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Memória

Criação no concreto

Há cem anos o concreto armado começava a ser usado no Brasil

REVISTA "POLYTECHNICA" 31/32, 19101910: ponte de 28 metros em Socorro sobre o ribeirão dos MachadosREVISTA "POLYTECHNICA" 31/32, 1910

Na segunda metade do século XIX até 1910, o porto de Santos, no litoral paulista, era considerado pelos europeus como “maldito”. Motivos não faltavam. A cidade plana, encharcada, quente, poluída e com uma população crescente de imigrantes – em razão da exportação de café – colecionava epidemias: febre amarela, malária, peste bubônica, varíola e tuberculose. Para salvar a saúde dos moradores santistas e a economia local só restava sanear a cidade a qualquer custo. Para a tarefa foi escolhido o engenheiro fluminense Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, na Comissão de Saneamento, e o médico paulista Guilherme Álvaro, na Comissão Sanitária.

Uma técnica de construção já utilizada no exterior, mas praticamente inédita no Brasil, o concreto armado, de grande resistência, teve participação importante na restauração da salubridade de Santos. Até onde os estudos dos especialistas em engenharia e história alcançam, as primeiras obras conhecidas feitas com essa técnica foram canais, galerias e pontes que cortam Santos, projetados e construídos por Saturnino de Brito. Ele imaginava que os canais drenariam a água das chuvas e recolheriam a que vem dos morros. Um sistema de comportas regularia a entrada e a saída da água para o mar. Além disso, o regime das marés agiria sobre os canais impedindo que a água ficasse parada e evitando mosquitos. O Canal 1, feito sobre o traçado do ribeirão dos Soldados, foi inaugurado em 1907. No total, Brito projetou oito deles, aos quais foi acrescentado um, posteriormente.

A obra foi fundamental para o saneamento e tornou-se marca registrada da cidade junto com os extensos jardins da orla marítima. No próximo ano serão comemorados os cem anos dos canais, a cargo de uma comissão de organização, da qual faz parte a Fundação Arquivo e Memória de Santos (www.fundasantos.org.br). O concreto armado é uma massa formada por cimento, areia, água e pedras, que envolve a ferragem e adquire a forma que se queira. Surgiu na França com Joseph Louis Lambot, em 1850. No Brasil, a primeira referência que há sobre a técnica veio do professor Antonio de Paula Freitas, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Em trabalho de 1904, Freitas menciona a execução de seis prédios projetados pelo engenheiro Carlos Poma, que também teria construído um reservatório de água em Petrópolis, no Rio.

Ocorre que hoje não há sinal de onde essas construções foram erguidas nem se conhecem seus vestígios. “Também não se pode afirmar que elas eram o que hoje se define como concreto armado”, diz Augusto Carlos de Vasconcelos, engenheiro e professor aposentado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie, autor do estudo “Grandes obras de concreto armado”, que consta do livro 500 anos de engenharia no Brasil (Edusp, 384 páginas).

Depois dos canais de Santos, Vasconcelos acredita que a ponte sobre o ribeirão dos Machados, em Socorro (SP), é a obra mais antiga conhecida no Brasil a usar a técnica, em 1910. “O concreto armado provocou uma revolução na engenharia brasileira porque apenas com estruturas metálicas não haveria condições de fazer tantas grandes obras”, explica o engenheiro. “O aço era importado, caro e não havia uma indústria montada para produzi-lo aqui.” Outro fator contribuiu para sua disseminação: operários sem qualificação aprendem facilmente a fazer a massa no chão da obra e aplicá-la às ferragens. Esse ambiente ideal encontrou em Oscar Niemeyer seu melhor arquiteto. “Não é exagero dizer que Niemeyer não seria Niemeyer sem o concreto armado”, diz. A propósito de seu trabalho com a técnica, o arquiteto carioca já disse o seguinte: “Na arquitetura debrucei-me por toda a vida. Foi o meu hobby, uma das minhas alegrias, procurar a forma nova e criadora que o concreto armado sugere. Descobri-la, multiplicá-la, inseri-la na técnica mais avançada, criar o espetáculo arquitetural”.

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