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Comunicação

Decifra-me ou devoro-te

O que se esconde atrás das capas de revistas e das primeiras páginas dos jornais

No princípio era o verbo. Mas ele, sozinho, não vendia muita revista e jornal, em especial num mundo onde a luz se fez e encheu-se de imagens fotográficas. “O sol se reparte em crimes/ espaçonaves, guerrilhas/ em caras de presidentes/ bomba e Brigitte Bardot/ O sol nas bancas de revistas/ me enche de alegria e de preguiça/ Quem lê tanta notícia?” Se Caetano Veloso, em 1967, já se perdia no mar anárquico de manchetes oferecido aos passantes, imagine hoje, com televisão, internet e outros meios, como é difícil atrair um leitor para que ele pare, olhe e compre um dado jornal ou revista, tudo a partir de um mero pedaço de papel colorido: a capa ou a primeira página.

“A capa é a janela que conduz o leitor a um mundo ilustrado, que ele percorre todos os dias: a realidade enquanto montagem”, diz o historiador Boris Kossoy, professor da USP. “O tema central da publicação apresentado apenas de forma séria não basta, pois o leitor tem uma expectativa de emoção e a revista promete isso. Nada de tédio, o que importa é o choque. A realidade deve ser estetizada para comunicar, o simples documento do fato da semana deve ser embalado com cores vivas e a capa deve ‘gritar’ para se destacar das concorrentes.” Para o estudioso em semiótica Nilton Hernandes, que pesquisou a revista Veja, em seu doutorado recentemente concluído na USP, a capa nega o caos do cotidiano humano ao eleger o grande “fato” para o qual todos os outros devem se subordinar, hierarquizando o resto dos acontecimentos. “Isso é parte de um ritual aguardado pelo leitor”, explica. Esse é fato razoavelmente recente.

“Quando os jornais surgiram no Brasil, no século 19, não havia diferença entre a primeira página e o resto do jornal. Só quando a imprensa foi se industrializando é que foi surgindo essa distinção, cuja origem também pode ser explicada pela ligação forte, numa sociedade como a nossa, de pouca tradição letrada, entre palavra e imagem”, diz o historiador Marco Morel, autor de Palavra, imagem e poder, da editora DPA. “As primeiras páginas ou capas são uma atualização dos murais, pasquins, cartazes, sem falar dos rumores de boca a orelha.” Mas se o rumor de boca para a orelha, no caso dos jornais, é imediato, no das revistas ele demora mais a chegar. O tempo divide a primeira página, do jornal, a capa, da revista, e determina como eles devem se aproximar do seu público. “A capa é mais ‘vendedora’ que a primeira página, pois ela tem basicamente uma matéria que destaca. O jornal tem compromissos com os fatos dominantes da véspera”, lembra o jornalista Luiz Weiss. O jornal dura no dia; a revista fica atual por sete dias, dando um tempo maior para as pessoas se sentirem informadas. Cada qual, então, assume a sua aproximação do “comprador de notícias”. Assim, a primeira página funcionaria, nota o também jornalista Matinas Suzuki Jr., como uma “amostra grátis, uma história sortida e dispersa, disponível a todos que podem vê-la presa às bancas”. “Ela é a folha mais impessoal do jornal e a que procura o público mais indiferenciado: nela todos devem se reconhecer”, observa. É o polêmico ideal do “espelho do mundo”.

“Nos jornais, a luta pela capa é tarefa cotidiana. Inúmeras fotografias são vistas até que uma seja eleita. Trabalha-se com riscos calculados, controlados pela experiência dos editores, e, apesar da pressão do fechamento, o equilíbrio da página é sempre procurado. A primeira página não tem a necessidade do espetáculo, com que lidam as capas das semanais”, ananlisa Kossoy. “Quando, por exemplo, várias primeiras páginas trazem a mesma foto, com o mesmo assunto, aceitamos isso naturalmente, ao contrário da competição das revistas.” Ao mesmo tempo que isso gera a suposta maior “seriedade” dos jornais, esse “despojamento” continua atrelado a uma necessidade de venda, embora o discurso oficial possa ser mais “ético” e “objetivo”. “O jornalista vai além: ele não só assume o olhar do leitor como atribui a si mesmo a missão moral de orientar a visão do público. Em nome do espectador da notícia, ele disciplina o mundo, hierarquiza os acontecimentos”, acredita Suzuki. Nesse movimento, o leitor, de sujeito, vira espectador.

