Inicialmente na Universidade Harvard, de 1959 a 1966, e desde então no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), o norte-americano Daniel Kleppner esteve à frente ou participou de experimentos que implantaram três técnicas de trabalho hoje amplamente utilizadas na física. A primeira são os relógios atômicos de maser (amplificação de micro-ondas por emissão estimulada de radiação, na sigla em inglês) de hidrogênio, dos quais resultou o Sistema de Posicionamento Global (GPS), hoje usado em carros e telefones celulares. A segunda é a eletrodinâmica quântica em cavidades, que permitiu estudar propriedades quânticas como o fenômeno do emaranhamento, em que qualquer ação sobre uma partícula pode interferir em seu par, ainda que distante. A terceira é o confinamento e o resfriamento de átomos para produzir os condensados de Bose-Einstein, um estado da matéria obtido a quase zero absoluto (-273º Celsius), previsto pelo físico indiano Satyendra Bose (1894-1974) e por Albert Einstein (1879-1955) e demonstrado experimentalmente em 1995.
Premiado em janeiro deste ano pela American Physical Society (APS) com a APS Medal for Exceptional Achievement in Research, Kleppner cresceu em Nova York. Filho de um imigrante austríaco, ele gostava de construir rádios de galena e pequenos aviões quando criança. Depois de se formar em engenharia, em 1953, estudou dois anos na Univer-sidade de Cambridge, na Inglaterra, antes de ir para Harvard. Ali, Kleppner e seu orientador de doutorado, Norman Ramsey, Prêmio Nobel de Física de 1989, desenvolveram o maser de hidrogênio, 100 mil vezes mais preciso que os relógios atômicos até então utilizados na medição do tempo.
Em 1989, Kleppner estava em um restaurante de São Carlos (SP) com colegas brasileiros quando anotou as ideias para seu artigo de estreia como colunista da Physics Today, revista da APS. No texto, intitulado “Uma paixão por precisão”, ele descreve o prazer pela busca de novos métodos para medir as propriedades dos átomos que descobriu com Ramsey. Ele escreveu para a Physics Today até 2013.
Desde 1985, ele esteve várias vezes no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), com o qual mantém colaboração. Aos 84 anos, casado com Beatrice, professora de ensino médio, três filhos e quatro netos, ele voltou ao Brasil em fevereiro deste ano, reviu os antigos colegas e ministrou a aula magna “Três sementes do florescimento das ciências quânticas”, em que tratou, em retrospectiva, de sua participação na pesquisa dos relógios atômicos; na produção, em laboratório, dos chamados átomos de Rydberg, com elétrons com tanta energia que se afastam do núcleo a distâncias até 10 mil vezes maiores que o normal; e nos condensados de Bose-Einstein (ver Pesquisa FAPESP no 101). “Os alunos estavam muito entusiasmados, como os grupos de pesquisa que visitei no Instituto de Física”, ele comentou. Lá estão, agora como professores, dois físicos que ele orientou: Jarbas Castro Neto e Vanderlei Bagnato. Nesta entrevista, concedida duas semanas depois de sua apresentação, Kleppner retomou as circunstâncias e as dificuldades de cada um desses trabalhos.
Como o senhor começou sua carreira na física atômica?
Tive um grande professor de física no ensino médio e, na faculdade, professores maravilhosos. Na Universidade de Cambridge, onde estive dois anos como estudante de graduação, meu tutor, Kenneth Smith, indicou um artigo com uma proposta de um tipo de relógio que poderia ser acurado o suficiente para testar as previsões de Einstein sobre o efeito da gravidade sobre o tempo. A ideia de que a gravidade poderia interferir na operação de um relógio e na própria passagem do tempo me pareceu perturbadora. Não fiz nada de imediato, mas a ideia ficou na minha mente. Depois fui para a Universidade Harvard e entrei no grupo de Norman Ramsey (1915-2011). Foi ele que inventou a técnica que tornou os relógios atômicos úteis na prática.
O que Ramsey fez?
