Avanços técnicos na capacidade de observação da natureza costumam fornecer pistas iniciais de cenários até então insuspeitos e gerar dados mais detalhados sobre fenômenos conhecidos. Dois trabalhos recentes feitos a partir de informações e imagens produzidas pelo Telescópio Espacial James Webb (JWST), o mais caro e potente aparato humano lançado aos céus para estudar o Universo, destacam achados que vão nessa direção e não se encaixam perfeitamente na teoria mais aceita sobre a formação e evolução do Cosmo.
Um diz respeito à inesperada descoberta no Universo nascente e longínquo de galáxias maduras, um tipo de estrutura que, em princípio, deveria aparecer apenas mais tarde. Outro reforça uma divergência de algumas décadas sobre a velocidade de expansão do Universo, parâmetro-chave para entender a dinâmica celeste de estrelas, galáxias, buracos negros, sistemas planetários e tudo mais que existe no espaço. Essa taxa também é, ao lado da descoberta de estrelas velhas, um ingrediente importante para inferir a própria idade do Cosmo, hoje estimada em 13,8 bilhões de anos.
Os dados que causam certo desconforto e excitação começaram a surgir no início deste ano. Em fevereiro, um artigo publicado na revista científica Nature deu conta da provável descoberta de seis galáxias totalmente formadas quando o Universo ainda estava em sua infância e tinha apenas 5% de seu tempo de vida atual. Entre 500 e 700 milhões de anos depois do Big Bang, a explosão primordial que teria originado o Cosmo, essas galáxias já exibiam um tamanho quase igual ao da Via Láctea.
“Esses objetos são muito mais massivos do que qualquer um esperava”, disse, em comunicado de imprensa, o astrofísico Joel Leja, da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, autor principal do estudo. “Tínhamos expectativa de encontrar apenas galáxias bebês, pequenas e jovens, nesse período, mas descobrimos galáxias tão maduras como a nossa no que anteriormente se entendia ser o alvorecer do Universo.”
Diferentemente das belas imagens de outros corpos celestes flagrados pelo James Webb, que exibiam impressionante riqueza de detalhes estéticos, os registros dessas galáxias primordiais não passam de pontos desfocados colorizados em tom avermelhado para terem algum destaque. São uma decepção para os olhos, mas não para os pesquisadores. Nunca galáxias tão desenvolvidas, que parecem se encontrar fora de seu tempo e espaço habituais, tinham sido observadas na infância do Universo.
“Essa não foi uma discrepância menor. A descoberta é como encontrar pais e seus filhos no mesmo momento de uma história em que os avós ainda são crianças”, escreveram, em um artigo de opinião em setembro no jornal norte-americano The New York Times, o físico teórico brasileiro Marcelo Gleiser, do Dartmouth College, e o astrofísico Adam Frank, da Universidade de Rochester. No comentário, ambos, que não participam dos estudos iniciais com dados do James Webb, dizem que as novas informações fornecidas pelo supertelescópio, ao lado de outras questões pendentes, podem levar a uma revisão da cosmologia.
“O James Webb está no início de seu período de observações e ainda vem sendo calibrado. Temos de esperar alguns meses para conseguir dados mais consolidados”, diz o astrofísico Thiago Signorini Gonçalves, do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (OV-UFRJ), que estuda formação e evolução de galáxias. “Mas a existência dessas galáxias formadas pouco tempo depois do Big Bang foi uma surpresa.”
O novo telescópio foi lançado ao espaço em dezembro de 2021 e começou a divulgar suas primeiras imagens em julho do ano passado (ver Pesquisa FAPESP nº 318). É considerado uma espécie de sucessor do telescópio Hubble, que ainda está operacional. Seu espelho principal tem um diâmetro de 6,5 metros e uma área coletora de luz seis vezes maior do que a do Hubble.
Foi pensado para observar preferencialmente a chamada idade das trevas do Universo, a partir de 300 milhões de anos depois do Big Bang. Nessa época, o Cosmo era pouco mais do que uma nuvem espessa formada pelo gás hidrogênio. Aos poucos, a matéria começa a se concentrar e surgem as primeiras estrelas e galáxias. Essa fase do Universo pode ser observada em detalhes no infravermelho. Como o Cosmo está em expansão, quanto mais veloz for uma galáxia, mais distante ela estará da Terra. Nessas condições, o efeito Doppler reduz a frequência da luz que ela emite do visível para o infravermelho. Por isso, o James Webb opera essencialmente no infravermelho.
Se não é fácil explicar a existência do sexteto de galáxias precocemente desenvolvidas nos primórdios do Universo, mais difícil ainda é conciliar uma divergência de quase 9% entre os dois valores atuais, obtidos por dois métodos distintos, para a taxa de expansão do Universo. Esse parâmetro é denominado constante de Hubble, uma referência a seu formulador, o astrônomo norte-americano Edwin Powell Hubble (1889-1953), cujo nome foi usado para batizar o telescópio homônimo.