“Na primeira página, maquiada, além de seduzir o leitor, há a indução do sujeito da notícia: diz-se que o que acontece e quem foi o responsável, operação disfarçada na conjugação em terceira pessoa. Considera-se que o leitor precisa ter seu mundo organizado na capa, ao qual ele assiste. Não é sujeito, mas objeto a ser seduzido, dominado. Note-se que será a primeira página a conseguir isso”, afirma Ana Cristina Silva, autora da tese de doutorado O tempo e as imagens de mídia, da Unesp. “O homem que olha a primeira página estendida na banca tem o seu pensamento onde apenas ele sabe, é silencioso. Esse ser é desqualificado como sujeito e leitor. O mundo foi para ele mastigado, a ele é oferecido um mundo seguro, controlado, com um certo ‘domínio’ sobre o acontecer.”

E quem são esses que lêem tanta notícia? “O problema não é apenas que poucos lêem, mas esses poucos lêem mal. Não basta ler, não basta ler muito, é preciso ler bem”, lembra o jornalista Caio Túlio Costa, do Instituto DNA Brasil. Afinal, numa primeira página há muito o que ver e nem sempre imagem e texto parecem estabelecer um casamento ideal e claro. “Isso é ilusório, pois essa desconexão abre um campo para a metáfora como composição de significados por meio da justaposição da sintaxe visual, imagens e textos”, explica Elizabeth Luft, doutora em semiótica.

“A persuasão, no caso dos jornais, está justamente na ausência de significados ou na falta de crença de que determinada construção metafórica tenha sido ‘arquitetada’. Para não se sentir enganado, o leitor pode optar pela falta de sentido, no entanto ele já está envolvido pelo percurso metafórico. A sensação de que algo é estranho numa primeira página permanece e o poder desse tipo de metáfora é muito mais emotivo”, avisa.

Ainda assim, avalia Túlio Costa, os jornais “estão num mato sem cachorro, sem norte e sem guia”. “As capas são como uma coleção de déjà vu em relação ao que internet, rádios e TVs deram no dia anterior e nenhum jornal, nem no exterior, vem conseguindo superar esse desafio. Um scholar americano acredita que os jornais impressos vão desaparecer em 2043″, conta. Já as revistas vão bem, obrigado.

A ponto mesmo de se verificar, nessa atual crise política, uma inversão de valores consagrados. “No Brasil, quem tem rabo preso deixou há muito de temer as primeiras páginas do dia seguinte. Teme as capas das revistas no fim da semana. O que se vê, cada vez mais, são as manchetes dos grandes jornais serem, por exemplo, a capa da Veja transplantada”, analisa Weiss. Os magazines surgem nos EUA na virada do século 20, quando o país se industrializou e os leitores se transformaram em consumidores. “A dinâmica da revista de grande circulação atual é o leitor visto como consumidor em potencial e o editor torna-se um especialista em grupos de consumidores. Uma vez encontrada uma fórmula de atração, ela tende a se repetir, mês a mês, ano após ano. Afinal, é um mercado com taxa de mortalidade altíssima e mesmo os líderes nunca estão numa posição segura. Para sobreviver, uma revista tem de acompanhar as mudanças de seu público”, observa Maria Celeste Mira, autora de O leitor e a banca de jornais, obra que teve o apoio da FAPESP. É o plugging, como analisado por Adorno e Horkheimer, esse sistema de enredamento do leitor que, enquanto consome, tem seus gostos sondados para que a cada semana se possa agradá-lo ainda mais. Não sem razão, enquanto os jornais minguam, a Veja é a quarta maior revista do globo. “Nessa era do marketing, é imprescindível conhecer o leitor, que obriga todas as revistas a se reformularem constantemente, que leva as editoras a sondar os seus desejos.” Para resistir, é impossível não morder a maçã.