Ele imaginava um tipo de relógio que funcionasse com base não no feixe de césio, que era o padrão inicialmente, mas no que se tornou conhecido depois como maser de hidrogênio. Um relógio de feixe atômico, como era usado, tem um feixe de átomos, que responde a uma radiação com frequência única. A resposta dos átomos é usada para controlar a frequência de um oscilador eletrônico. No maser, os átomos de um feixe de moléculas são filtrados ao entrar em uma cavidade, onde, depois de um tempo, todos começam a emitir radiação, cujas oscilações poderiam ser medidas. Entrei no grupo de Ramsey justamente quando estavam pensando em como fazer isso, que na época parecia impossível. Norman acreditava que seria possível aumentar em mil vezes a precisão dos relógios atômicos colocando os átomos em uma cavidade de ressonância. Em meu doutorado construí e testei um aparelho que se mostrou promissor, e depois, com um estudante de graduação, construí o maser, que começou a operar no ano seguinte. No final dos anos 1950, Ramsey e eu começamos a desenvolver um maser que iria para o espaço. A Era Espacial havia começado e a Nasa [agência espacial norte-americana] achava muito atraente a ideia de testar a teoria de Einstein com um satélite. Mas começamos a ficar apreensivos.
Por quê?
Nossos objetivos em Harvard e os da Nasa não eram exatamente os mesmos. A Nasa insistia em que os astronautas tivessem um papel ativo no experimento, mas, quando um relógio começa a operar, o melhor a fazer é deixá-lo em paz. Eu estava também preocupado com outro problema. E se chegássemos a um resultado diferente do proposto pela teo-ria de Einstein? Poderíamos repetir o experimento, mas levaria muitos anos e haveria um grande questionamento sobre o trabalho de Einstein. Desistimos, mas um dos pesquisadores do grupo, que trabalhava com uma empresa interessada em fazer do relógio um produto comercial, gostou da ideia e continuou trabalhando com a Marinha dos Estados Unidos. Fizeram um experimento muito melhor do que o que havíamos planejado. Em vez de colocar o relógio em um satélite, eles o colocaram em um foguete que alcançou uma altura aproximada do diâmetro da Terra no espaço e voltou. O experimento confirmou a teoria de Einstein, gerou avanços na tecnologia dos masers de hidrogênio e contribuiu para ajustar as técnicas de comparação dos relógios no espaço com os da Terra. Um desdobramento desse trabalho foi o Sistema de Posicionamento Global, que funciona comparando relógios do espaço com os da superfície. Veja: a ideia de verificar a relatividade geral de Einstein levou ao GPS. Não desenvolvemos o GPS, mas os relógios atômicos são o coração dele. Para mim, é um belo exemplo de como a pesquisa básica proporciona recompensas de maneiras inesperadas.
Como os relógios atômicos evoluíram?
Desde a década de 1990, quando foram criados, a precisão deles aumentou 100 mil vezes. Até 10 anos atrás, todos os relógios atômicos funcionavam apenas na frequência das micro-ondas, de 109 ciclos por segundo. Uma nova tecnologia usando frequências ópticas, cujos ciclos são 10 mil ou 100 mil vezes mais rápidos, funcionou muito bem. Mas e agora, o que vamos fazer com esses relógios tão mais precisos? O efeito gravitacional sobre o tempo não é mais algo interessante de observar. Alguém poderia virar o jogo do avesso e usar os relógios para medir a gravidade. É só uma especulação, mas medir a variação da gravidade na Terra com essa precisão poderia dar uma visão imediata das transformações das massas rochosas e dos oceanos. Isso poderia ser importante, por causa das mudanças climáticas.
Seu laboratório foi um dos primeiros a criar os átomos de Rydberg [com elétrons afastados do núcleo a distâncias até 10 mil vezes maiores que o normal]. Como foi?
Outros grupos conseguiram praticamente ao mesmo tempo. Essa ideia ficou indo e vindo na minha mente durante anos. Em Harvard, um físico muito criativo, profundo e agradável, Edward Purcell (1912-1997), um dos inventores da ressonância magnética nuclear, me contou sobre uma descoberta em radioastronomia. Alguns pesquisadores haviam visto sinais de átomos de hidrogênio que acabavam de ser formados em uma estrela próxima. Nessa estrela, prótons e elétrons se uniam e formavam um átomo de hidrogênio, que é apenas um próton ligado a um elétron. Mas os elétrons haviam se ligado a uma distância muito grande e desciam de uma órbita para outra até chegarem a um estado de menor energia. Pensei em como aquilo era bonito e comecei a examinar as propriedades extraor-dinárias desses átomos. Seus estados são caracterizados pelo que é chamado o número quântico principal, n. Normalmente, n é um número pequeno, 5, 4 ou 3. Aquilo era n=100. Então os astrônomos conseguiram ver um sinal emitido quando o elétron foi de n=100 para n=99. As condições para ver esses estados seriam uma densidade muito baixa, o que requer um volume muito grande, como no espaço. No início dos anos 1970, vimos que poderíamos produzir esses átomos em laboratório usando lasers [por serem grandes e fáceis de detectar, os átomos de Rydberg poderiam ser manipulados e estudados mais facilmente que os comuns]. Funcionou na primeira tentativa! Foi meu único experimento que funcionou na primeira tentativa.