Havia expectativa de que o James Webb, com sua enorme capacidade observacional, pusesse fim a essa discrepância, apelidada de tensão de Hubble. Isso não ocorreu até agora. “Essa é uma questão realmente importante”, opina o físico teórico Gustavo Burdman, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). “Se ela não for resolvida, talvez seja preciso pensar em uma nova física, em alterar o modelo cosmológico.”
Uma forma de calcular a velocidade de expansão do Universo é a partir da análise da radiação cósmica de fundo. Esse parâmetro é um resquício das ondas eletromagnéticas emanadas pelas primeiras estrelas formadas por volta de 380 mil anos após o Big Bang, assim que o Cosmo começou a esfriar. Ao medir propriedades dessa radiação, uma espécie de fóssil do nascente Universo, é possível calcular a constante de Hubble.
ESA /PLANCKMapa das flutuações de temperatura da radiação cósmica de fundo emitida 380 mil anos após o Big BangESA /PLANCK
O satélite Planck, da Agência Espacial Europeia (ESA), mediu com grande precisão a radiação cósmica de fundo em 2013 e chegou a um valor para a constante de Hubble de 67/68 quilômetros por segundo a cada milhão de parsec (km/s/megaparsec). Um parsec corresponde a 3,26 anos-luz.
A outra forma usada para calcular a velocidade de expansão do Universo se baseia no registro da variação da distância de estrelas ao longo do tempo. Geralmente, são observadas para esse fim estrelas denominadas cefeidas, um tipo de supernova gigante cujo brilho varia com certa periodicidade, característica que as tornam úteis para determinar distâncias. Por essa técnica, a velocidade atual de expansão do Universo foi calculada como sendo de 73/74 km/s/megaparsec. Dados do telescópio Hubble foram importantes para se obter esse número.
Em outubro deste ano, um grupo liderado pelo astrofísico Adam Riess, da Universidade Johns Hopkins, publicou artigo na revista Astrophysical Journal Letters com um novo cálculo da constante de Hubble – agora a partir da análise de 320 cefeidas de duas galaxias, NGC4258 e NGC5584, observadas pelo James Webb. O resultado ratificou, com um nível de precisão ainda maior, que a constante de Hubble, quando calculada por essa abordagem, é de 73/74 km/s/megaparsec.
Segundo Riess, as medidas anteriores do telescópio Hubble estavam certas, apesar de conterem mais sujeira nos dados. O pesquisador foi um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física de 2011 por estudos com cefeidas que forneceram evidências de que o Cosmo se expande de forma acelerada. “O que esses novos dados não explicam ainda é por que o Universo está se expandindo tão rapidamente”, disse ele, em material de divulgação do estudo.
Eles também não querem dizer que a velocidade de expansão do Universo calculada pelo método que usa a radiação cósmica de fundo esteja errada. “A medida da constante de Hubble atingiu um grande nível de precisão, com uma margem de erro de cerca de 1%. No entanto, as duas formas independentes de calculá-la apresentam um desacordo significativo, de aproximadamente 5 desvios-padrão”, explica o físico Rogério Rosenfeld, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp). “Isso pode indicar uma necessidade de mudar o modelo cosmológico padrão.” Atualmente, o modelo sugere que o Cosmos é constituído de 5% de matéria normal (visível), 26% de matéria escura e 69% de energia escura. A natureza desses dois últimos componentes é desconhecida.
É possível que a persistência da Tensão de Hubble seja um indicador de que algum ingrediente fundamental esteja faltando na composição do Universo. Em um artigo publicado em outubro deste ano na revista científica Physical Review D, Rosenfeld e um colaborador exploram a ideia de introduzir no modelo-padrão da cosmologia um novo tipo de componente. Seria a energia escura inicial, que estaria apenas presente no Universo nascente.
Sua inclusão poderia levar à correção do valor da taxa de expansão do Universo calculada a partir da radiação cósmica de fundo para um número compatível com o obtido pela análise do movimento das cefeidas. É uma possibilidade. Outras devem surgir à medida que o James Webb e outros instrumentos de observação modernos fornecerem dados cada vez mais precisos sobre diferentes objetos, épocas e fenômenos do Cosmo.
Projeto
ICTP – Instituto sul-americano para física fundamental: Um centro regional para física teórica (nº 21/14335-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Nathan Jacob Berkovits (Unesp); Investimento R$ 13.036.127,20.
Artigos científicos
LABBÉ. I. et al. A population of red candidate massive galaxies ~600 Myr after the Big Bang. Nature. 22 fev. 2023.
RIESS, A.G. et al. Crowded No More: The Accuracy of the Hubble Constant Tested with High Resolution Observations of Cepheids by JWST. The Astrophysical Journal Letters. 16 out. 2023.
SOUZA, D. H. F. e ROSENFELD. R. Can neutrino-assisted early dark energy models ameliorate the H0 tension in a natural way? Physical Review D. 10 out. 2023.
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