Em abril, interessados em ciência tiveram a oportunidade de se encontrar com três ganhadores do Prêmio Nobel, o mais prestigioso da ciência. Foram dois dias de programação com o químico escocês David MacMillan, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, premiado em 2021, a neurocientista norueguesa May-Britt Moser, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia (Medicina, 2014), e o físico francês Serge Haroche, do Collège de France, laureado em 2012. A ideia era reunir cientistas, estudantes e empresários para falar sobre como a ciência pode ajudar a tornar o mundo melhor. O Diálogo Prêmio Nobel Rio e São Paulo 2024 foi organizado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) em parceria com a Fundação Nobel, com apoio da FAPESP.
Pesquisa FAPESP conversou com MacMillan entre os dois dias de programação, em uma rara brecha no cronograma de encontros e palestras. Ele lidera um laboratório na área de catálise, que se concentra sobre moléculas capazes de acelerar ou possibilitar reações químicas. Seu prêmio reconheceu a importância da organocatálise assimétrica, área criada por ele nos anos 1990 quando era professor na Universidade da Califórnia em Berkeley, que teve grande impacto na indústria farmacêutica.
De lá para cá, o químico abriu outros caminhos igualmente relevantes. “Se a fotocatálise se fortalecer como a organocatálise, os especialistas da área consideram que ele é candidato a um segundo Nobel”, diz a química Fernanda Finelli, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que há 15 anos realizou estágio de pós-doutorado no laboratório de MacMillan. Ela conta que o químico lidera seu grupo de perto, com uma mistura de seriedade, paixão e graça. “Aprendi com ele a ter em mente qual será o impacto de uma ideia concretizada.”
MacMillan foi o fundador da Iniciativa de Catálise de Princeton, na qual empresas investem e podem desenvolver projetos em conjunto com pesquisadores das mais diversas áreas, colhendo inovação e novos conhecimentos. Atualmente, envolve 15 departamentos, 95 docentes e seis parceiros industriais. Ele espera ver esse tipo de parceria entre academia e empresa ganhar espaço no Brasil, o que daria uma maior dimensão à excelência dos cientistas do país e contribuiria para o fortalecimento do ramo farmacêutico.
Essa interação existe até dentro da família. Sua mulher, a química coreana Jean Kim MacMillan, hoje consultora da indústria farmacêutica, está antenada nas descobertas para o desenvolvimento de fármacos e participa das viagens, contribuindo com sua visão aplicada nas conversas com especialistas. O casal tem três filhas.
Apaixonado por futebol, MacMillan, de 56 anos, aproveitou a passagem pelo Rio para visitar a sede do Botafogo e ver o Fluminense empatar com o Bragantino no Maracanã. São esses raros momentos em que deixa a química de lado.
Como é participar do Diálogo Nobel?
Tem sido muito interessante. Encontrei estudantes, professores e pessoas do meio empresarial e vi o que estão pensando sobre ciência, política e a relação entre os meios acadêmico e industrial. Os brasileiros falam com muita empolgação sobre a ciência que fazem. Sou escocês e somos parecidos – é um estilo cultural diferente, mas também muito autêntico.
Você conta muito com seus estudantes. Como cria um ambiente de excelência e criatividade?
Eu acredito que a vasta maioria das pessoas pode ter sucesso, e isso pode ser amplificado em circunstâncias propícias. Em meu laboratório, ponho estudantes em projetos que podem ter sucesso. Quando eles percebem que dão conta, é como ver uma flor desabrochar na sua frente. Fernanda [Finelli] é um dos melhores exemplos. Quando ela chegou ao meu laboratório, estava intimidada. Mas entrou em um projeto ótimo, publicou em um dos melhores periódicos do mundo. Quando voltou ao Brasil, tinha confiança do que podia atingir. Todos são diferentes, é preciso passar tempo com as pessoas para entender o que funcionará para cada um. Uma vez feito isso, a ciência cuida da ciência.