O senhor foi também um dos primeiros a produzir a condensação de Bose-Einstein em laboratório.
Um artigo na Physical Review Letters de 1976 resumia o que sabíamos sobre a física dos átomos de hidrogênio e terminava com a observação muito interessante. Os autores, William Stwalley, da Universidade de Connecticut, e Lewis Nosanow, da Divisão de Pesquisa de Materiais, um dos centros mantidos pela National Science Foundation (NSF), diziam que, se hidrogênio atômico pudesse ser arranjado em um estado particular, poderia ser resfriado até o zero absoluto, mas nunca se transformaria em um sólido ou líquido. O hidrogênio é muito mais leve que o hélio e tem tanta energia que não se torna líquido mesmo no zero absoluto. Mas, se resfriado o suficiente, esse gás de hidrogênio poderia sofrer uma mudança, uma condensação de Bose-Einstein. Li o artigo, mas deixei de lado porque colocar hidrogênio nessas temperaturas e densidade parecia absurdo. Contei isso a meu colega do MIT Thomas Greytak, que sabia muito sobre hélio líquido e me explicou o que era condensação de Bose-Einstein, sobre a qual eu nunca tinha ouvido falar. Por fim percebemos que aquele era um mundo novo a baixas temperaturas e talvez os experimentos funcionassem. No início dos anos 1980, tivemos sucesso inicialmente, mas descobrimos que em altas densidades o hidrogênio atômico se transformava em hidrogênio molecular [formando pares] e desaparecia. Finalmente, em 1998, Greytak e eu conseguimos fazer o condensado com hidrogênio, embora hoje saibamos que esse átomo não é o melhor para fazer isso. A criação desses gases quânticos com a técnica do resfriamento feita atualmente por laser abriu um novo mundo para a física.
Além de pesquisa, o senhor sempre teve grande interesse em dar aulas.
Ensino e pesquisa caminham juntos. Há uma vantagem psicológica. Porque, às vezes, os experimentos dão errado e ficamos muito aborrecidos. Sempre há um consolo ao pensar: “Rá, mas eu ainda sou um professor!”. E, é claro, às vezes, uma aula dá errado, nos sentimos deprimidos, mas podemos dizer: “Mas eu faço pesquisa!”. Do ponto de vista do equilíbrio psicológico faz bem ter esses dois aspectos. E, quando explicamos algo para os estudantes, estamos explicando para nós também. Ensinar deve ser um processo criativo, para encontrar novas maneiras de entender as coisas, o que também é parte do trabalho de pesquisa científica.
O senhor ainda trabalha em laboratório?
Não, mas ainda tenho meu escritório no MIT. Vou lá vários dias da semana. Gosto de estar lá. O MIT tem um ambiente maravilhoso, meus amigos estão lá, há palestras excelentes. Mas não faço mais pesquisa. Em um dos meus ensaios para a seção Reference Frame, publicado em 1998 na Physics Today com o título “Nibbling the bullet” [Roendo a bala], escrevi que as pessoas deveriam se aposentar. Você não precisa se aposentar nos Estados Unidos, mas penso que os pesquisadores devem fazer isso, entre outros motivos, para dar espaço aos mais jovens. Escrevi o ensaio com 65 anos, sugerindo que 70 anos seria uma idade apropriada para aposentar. Então percebi que havia feito um compromisso público! Foi o que fiz. O que não notei na hora foi como esses últimos cinco anos passariam tão rápido… Apesar de aposentado, ainda estou ativo no MIT. Se eu desejasse participar de pesquisas e houvesse espaço, eu seria capaz de fazer isso, mas os laboratórios foram ocupados por docentes mais jovens. Foi uma boa vida a que tive.