A terra da garoa virou a megalópole da tempestade. Em cerca de 80 anos, a quantidade de chuva anual que cai na Região Metropolitana de São Paulo, onde um em cada 10 brasileiros vive numa área equivalente a quase 1% do território nacional, aumentou 425 milímetros (mm), metade do que chove em boa parte do semiárido brasileiro. Saltou de uma média anual de quase 1.200 mm na década de 1930 para algo em torno dos 1.600 nos anos 2000. Fazendo uma soma linear, é como se todo ano tivesse chovido 5,5 mm a mais do que nos 12 meses anteriores. A pluviosidade não apenas se intensificou como alterou seu padrão de ocorrência. Não está simplesmente chovendo um pouco mais a cada dia, um efeito que seria pouco perceptível na prática e incapaz de ocasionar alagamentos constantes na região. A quantidade de dias com chuva forte ou moderada cresceu, provocando inclusive tempestades no inverno, época normalmente seca. Em contrapartida, o número de dias com chuva fraca, menor do que 5 mm, diminuiu.
Um regime de extremos, pendular, passou a dominar o ciclo das águas na região metropolitana: quando chove, em geral é muito; mas, entre os dias de grande umidade, pode haver longos períodos de seca. A Grande São Paulo parece caminhar para o pior dos dois mundos, alternando períodos intensos de excesso e de falta de chuva ao longo do ano. “A urbanização e o chamado efeito ilha de calor, além da poluição atmosférica, parecem ter um papel importante na alteração do padrão de pluviosidade em São Paulo, em especial nas estações já normalmente mais úmidas, como primavera e verão”, afirma Maria Assunção da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), autora de um estudo ainda inédito sobre o tema. “Nos meses mais secos, a influência das mudanças globais do clima é responsável por 85% da dinâmica envolvida no aumento de chuvas extremas.”
Embora com menos nitidez, a mesma tendência de elevação no número de dias com chuva intensa foi detectada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O novo padrão pluviométrico em São Paulo não é como uma frente fria passageira. Veio para ficar, segundo modelagens feitas pelo Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CCST-Inpe). As projeções sugerem que a situação atual é uma espécie de prólogo do enredo futuro. Elas sinalizam que deverá ocorrer até o final deste século um aumento no número de dias com chuvas superiores a 10, 20, 30 e 50 mm, ou seja, praticamente em todas as faixas significativas de pluviosidade. Haverá apenas uma diminuição na quantidade de dias com chuvas muito fracas e possivelmente um aumento no número de dias secos. “A sazonalidade das chuvas também deverá mudar”, afirma José Marengo, chefe do CCST, coordenador de um trabalho ainda não publicado sobre as projeções de chuva na região metropolitana. “A quantidade de tempestades fora da época normalmente mais úmida deverá crescer, um tipo de situação que pega a população de surpresa.” As simulações levam em conta apenas os possíveis efeitos sobre o regime pluviométrico da região metropolitana causados pelas chamadas mudanças climáticas globais, sobretudo o aumento nas concentrações dos gases de efeito estufa, que esquentam a temperatura do ar. O peso que a urbanização e a poluição atmosférica podem ter sobre as chuvas da Grande São Paulo não é considerado nas projeções.
Uma das grandes dificuldades de fazer grandes estudos, capazes de revelar flutuações climáticas do passado e servir de baliza para projeções futuras, é a ausência de séries históricas longas e confiáveis, com informações diárias sobre a incidência de chuvas. Sem elas, não é possível fazer uma análise estatística robusta e ter uma visão clara sobre quanto chovia e como se distribuía a pluviosidade ao longo dos anos e das estações climáticas (primavera, verão, outono e inverno). Os especialistas são unânimes em apontar essa deficiência no Brasil. A série com dados de melhor qualidade sobre chuvas num ponto do território nacional é a fornecida pela estação meteorológica do IAG, que fica no Parque do Estado, no bairro da Água Funda, zona Sul da cidade de São Paulo. Os registros se iniciaram em 1933, quando a unidade foi inaugurada, e prosseguem até hoje.