Sou muito fã de não ser cético, porque, quando a pessoa é, nada funciona. É valioso ultrapassar o que se acha possível ou impossível
O que mudou depois do Prêmio Nobel?
Eu era um químico bem-sucedido, respeitado. Mas era um químico. E aí vem o Nobel. De repente era preciso representar meu país, meu campo, minha universidade, meu grupo. De uma hora para outra, muita gente quer falar comigo – o que é um privilégio, mas é uma situação estranha. Por 12 meses, aproveitei a experiência. Em seguida, fiz uma autoanálise sobre o que me apaixona. Eu amo química. Este ano tem sido provavelmente o mais produtivo de meu grupo. Nunca tive mais orgulho do que fazemos, e a química é que me proporciona isso. É o que adoro fazer.
Pode explicar o que é a organocatálise assimétrica?
Se você olhar para as suas mãos, elas parecem idênticas. Mas não são, porque se você pegar a luva da mão esquerda, ela não caberá na direita. São imagens espelhadas. Na química orgânica, as moléculas também existem em formas espelhadas. Mas todas as moléculas do organismo – o DNA, as proteínas, as enzimas – são feitas da mesma forma, e não a espelhada. Não se sabe por quê. Por isso, em fármacos, uma forma pode ser um medicamento e a espelhada pode ser tóxica, ter efeitos colaterais. Se eu tentar distingui-las no laboratório, levará 40 minutos, usando equipamento caro. Mas se eu der para uma criança cheirar, ela saberá que são diferentes, porque o corpo reconhece as moléculas. Para fazer remédios, é preciso produzir a forma correta, mas é muito difícil. O que fizemos foi inventar a maneira. Agora isso é usado para fazer medicamentos, perfumes, xampus, polímeros e várias coisas diferentes, usando moléculas orgânicas para fazer a catálise, em vez de métodos não sustentáveis.
Quando inaugurou e batizou a área, você não sabia como fazer esses catalisadores. Por que era tão difícil?
Na época, as únicas maneiras conhecidas no mundo eram com uso de metais, que podem ser tóxicos, ou a biocatálise, que emprega as enzimas, que são os catalisadores da vida. Não havia princípios gerais para o uso de moléculas orgânicas. Eu queria fazer isso, mas não sabia como. Uma das coisas em que acredito: é melhor ter uma ótima pergunta do que uma ótima solução. Com isso a pessoa fica determinada, talvez até obsessiva. Se estiver rodeada de estudantes excelentes, eles resolverão o problema. Nesse caso, funcionou bem depressa. Até hoje, me lembro do momento em que descobri que tinha funcionado, foi uma experiência incrível. Eu estava em Berkeley, me lembro de pensar que conseguiria ser efetivado. Quando a gente é professor assistente, manter o emprego é a grande preocupação.
Você imaginou que talvez não fosse possível?
Sim. Recentemente publicamos na Science um artigo do qual estou muito orgulhoso. Trabalhamos por 17 anos no projeto. Provavelmente por 16 deles eu pensei que não resolveria durante minha carreira. E conseguimos.
O que é?
Algumas moléculas são muito comuns na natureza. O grupo funcional principal são os álcoois, que têm sempre um oxigênio e um hidrogênio na ponta. Tipicamente, é possível ligar o oxigênio a outras coisas, mas não é possível remover os oxigênios para fazer ligações entre carbonos. Queríamos descobrir como pegar qualquer par de moléculas de álcool, descartar os oxigênios e conectá-las. No início parecia loucura, mas agora descobrimos como fazer. Eu acho fantástico, mas não sabia se o mundo se importaria. As pessoas realmente se empolgaram, porque é uma nova forma de construir moléculas. As empresas farmacêuticas já estão usando.
Cada vez que não se faz uma reação química, ela tem 0% chance de funcionar. Mas se a chance for de 2%, em 50 vezes talvez uma dê certo
Para que elas usam?
