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RECURSOS HUMANOS

Cursos de campo em ecologia encontram dificuldades no Brasil

Importantes para a formação dos futuros pesquisadores, disciplinas práticas sofrem com falta de verba

Caatinga, 2022: nos primeiros dias de curso no Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco, estudantes fazem caminhadas para observar o ambiente e pensar em projetos de pesquisa

Mikael Castro / UFPE

Fundamentais para a formação prática de futuros pesquisadores, os cursos de campo em ecologia encontram dificuldades no Brasil e sofrem com falta de verbas. Há, por isso, menos opções hoje para os estudantes de pós-graduação do que alguns anos atrás. Enquanto o Ecologia da Mata Atlântica, da Universidade de São Paulo (USP), criado há 17 anos e pelo qual passaram cerca de 200 alunos, não tem previsão de retorno, a 28ª edição do Ecologia da Floresta Amazônica (EFA) – uma iniciativa do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) – ainda não está confirmada. “Estamos em busca de financiamento”, conta a bióloga Flávia Delgado Santana, uma das coordenadoras do EFA, que já formou mais de 500 alunos. O curso integra o Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF-Inpa) e atualmente é também vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O da Mata Atlântica foi interrompido por falta de verba em 2019. “Com a pandemia da Covid-19, permaneceu suspenso e assim continua”, diz o biólogo Glauco Machado, da USP, coordenador desde a primeira edição, em 2007. “Gerações de ecólogos brasileiros passaram por esses cursos, que já se tornaram tradicionais na área e proporcionam uma imersão total na mata e no método científico”, diz ele, que foi monitor do EFA em 2001. Machado estima que para realizar uma edição, com os costumeiros 20 alunos por 28 dias em locais como a Área de Proteção Ambiental Cananéia-Iguape-Peruíbe, no litoral sul paulista, o orçamento seria, no mínimo, de R$ 80 mil.

Como para os dois cursos não há verba permanente, mantê-los em pé requer malabarismo. Para a edição de 2023 do EFA, que custou R$ 120 mil, segundo Santana, cerca de 70% dos recursos vieram de um financiamento do PDBFF, do Centro de Biodiversidade da Amazônia Thomas Lovejoy e da Fundação Paul & Maxine Frohring. Outros 25% vieram da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e 5% da pós-graduação em ecologia do Inpa. “Esses percentuais variam bastante a cada ano”, observa a pesquisadora. “Ele começou como um dos ramos de capacitação de recursos humanos do PDBFF, concebido pelo [biólogo norte-americano Thomas] Lovejoy [1941-2021] em 1978”, explica ela (ver Pesquisa FAPESP nº 230). Os alunos visitam de três a quatro ambientes diferentes.

Somar fontes de recursos é também a estratégia adotada pela coordenação do curso de campo Ecologia e Conservação da Caatinga, vinculado à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que teve 223 alunos desde sua primeira edição em 2008. Aberto também para estudantes que não estejam matriculados na instituição, assim como o EFA e o da Mata Atlântica, ele é realizado no Parque Nacional do Catimbau, em Buíque (PE). Sua última edição durou duas semanas, em setembro de 2023, com um investimento de mais de R$ 100 mil.

“Uma parte dos recursos vem da Capes e outra da Facepe [Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco]. O curso é uma vitrine da pós-graduação e entra como um produto de nossos projetos científicos”, conta uma das coordenadoras, a bióloga Inara Leal, da UFPE. O transporte até o parque é pago pela universidade, e fundos de projetos custeiam o transporte de professores convidados. “Por conta do baixo orçamento, já houve ano em que tivemos que reduzir o tempo de pesquisa, abrir menos vagas e restringir a um único local.”

Instituto Serrapilheira | Mikael Castro / UFPEMarcação de folhas em pesquisa sobre formigas-zumbi (infectadas por fungos) na Amazônia (à esq.), em 2023; coleta de dados no curso da Catinga (à dir.) Instituto Serrapilheira | Mikael Castro / UFPE

Experiência marcante
Oferecidos uma vez por ano, com uma média de 20 participantes, o formato de imersão não é apenas focado nas coletas de campo, mas procura treinar os estudantes de pós-graduação no próprio método científico, com foco no modelo hipotético-dedutivo. Todos têm a mesma inspiração: os cursos da Organização de Estudos Tropicais (OTS) na Costa Rica, um consórcio sem fins lucrativos criado em 1963 que congrega cerca de 50 instituições de pesquisa e universidades ao redor do mundo.

