Nas profundezas do aquífero Guarani, o reservatório subterrâneo que abastece as cidades do sudeste e sul do Brasil, a temperatura da água não deve passar de 60 graus Celsius (oC). Mas essa água já esteve bem mais quente, a ponto de alterar a composição das rochas que recobrem o aquífero e, à medida que subia para a superfície, formar esferas de cobre e depósitos de ametista.
Uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) concluiu que a água do aquífero Guarani deve ter chegado a 130oC há cerca de 135 milhões de anos, quando dinossauros carnívoros corriam atrás de dinossauros herbívoros nas provavelmente descampadas planícies do sul e sudeste do Brasil. As análises de rochas indicaram que a água deve ter fervido e permanecido na forma de vapor ao longo de 1 milhão ou 2 milhões de anos, enquanto uma porção de magma líquido saía da pluma Tristão da Cunha, que esquentou toda a região sul e sudeste da América do Sul, e se acomodava em meio à camada de basaltos já cristalizados.
O vapor de água deve ter atravessado os basaltos, liberado átomos de cobre dos minerais e os conduzido até cavidades esféricas e fraturas em que o cobre se acumulou. Do mesmo modo, o vapor de água, ao liberar, transportar e acumular minerais enquanto se afastava do centro da Terra, pode ter favorecido a formação de depósitos de ametista, variedade de quartzo de cor violeta por causa de impurezas como manganês ou ferro, no sul do país.
Com essa hipótese, conceitos mais antigos sobre a formação desses minerais vão por água abaixo. “Os depósitos de cobre e de ametista dessa região, a Província Vulcânica Paraná, devem ter-se formado no máximo a 150oC, como resultado da interação da água e vapor com os basaltos e não a 1.200oC, em consequência do esfriamento da lava basáltica, como se pensava”, afirma o geólogo Léo Afraneo Hartmann, professor da UFRGS e coordenador da equipe que há cinco anos examina as variações na composição das rochas que recobrem o aquífero. Essa camada conhecida geologicamente como Grupo Serra Geral chega à superfície no sul de Minas Gerais, depois se espalha em profundidades que atingem 1.800 metros nos estados de São Paulo e Paraná e sobe para 800 metros abaixo da superfície, no Rio Grande do Sul. “Todos os testes estão confirmando essa nova hipótese.”
Durante dois anos, ao longo do doutorado orientado por Hartmann, Víter Magalhães Pinto coletou amostras de cobre de até três metros de profundidade em 85 locais do distrito de Vista Alegre, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seu propósito era entender por que o cobre, ali, em vez de jazidas como em outras regiões do Brasil, forma esferas de baixo grau de impurezas cujas dimensões variam de meio punho adulto fechado a até 200 quilogramas, pesando de 500 gramas a 200 quilogramas. Os lavradores as encontram ao revolverem a terra e, mesmo que não formem um volume suficiente para serem exploradas comercialmente, podem ser derretidas e moldadas com relativa facilidade na forma de panelas. Os nativos da região sul utilizavam esse cobre para fazer pontas de lanças e flechas.
Na UFRGS e na Austrália, onde fez parte do doutorado, Víter analisou a sucessão de minerais acumulados nessas cavidades e frestas. “O cobre foi a última fase de deposição de minerais nas cavidades das rochas”, concluiu Víter, contratado em janeiro como professor da Universidade Federal de Roraima. Portanto, ele pensou, o cobre deveria ser mais recente que os outros minerais e teria sido retirado dos minerais piroxênio e magnetita, que compõem os basaltos, pelo vapor de água.
Detalhados em um artigo em fase de publicação na revista International Geology Review, esses achados convergiram com a pesquisa de doutorado de Lauren Duarte, também orientada por Hartmann. Lauren examinou as ametistas do município gaúcho de Ametista do Sul e de Artigas, no Uruguai, dentro de geodos alongados com até quatro metros de altura. Ela e Hartmann concluíram que essas pedras preciosas deviam ter se formado como resultado da ação do vapor de água sobre a camada de basalto, como descrito em um artigo publicado em 2009 na revista Journal of Volcanology and Geothermal Research.
“Dois físicos teóricos, os professores Marcos Vanconcelos e Joacir Medeiros, aqui da UFRGS, nos ajudaram muito com as modelagens matemáticas da temperatura e da pressão da água que explicavam o que víamos em campo”, relatou Lauren, contratada no ano passado como professora da UFRGS. Desde 2008 ela integra a equipe de um laboratório que desenvolve tecnologias que levem ao melhor aproveitamento econômico de resíduos minerais e de gemas como ágata e ametista.
Água de ouro
“Na Serra Geral ainda hoje a água quente, embora não tão quente como antes, continua atravessando as rochas que recobrem o aquífero”, diz Hartmann. As águas chegam mornas na estância termal de Iraí, norte do Rio Grande do Sul, e em algumas cidades paulistas traz sílica dissolvida. Durante duas décadas, Hartmann, com sua equipe, examinou como a água, combinada com enxofre e cloro a temperaturas superiores a 150oC, facilitou a formação de depósitos de ouro na Amazônia, no Uruguai e nos Andes.
Apoiado por financiamentos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), Hartmann continua indo a campo com sua equipe. Ele planeja em agosto ir para Quaraí, oeste do Rio do Grande do Sul, com pesquisadores, estudantes de pós-graduação e membros da Sociedade Brasileira de Geologia e do Serviço Geológico do Brasil. A seu ver, pode haver tanta ametista no pampa quanto na serra gaúcha, em Ametista do Sul.
“O distrito gemológico Los Catalanes, no Uruguai, do outro lado da fronteira, tem megajazidas de ametista e do lado de cá ainda não encontraram jazidas, mas deve ter”, diz ele, com base em dois artigos em fase de publicação – um na Geological Magazine e outro no International Geology Review. Hartmann acredita também que o cobre pode ter formado jazidas e não apenas depósitos pequenos e esparsos, ao longo da Serra Geral. “Na China já encontraram e estão explorando jazidas de cobre de origem semelhante”, diz. “Os indícios que vimos até agora no sul do Brasil são sinais de que pode haver jazida, mas só procurando sistematicamente para saber.”
Artigo científico
DUARTE, L.C. et al. Epigenetic formation of amethyst-bearing geodes from Los Catalanes gemological district, Artigas, Uruguay, southern Paraná Magmatic Province. Journal of Volcanology and Geothermal Research. v. 184, p. 427-36, 2009.