Na descoberta de fármacos, é preciso fazer moléculas tridimensionais e testá-las. Em geral, é preciso produzir 8 mil moléculas para encontrar uma que chegue à clínica para testes em seres humanos. Em muitos casos, o pesquisador na empresa farmacêutica nem se dá ao trabalho de tentar, seria o equivalente a comprar um bilhete de loteria. Mas, se for possível usar os álcoois, que são tridimensionais, a pessoa consegue construir moléculas. Em vez de precisar de um mês, basta uma reação. Isso acelera a forma em que se pode ter acesso a moléculas para teste. Para nós, é imensamente satisfatório.
Quando um problema leva 17 anos para ser resolvido, como os estudantes conseguem se graduar no caminho?
Não é possível trabalhar nisso o tempo todo. Se um estudante tenta e não consegue, passo para outro projeto. É quase preciso esperar que toda aquela turma de estudantes termine, porque senão eles dirão à próxima pessoa: “Não trabalhe nesse projeto, não funciona”. É preciso esperar que a memória se dissipe e, quando vem a próxima turma, pôr outra pessoa no projeto. Nesse caso, um doutorando de primeiro ano resolveu o problema. Na química, ser inexperiente ajuda muito, porque a pessoa faz coisas que outras, com mais conhecimento, não fariam. Mas a química é muito mais complexa do que respostas “sim/não”. Sou muito fã de não ser cético, porque quando a pessoa é, nada funciona. Cada vez que não se faz uma reação química, ela tem 0% de chance de funcionar. Mas mesmo que a chance seja de 2%, se a pessoa tentar 50 vezes, talvez dê certo. É valioso ultrapassar o que se acha possível ou impossível.
Você trabalha muito próximo à indústria farmacêutica, não?
Sim. Sou muito influenciado pela maneira como trabalham. As empresas não me pedem soluções, mas, como observador neutro, penso como posso inventar formas de mudar a maneira como trabalham. Felizmente, temos feito coisas úteis, que foram adotadas. Um estudante pode literalmente inventar uma reação na segunda-feira e ela já ser usada na sexta-feira da mesma semana na indústria farmacêutica. Quando um estudante vê isso acontecer, se sente muito fortalecido. É uma das melhores maneiras de motivar as pessoas com a ciência que fazem.
Como vê a dicotomia entre ciência básica e aplicada?
A questão é: você é mais aplicado, ou mais básico? Precisamos de todo o espectro, senão perderemos oportunidades enormes. Em artigos científicos de 100 anos atrás, tinha gente fazendo organocatálise. Mas era muito básico e eles não tinham ideia de que seria útil no futuro.
Outra porta que você abriu foi a fotocatálise, certo?
Penso na organocatálise como meu primeiro bebê, e na fotocatálise como meu segundo. E já cresceu mais, o que é notável. Na ciência, é preciso mergulhar para enxergar todas as direções inesperadas que se pode tomar. Depois é preciso confiar na intuição. Publicamos artigos sobre catalisadores fotorredutivos por três anos, com resultados pouco empolgantes. Precisei então decidir se continuava ou mudava para outra área, mas achei que havia algo ali, e continuamos. Dois anos mais tarde, explodiu. Agora centenas de grupos de pesquisa trabalham com isso, e todas as empresas farmacêuticas, agroquímicas e de perfumes usam, no mundo todo.
Como funciona?
Posso iluminar minha mão com luz azul o dia todo, que nada acontece. Mas se eu lanço luz azul – apenas um fóton – nesse catalisador, ele atinge o equivalente a 32 mil graus Celsius [°C]. Ele não pode emitir esse calor, mas precisa fazer algo com a energia. Uma das possibilidades é interagir com alguma molécula muito estável para dar ou receber elétrons. Quando ele faz isso, torna aquela molécula altamente reativa. É possível pegar essas matérias-primas que existem em qualquer lugar do mundo, moléculas sem graça, e fazer com que realizem coisas que antes eram difíceis. Não parecia razoável no início.