Mergulhados no campo por até um mês, os alunos desenvolvem projetos a cada um ou dois dias, sugerem hipóteses com base em observações em campo, coletam e analisam dados, contam com a mentoria de professores convidados e escrevem relatórios que apresentam quando todos se reúnem após o jantar. Os alunos geralmente são divididos em grupos nas primeiras fases do curso e, ao final, fazem projetos individuais.

Na edição de 2022 do curso da Caatinga, um grupo de estudantes tinha uma questão: como a densidade de folhas na copa da umburana-de-cambão (Commiphora leptophloeos), árvore que chega a 9 metros (m) de altura, está associada à exposição dos caules verdes que também realizam fotossíntese? Eles propunham a hipótese de que a perda de folhas, principal órgão para a fotossíntese, seria compensada com ganho adicional de dióxido de carbono (CO2) por meio desses caules. Por isso, os estudantes esperavam que árvores com menor densidade de folhas tivessem uma área maior de caules verdes.

“Mas eles obtiveram um resultado contrário”, conta Leal. Após as coletas e as análises, o grupo percebeu que, quanto maior a densidade de folhas, maior a área de caule verde. “Esse resultado indica que a espécie seja capaz de usar as duas estratégias de aquisição de carbono para melhor manutenção das condições diante das limitações do ambiente”, escreveram no relatório final. Segundo Machado, da USP, essa é uma forma eficiente de se fazer o conhecimento avançar, porque as ideias são descartadas conforme as hipóteses vão sendo rejeitadas.

“Também tentamos mostrar que é preciso lidar com a frustração e com os resultados negativos, além de discuti-los”, acrescenta Santana. Durante a pós-graduação em ecologia na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), em Ilhéus (BA), ela participou do Curso de Campo em Ecologia de Floresta no Sul da Bahia. “A experiência me instigou a seguir a carreira acadêmica. Fiquei totalmente imersa, treinando o uso do método científico”, conta. “Vi a mesma coisa nos alunos do curso da Amazônia, que dormem e acordam discutindo ciência”, complementa, destacando que a experiência muda as trajetórias de pesquisa de uma parte deles.

Leal, da UFPE, também fez cursos de campo durante a pós-graduação em ecologia e conta que pisou na floresta amazônica pela primeira vez na turma inaugural do EFA, em 1993. “Isso despertou ainda mais meu interesse por seguir na pesquisa”, conta. “Atribuo ao curso minhas habilidades de fazer projetos e escrever artigos científicos.” A pesquisadora destaca que o colega e biólogo Erich Fischer, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), estava na mesma turma. “Depois ele criou o curso de campo Ecologia do Pantanal, que tem mais de 20 anos.”

Instituto Serrapilheira | Flávia Marquitti / Unicamp | Amanda MacielNo curso do Serrapilheira em Peruíbe, estudantes testam fixação (à esq.) e locomoção (à dir.) do molusco Stramonita haemastoma; em excursão noturna, registram o opilião Serracutisoma proximum (embaixo)Instituto Serrapilheira | Flávia Marquitti / Unicamp | Amanda Maciel

O ecólogo Rafael Leitão, professor da UFMG, foi da turma de 2004 do EFA. “Quando fiz o curso, no segundo ano do mestrado, vi um mundo de possibilidades se abrir ao enxergar como o método científico realmente funciona, ao vivo. O processo colaborativo é importante, com as discussões, coletas e trabalhos em grupo”, diz ele, que hoje é um dos coordenadores, ao lado de Santana.

O biólogo Guilherme Corte fez o curso da Mata Atlântica em 2008, quando estava no primeiro ano do mestrado em ecologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e também tem a vivência em campo como um marco. “Foi uma das principais experiências que tive como cientista”, comenta. “Nas caminhadas na mata, os professores diziam: ‘Aquela bromélia está em cima da árvore, isso é um fato; elaborem uma hipótese’. Fazíamos uma tentativa e nos corrigiam: ‘Isso não é uma hipótese’.” Ele segue o método com alunos de graduação em biologia e mestrado em ciências ambientais na Universidade das Ilhas Virgens Americanas, nos Estados Unidos. “Parece óbvio, mas não é. Por isso, essa é a primeira aula que dou. Os estudantes se dividem em grupos e saem pelo campus em busca de três observações, três perguntas e três hipóteses.”

