Antonio Queiroz, presidente do Sindviários, entidade que representa os trabalhadores da CET.

Os efeitos da poluição atmosférica sobre a gestação também são perigosos. Gouveia verificou que a exposição a níveis elevados de poluição (10 microgramas diárias de monóxido de carbono além dos padrões aceitáveis, por exemplo) durante o primeiro trimestre de gravidez pode contribuir para que os bebês nasçam com peso reduzido – 20 gramas a menos, em média. O estudo, publicado no Journal Epidemiology Community Health, comparou os dados do Sistema de Informações de Nascidos Vivos (Sinasc) com os registros de poluição anotados pelas estações medidoras da Cetesb nos diferentes meses do ano. “O monóxido de carbono provoca baixa oxigenação do sangue e o material particulado prejudica a vascularização da placenta”, explica Gouveia.

A poluição em excesso parece interferir também na definição do sexo dos bebês. Em regiões de São Paulo mais atingidas pelos poluentes, há 2% mais meninas recém-nascidas do que meninos; em áreas de poluição menos intensa, o placar se inverte e nascem 3% a mais de garotos. “Reproduzimos a situação em laboratório, com camundongos, e os resultados foram semelhantes”, reforça Saldiva, autor do trabalho, que será publicado na Fertility and Sterility. Os gases e as partículas tóxicas devem afetar os testículos. O cromossomo Y, que define o sexo masculino, seria mais suscetível a lesões, permitindo uma relativa hegemonia do cromossomo X, responsável pelo sexo feminino.

Os especialistas concordam: a poluição atmosférica seria uma fonte a menos de preocupações para os paulistanos caso algumas medidas elementares fossem implementadas. E a implantação de transporte público em quantidade e com qualidade, a criação de mais corredores de ônibus e a ampliação das linhas do metrô, a modernização da frota de caminhões movida a diesel e a aplicação efetiva do programa de fiscalização veicular somada à educação ambiental. “Falhamos no diálogo com as administrações”, observa Saldiva. “Produzimos muitos e bons estudos, mas está na hora de transformar esses trabalhos em políticas públicas.”

O Projeto
O impacto das exposições intra-uterina e nas fases iniciais do desenvolvimento pós-natal aos poluentes atmosféricos no desenvolvimento de alterações adversas na vida adulta (nº 03/10772-9); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Paulo Saldiva – USP; Investimento R$ 361.802,28 e US$ 188.272,68

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