Outro fator reveste os dados fornecidos pela estação meteorológica do IAG de um caráter único. Os registros foram obtidos dentro de uma grande área verde da cidade de São Paulo que não mudou radicalmente seu perfil ao longo de quase oito décadas – uma raridade numa megalópole que não possui muitos parques e jardins. Em outras palavras, embora a cidade tenha sofrido um forte processo de urbanização e de impermeabilização do solo no século passado, as condições naturais nos arredores da estação do Parque do Estado não se alteraram radicalmente. Dessa forma, faz sentido comparar os dados do presente com os do passado, visto que o ambiente local é mais ou menos o mesmo. “Na zona Norte de São Paulo, no Mirante de Santana, existe uma estação meteorológica com medições desde os anos 1950”, afirma Pedro Leite da Silva Dias, pesquisador do IAG-USP e diretor do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), no Rio de Janeiro, também autor do estudo sobre a evolução das chuvas na região metropolitana. “Mas lá só havia matas algumas décadas atrás e hoje tem prédio do lado da estação.”
Devido à riqueza de dados fornecidos pela estação do IAG no Parque do Estado, Assunção e seus colaboradores puderam enxergar detalhes e tendências mais sutis no regime das chuvas ao longo das últimas oito décadas. Entre 1935 e 1944 choveu, em média, mais do que 40 mm em cerca de 30 dias, com grande concentração de pluviosidade nos meses de verão e, em menor escala, na primavera e no outono. Durante o período não houve registros de episódios de pluviosidade dessa intensidade nos meses de inverno. A situação começou a mudar a partir de meados dos anos 1940. Desde então, em todas as décadas ocorreu, em média, ao menos uma chuva desse porte no inverno. Entre 2000 e 2009, o número total de jornadas com tempestades acima de 40 mm esteve na casa de 70 eventos. Uma tendência similar se repete quando se analisa década a década a ocorrência de chuvas diárias acima de 60 e de 80 mm.
De forma geral, dois fatores principais podem estar relacionados com a alteração no regime de chuvas na região metropolitana: as mudanças climáticas globais, um fenômeno de grande escala, e o efeito ilha de calor, de caráter localizado e típico das megacidades. Os dois atuam em conjunto. Um potencializa os efeitos do outro e, em geral, é difícil traçar uma linha divisória entre ambos. Segundo Marengo, a maioria dos modelos climáticos indica que haverá um aumento na quantidade de chuva desde a bacia do Prata até o Sudeste do Brasil nas próximas décadas. Dentro dessa moldura mais ampla, surge a questão específica do clima nas grandes cidades, em especial do efeito ilha de calor, que, ao tornar mais quentes as áreas extremamente urbanizadas, também funciona como um ímã de chuvas.
Brisa marinha mais úmida
A temperatura superficial do oceano Atlântico no litoral paulista aumentou cerca de um grau entre os anos de 1950 e 2010. Passou de 21,5°C para 22,5°C. Pode parecer pouco, mas uma das consequências desse aquecimento é aumentar a taxa de evaporação da água do oceano, combustível que torna a brisa marinha ainda mais carregada de umidade. Esse processo tem repercussões sobre o clima acima da serra do Mar, no planalto onde fica a região metropolitana.
Por que boa parte das chuvas na Grande São Paulo ocorre entre o meio e o final da tarde, depois das 15 ou 16 horas? Essa é a hora em que a brisa marinha, quente e úmida, vinda da Baixada Santista, termina de subir a serra e atinge a megalópole. “A zona Sudeste é geralmente o primeiro lugar da capital que sente os efeitos da brisa”, comenta Maria Assunção. A estrutura interna das cidades, com muitos prédios altos, altera a direção dos ventos e pode até provocar a ascensão da brisa marinha em certoss pontos da região metropolitana e favorecer localmente a formação de nuvens de chuvas. A poluição urbana, sobretudo os aerossóis, pode tanto favorecer como inibir a ocorrência de tempestades sobre as cidades, dependendo de sua quantidade.
