Os salgadinhos industrializados sempre exerceram uma irresistível atração sobre as crianças, apesar do baixo valor nutritivo. Imagine, porém, se esse vilão pudesse ser rico em vitamina A, isento de gorduras saturadas e com alto teor de ferro – elemento essencial para combater a anemia, doença presente em muitas crianças em idade escolar. O que parece ser o sonho de mães, na verdade, não está longe de ser alcançado. A fim de aliar o gosto infantil por alimentos de conteúdo nutricional duvidoso à necessidade de uma alimentação equilibrada, principalmente para as classes mais pobres, pesquisadores do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) desenvolveram um tipo de salgadinho que utiliza em sua composição o ferro obtido a partir do pulmão bovino. A escolha ocorreu porque esse produto normalmente é descartado por não possuir apelo culinário. Ele também foi eleito porque a quantidade de ferro que possui é três vezes superior à encontrada no fígado do animal.
Com esse conhecimento, os pesquisadores desenvolveram um produto com padrão aceitável de textura, aroma e sabor e promoveram avaliação sensorial com crianças e adultos, que indicou a necessidade da presença de outros elementos na composição do produto, como milho, grão-de-bico e aromas naturais, garantindo ao salgadinho os mesmos atrativos dos snacks disponíveis no mercado. Para o professor José Alfredo Gomes Arêas, chefe do Departamento de Nutrição da FSP e coordenador do projeto de pesquisa, os resultados alcançados foram satisfatórios, porque o ferro obtido do pulmão bovino mostrou-se altamente eficaz na reversão de quadros de anemia. “Após texturização, esse mineral apresenta alto valor biológico com 140% de absorção em relação ao sulfato ferroso, ou seja, além da grande quantidade, o ferro encontrado revelou-se de alta qualidade alimentar, bastante apropriado para combater a anemia, deficiência que inibe o crescimento e o desenvolvimento neurológico por diminuir os níveis de oxigenação sanguínea”, explica.
Composição equilibrada
Os vegetais foram essenciais para o desenvolvimento do produto. “Adicionamos o grão-de-bico à formulação do salgadinho para ele ser mais bem aceito, sem deixar de lado os aspectos nutricionais”, explica Arêas. Transformado em farinha, o grão-de-bico apresenta apenas 2% de gordura e cerca de 20% de proteína. Após a adição da farinha do pulmão bovino e texturização do produto via extrusão, o produto final apresentou uma composição equilibrada de proteínas (20%), lipídios (15%) e carboidratos (60%), ao contrário dos salgadinhos convencionais, com 20% a 25% de gordura saturada e apenas 4% de proteína, de má qualidade biológica.
Outro ingrediente pesquisado para a composição de salgadinhos é o amaranto, cujas sementes são usadas como cereal. De origem andina, a planta possui propriedades nutricionais e fisiológicas capazes de reduzir os níveis de colesterol e, consequentemente, os riscos de doenças cardiovasculares, conforme apontam as pesquisas desenvolvidas pela equipe. A Embrapa Cerrados, de Planaltina (DF), tem feito o trabalho de seleção e adaptação de variedades de amaranto. De nada adianta ter alimentos mais nutritivos se os salgadinhos não forem atrativos para o consumo. “Para a aromatização, utilizamos cerca de 10% de óleo de canola ou girassol, em vez dos 23% de gordura vegetal hidrogenada utilizada nos produtos convencionais”, afirma o pesquisador. O equipamento utilizado para a fabricação dos salgadinhos é do mesmo tipo daqueles empregados na indústria. Em um tubo equipado com uma rosca, são introduzidos os ingredientes. Depois de comprimidos, a massa que se forma é empurrada para pequenos orifícios que regulam a pressão interna do equipamento, num processo que recebe o nome de extrusão. Após a liberação pelo orifício, a água contida na massa evapora, provocando expansão do produto, que ganha a forma definitiva.
O projeto, que envolveu vários pesquisadores, teve produção final de 300 quilos de salgadinhos, aromatizados e com sabor similar aos disponíveis no mercado, mas com características próprias na composição: 14,85% de lipídios, 61,33% de carboidratos, 18,69% de proteínas, 7,41 miligramas de ferro em cada 100 gramas de produto, além de vitamina A e isento de gorduras saturadas, que quando consumidas elevam o colesterol danoso ao organismo. O salgadinho passou por avaliação nutricional feita em crianças de 2 a 6 anos, em duas creches públicas municipais de Teresina (PI), onde foram constatados altos índices de anemia moderada, causada pela deficiência alimentar em ferro. O produto foi servido em uma das creches a um grupo de 130 crianças que apresentavam anemia, substituindo os biscoitos tradicionais em um dos lanches, de modo a garantir a mesma quantidade de calorias. Com 30 gramas de salgadinho ao dia, três vezes por semana, durante dois meses, foi feito um aporte de ferro entre 30% e 40% das necessidades das crianças. No mesmo período, outra creche, com as mesmas características, também foi monitorada, mas sem intervenção na dieta.
Ao final do período de intervenção, a incidência de anemia no grupo que recebeu os salgadinhos, antes em 61,5%, caiu para 11% nas crianças acima de 6 anos, enquanto nas crianças abaixo dessa idade o índice foi zerado. No grupo que não passou por intervenção alimentar, a prevalência de anemia, de 62%, manteve-se inalterada. “Suprindo 30% a 40% das necessidades diárias de ferro, foi possível acabar com a anemia”, conclui Arêas. Ele já apresentou os resultados da pesquisa a algumas empresas do setor alimentício com o objetivo de transferir a tecnologia de produção, mas ainda não tem respostas positivas quanto à produção em escala industrial.
O Projeto
Nutrição e Saúde: Uma Abordagem Integrada para a Avaliação Nutricional, Desenvolvimento de Alimentos para Fins Especiaise Intervenção Nutricional
Modalidade
Projeto Temático
Coordenador
José Alfredo Gomes Arêas – Faculdade de Saúde Pública da USP
Investimento
R$ 270.203,26 e US$ 125.983,00