De fato, um estudo conduzido por ecólogos da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, buscou mensurar o impacto da experiência na carreira acadêmica de estudantes de pós-graduação em biologia e ecologia que participaram do Curso de Campo da Flórida, oferecido pela instituição há 50 anos. Para isso, levantaram dados de 184 alunos que participaram do curso e de 408 que não participaram, buscando suas publicações nas plataformas Google Acadêmico e Web of Science. Os primeiros publicaram 27% mais artigos científicos durante a pós-graduação do que seus colegas que não participaram do treinamento em campo. Dez anos após concluírem a graduação, eles continuaram publicando 14% mais. Os que fizeram curso de campo também foram mais propensos a se tornarem docentes universitários, embora não tenha feito muita diferença na tendência a seguir uma carreira científica.

Por meio de um formulário, os pesquisadores também questionaram 131 ex-alunos do curso de campo sobre quais habilidades foram aprimoradas com a experiência. Entre as principais estavam realizar pesquisa em campo (43%); pensar de forma abrangente sobre ciência, curiosidade ou descoberta (28%); e aprender observando a natureza (25%). Os dados foram relatados em novembro de 2022 na revista BioScience.

“Apesar dos benefícios documentados, o apoio das universidades para cursos e estações de campo está diminuindo, de tal forma que gerações futuras de biólogos provavelmente experimentarão a pesquisa em ciências biológicas de forma isolada de seu contexto ecológico”, alerta o artigo.

Na contramão dessa tendência, em julho de 2023 o Instituto Serrapilheira decidiu investir em uma etapa de campo na Mata Atlântica (coordenada por Glauco Machado) e na Amazônia (pelo biólogo Paulo Enrique Peixoto, da UFMG) para alunos do Curso de Formação em Ecologia Quantitativa, criado em 2021 e coordenado pela bióloga e matemática Flávia Marquitti, da Unicamp. A formação é aberta para estudantes de graduação e mestrado que tenham domínio da língua inglesa, idioma oficial das aulas que contam com a participação de professores de outros países. Marquitti foi aluna do curso de Ecologia da Mata Atlântica da USP em 2009. “Para mim foi muito marcante porque foi a primeira vez que pensei em unir modelagem matemática e trabalho de campo. Elaborei um modelo no meu projeto e fiz os testes com os dados que coletei”, conta.

Na primeira edição do curso de campo financiado pelo Serrapilheira, foram selecionados 16 estudantes de biologia, ecologia, física e matemática do último ano da graduação ou início do mestrado, entre 30 que fizeram a etapa teórica, para ir a campo colocar em prática o que aprenderam em sala de aula. Divididos em grupos de quatro alunos, cada grupo com dois orientadores, eles desenvolveram um projeto na Mata Atlântica, ao longo de sete dias, e outro na floresta amazônica com a mesma duração. Os alunos também pensam em perguntas, criam hipóteses, coletam dados, desenvolvem modelos estatísticos e apresentam resultados.

O orçamento para o curso de campo de 2023 foi de R$ 632 mil, para custear material de trabalho, alimentação completa, hospedagem e transporte para todos os alunos, além de 16 professores (alguns do exterior), três coordenadores e quatro tutores, que foram remunerados. “Estar no campo acaba sendo transformador e uma mudança de paradigma para os alunos, pois muitos nunca tinham nem sequer colocado o ‘pé no mato’”, observa o diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, Hugo Aguilaniu. “Há coisas que não é possível imaginar que aconteçam caso não sejam vistas.”

Aguilaniu destaca que, embora a modelagem matemática e a capacidade de analisar grandes quantidades de dados sejam fundamentais, elas precisam dialogar com o que os pesquisadores encontram na natureza. “Para o Serrapilheira, portanto, o curso de campo tem um papel essencial de completar esse ciclo”, conclui.

Artigo científico
HERNÁNDEZ, L. M. A, et. al. A half century of student data reveals the professional impacts of a biology field course. BioScience. v. 73, n. 1, nov. 2022.

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