E agora vocês encontraram usos biológicos para isso?
Estamos fazendo algo chamado micromapeamento. Uma proteína em uma rota biológica interage com um monte de outras coisas. Em uma célula cancerígena, pode entrar em reações com outros elementos, mas não sabemos quais. Então pegamos esses fotocatalisadores e costuramos, molecularmente, nessas proteínas de forma a continuarem interagindo dentro da célula. Agora, quando lançamos o fóton azul, o catalisador deixa um rastro onde quer que a proteína vá. Uma das coisas que fizemos recentemente: os tratamentos de câncer funcionam por um tempo, depois o corpo humano deixa de responder. A questão é saber por quê. Podemos estudar com o que a proteína interage quando tudo está funcionando, e o que muda quando a célula se torna resistente. E encontramos moléculas com as quais ela interagiu. Em seguida podemos pegar outra pequena molécula – o medicamento – para tratar essa rota e acionar a medicação outra vez. As células resistentes voltam a ser operacionais. In vitro, conseguimos fazer isso lançando fótons azuis nos catalisadores, que não causam danos às células. Em camundongos, usamos luz vermelha, porque ela atravessa os tecidos. O artigo original foi uma colaboração com biólogos da empresa farmacêutica Merck sobre um tratamento de câncer, e desde então seguimos outros caminhos. Mais uma vez, tem a ver com a inexperiência. Fazemos coisas que um biólogo não faria, mas como não sabemos disso, chegamos a descobertas surpreendentes.
É possível democratizar a química?
Quando comecei a fazer organocatálise, as pessoas diziam que era fácil, sendo professor em Berkeley. É verdade, tínhamos recursos e ótimos estudantes. Mas a primeira ideia foi usar uma molécula orgânica em um experimento e custava 5 centavos. Funcionou. Então não se tratava de dinheiro, mas de ter uma ideia boa. Agora vemos, em países com poucos recursos, pessoas que ensinam organocatálise e podem elaborar suas próprias ideias. Isso abre caminho para criatividade e inovação sem a necessidade de grande financiamento. A catálise se tornará cada vez mais barata conforme os tipos de reatividade descobertos. A proteômica, por outro lado, deve ser a coisa mais cara que fazemos, não poderia ser usada em um lugar sem recursos. Se eu tentar democratizar tudo, fico em um regime muito específico. Mas no caminho, se for possível incorporar componentes de democratização, é uma boa ideia. O mundo fará isso de qualquer maneira.
Sua mulher, Jean, também é química. Ela é empolgada pelo trabalho como você?
Ela trabalha melhor que eu: pôs dois medicamentos no mercado, enquanto a maior parte dos químicos medicinais não consegue um. O mais recente, que ela fez para uma empresa pequena de biotecnologia para a qual trabalhava, foi vendido por US$ 2 bilhões, graças à molécula dela. As pessoas perguntam se sou um dos melhores químicos de Princeton. “Não sou nem o melhor químico da minha casa”, respondo. Ela é uma química sensacional, adora viajar e interagir com cientistas. É um sonho realizado para ela e para mim podermos fazer isso nesse ponto de nossas carreiras.
Vocês têm três filhas, conseguem se encontrar com elas?
Conseguimos. A mais nova tem 18 anos e está fazendo trabalho voluntário na África. Ela estava com dificuldades em química no ensino médio e dissemos que ela precisava ir bem, tendo pai e mãe químicos. A convidei para trabalhar em meu laboratório durante o verão. No final, perguntei o que tinha achado, ela respondeu: “Pai, tudo bem com a química, mas o que gostei mesmo foi da fofoca”. Ela percebeu que os laboratórios são feitos de gente e considera se tornar cientista graças a essa experiência humana. A mais velha, aos 26, vai fazer doutorado em ciência biomédica, e a do meio, que tem 24 anos, se formou em sociologia e pensa em se tornar advogada. São muito diferentes, mas formam um ótimo time.