Estudos feitos nos Estados Unidos na década de 1990 sugerem que parte do aumento de pluviosidade em algumas regiões metropolitanas, como na de Saint Louis, se deve à sua crescente urbanização. Nessa área do estado de Missouri, onde vivem cerca de 2,9 milhões de pessoas, as chuvas aumentaram entre 5% e 25% nas últimas décadas. Um estudo do ano passado, conduzido em grandes cidades da Índia, conclui que as alterações no regime pluviométrico dessas concentrações urbanas derivam mais das flutuações naturais do clima do que de fenômenos locais.
Estratégias de mitigação
No caso da Região Metropolitana de São Paulo, o trabalho da USP encontrou uma forte correlação entre seu processo de urbanização e as alterações no regime das chuvas. Os episódios de chuvas extremas, acima de 40 mm, se acentuam à medida que a população de São Paulo e de suas cidades vizinhas cresce e os territórios desses municípios viram praticamente uma única mancha de ocupação contínua, com pouco verde, muito asfalto e repleta de fontes de poluição e calor. De 1940 a 2010, a população da região metropolitana aumentou 10 vezes, de 2 para 20 milhões de habitantes. A mancha urbana cresceu 12 vezes entre 1930 e 2002, de 200 para 2.400 quilômetros quadrados. A temperatura média anual de São Paulo subiu 3°C entre 1933 e 2009, de acordo com os registros da estação do IAG no Parque do Estado e o total de chuvas aumentou em um terço. “Antes estudávamos esse processo de forma teórica”, afirma Pedro Leite da Silva Dias. “Agora temos mais dados, inclusive de fontes digitais.”
Mitigar o efeito ilha de calor pode ser uma forma de reduzir os episódios de chuvas extremas nos centros urbanos. O físico Edmilson Dias de Freitas, do IAG-USP, tem testado algumas medidas em simulações computacionais para ter uma ideia de seu impacto sobre o clima da Região Metropolitana de São Paulo. Pintar de branco as superfícies das casas e prédios não seria um procedimento eficaz. “A poluição e os eventos meteorológicos escurecem o branco rapidamente em São Paulo”, diz Freitas. “Não há como manter isso.” A medida mais eficaz seria aumentar a cobertura vegetal da cidade. Segundo as simulações, se 25% da área da região metropolitana fosse tomada por árvores, a temperatura média poderia ser reduzida entre 1,5°C e 2,5°C. Um clima mais ameno reduziria o efeito ilha de calor e talvez não atraísse tanta chuva para a região. Hoje as áreas verdes não representam nem 10% da Grande São Paulo.
Por tabela, se houvesse mais parques e menos áreas impermeabilizadas na maior metrópole brasileira, o efeito mais perverso das tempestades também seria minimizado: as chuvas intensas produziriam menos enchentes e alagamentos. O solo exposto absorve mais as águas que caem sobre ele. “São Paulo fere um princípio básico de drenagem: a água da chuva tem de se infiltrar no solo onde ela cai”, diz a engenheira civil Denise Duarte, professsora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que colabora com colegas do IAG. “Aqui, com boa parte da cidade impermeabilizada, a água é simplesmente escoada.” A chuva de um lugar é transferida para outro, em geral os situados em pontos baixos da mancha urbana.
O valor atual de aproximadamente 1.600 mm anuais de chuva registrado na estação do IAG funciona como uma referência genérica ao regime pluviométrico vigente na região metropolitana. Numa área que hoje se estende por 8 mil quilômetros quadrados e engloba os territórios de 39 municípios, a quantidade de chuva realmente medida ano a ano em cada estação meteorológica pode variar bastante. Um trabalho do CCST traça uma espécie de distribuição geográfica da pluviosidade na Grande São Paulo a partir de séries históricas, com o total diário de chuva, fornecidas por 94 estações meteorológicas do Departamento de Águas e Energia (DAEE) do Estado de São Paulo e da Agência Nacional de Águas (ANA). Dados de um período de 25 anos, entre 1973 e 1997, foram utilizados no trabalho.
Nas zonas mais úmidas, em geral pontuadas por serras e montanhas, a pluviosidade anual pode chegar a 2.400 mm, quantidade de chuva parecida com a da floresta amazônica. Esse é caso da porção da Grande São Paulo cortada pela serra do Mar, que pega o trecho sul da capital paulista e parte de cidades como São Bernardo do Campo e Rio Grande da Serra, e também de trechos de Santana do Parnaíba e Cajamar, no oeste da região metropolitana. Nas áreas menos úmidas, como uma grande parte de Mogi das Cruzes, o índice de chuvas pode ficar na casa dos 1.300 mm por ano. Entre esses dois extremos há vários níveis intermediários de pluviosidade.
“Essa diferença de níveis de chuvas se mantém ao longo do ano e em todas as estações climáticas”, diz Guillermo Obregón, do CCST, principal autor do estudo sobre a distribuição geográfica da chuva na região metropolitana. “Nos locais mais úmidos predominam as chuvas orográficas ou de relevo.” Esse mecanismo faz as massas de ar quente e úmido subirem ao se chocar com elevações topográficas, condensarem-se e gerarem precipitações frequentes. Seja por seus prédios e asfalto, seja por suas áreas montanhosas, a Grande São Paulo parece estar no caminho das chuvas.
leo ramos
Mais águas na Guanabara
As chuvas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a segunda maior do país com 12,5 milhões de habitantes, parecem exibir tendências semelhantes às de São Paulo. Embora a capital fluminense não disponha de uma série histórica sobre pluviosidade tão longa e confiável como a do IAG-USP, duas estações do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) instaladas no Rio de Janeiro fornecem dados de qualidade razoável sobre ao menos quatro décadas de chuva.
De acordo com os registros obtidos entre 1967 e 2007 pela estação mantida no Alto da Boa Vista, a quantidade de água despejada sobre esse bairro da zona Norte da capital fluminense nos dias de forte tempestade elevou-se, em média, 11,7 mm ao ano. A estação fica no Parque Nacional da Tijuca, uma das maiores florestas urbanas do planeta. “Houve uma tendência de aumento da pluviosidade total na região metropolitana e as áreas de floresta, como o Alto da Boa Vista, se tornaram mais úmidas”, afirma a meteorologista Claudine Dereczynski, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), principal autora do estudo, ainda não publicado.
A outra estação do Inmet se situa em Santa Cruz, bairro com menos áreas verdes da zona Oeste. Nessa região, os sinais de intensificação das chuvas foram discretos, segundo as informações coletadas entre 1964 e 2009, e não foram considerados estatisticamente significativos. “No Rio, os dados climáticos das últimas décadas sinalizam mais claramente um aumento na temperatura local e de forma mais fraca uma elevação da quantidade de chuvas”, diz Claudine. Simulações feitas por pesquisadores do Inpe e da UFRJ projetam para as próximas décadas um aumento na intensidade e na frequência tanto dos dias de chuva intensa como dos de seca. A pluviosidade apresenta tendência a se tornar mais mal distribuída ao longo do ano e a se concentrar fortemente em alguns dias.
Os Projetos
1. Narrowing the Uncertainties on Aerosol and Climate Changes in São Paulo State – Nuance-SPS (n° 08/58104-8); Modalidade Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais – Projeto Temático; Coordenadora Maria de Fátima Andrade – IAG-USP; Investimento R$ 570.084,46 e US$ 2.654.199,16
2. Assessment of impacts and vulnerability to climate change in Brazil and strategies for adaptation option (n° 08/58161-1); Modalidade Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais – Projeto Temático; Coordenador José Marengo – Inpe; Investimento R$ 1.264.027,66
Artigos científicos
SILVA DIAS, M.A.F. et al. Changes in extreme daily rainfall for São Paulo, Brazil. Climatic Change. no prelo. 2012.
MARENGO, J. A. et al. The climate in future: projections of changes in rainfall extremes for the Metropolitan Area of São Paulo (Masp). Climate Research. no prelo. 2012