“Uma revista como a Veja tem de apagar da memória do leitor a sua maior limitação: o grande intervalo de tempo entre a coleta de dados, a edição e a distribuição nas bancas. O lapso temporal gera uma série de inconvenientes, em especial após a internet etc. O principal objetivo de uma capa de revista, não só de Veja, está ligado principalmente à busca do efeito de atualidade para concorrer com as mídias mais rápidas”, analisa Hernandes. Segundo o pesquisador, a manchete é o resultado dessa busca, que deve resultar num produto que traga uma sensação de presente alargada, um “agora” que, paradoxalmente, deve manter-se vibrante enquanto a revista tiver que ser consumida.

A antecipação, o “furo”, é um caminho. Mas, na maioria dos casos, a interpretação funciona como elemento de atualização que, unida ao fato gerador, cria a sensação de novidade. “Podemos afirmar que, para manter o efeito de atualidade de determinadas notícias, em função do lapso entre coleta e divulgação, revistas como Veja devem obrigatoriamente produzir um grande número de textos interpretativos ou opinativos.”

O veículo revista nasceu sob a égide do tempo contado: homens, e principalmente mulheres, precisariam o máximo de informação no mínimo tempo possível, como um fast food editorial. O modelo de Veja foi a revista Time americana, cujos princípios eram a organização das notícias em setores e “mostrar” para o leitor o que elas significavam, sem nenhum ideal de neutralidade ideológica ou imparcialidade. “A partir de Veja será criada uma nova série de departamentos, como os de pesquisa de mercado, marketing e assinaturas, e foram essas mudanças que livraram a revista do fracasso inicial”, lembra Maria Celeste, cuja proposta era “estampar na capa o assunto que marca a semana”.

O mesmo se deu com IstoÉ e, mais recentemente, com Época. “Todas vêm optando por falar sobre os interesses imediatos dos 10% da população que têm a capacidade financeira para sustentar a sobrevivência dessas publicações diante da concorrência dos novos meios de comunicação”, explica Maria Alice Carnevalli, autora da tese de doutorado “Indispensável é o leitor”, defendida na ECA-USP. Analisando e comparando as edições das três semanais em 2000, a pesquisadora descobriu que 50% das manchetes de capa, ou seja, metade das capas analisadas, trouxeram fait divers (dietas, sexo, saúde, como manter seu emprego etc.), enquanto 27% trataram de assuntos factuais desvinculados da periodicidade ou saíram com furos de reportagem. Os assuntos ligados diretamente à semana ficaram em último lugar, com apenas 23% das capas, sendo o caso mais acentuado o de Veja, que dedicou aos acontecimentos da semana apenas seis capas durante um ano, ou 12% do total.

Analistas da Meio e Mensagem descobriram que quem pode comprar revista é consumidor em potencial e, assim, ela se torna a mídia privilegiada do mercado publicitário. Curiosamente, as revistas são, ao mesmo tempo, consideradas como “meios de maior credibilidade” e “transmissoras de idéias”. “As capas trazem um potencial de leitura que sonda qual é o norte do público que lhe dá legitimidade, em que se pauta, qual é o seu imaginário”, afirma Ana Cristina. “Pesquisas mostram que política não vende, a não ser no caso de crises graves, como o caso do presidente Collor e agora. Elio Gaspari costuma dizer que, para baixar a vendagem de uma revista, basta colocar temas ligados ao Congresso”, conta Maria Alice. Vários fatores tiraram das revistas o interesse em aprofundar na economia e na política.

O fim do regime militar, por exemplo, foi um deles, já que, observa a pesquisadora, havia desaparecido a posição ideológica de contestação à ditadura e os efeitos da inflação galopante sobre a economia. Da mesma forma, as privatizações fizeram com que o leitor perdesse o interesse pelo Estado, como ocorria quando oito a cada dez empregos estavam ligados a uma esfera governamental. “Hoje a obrigação da revista semanal é dizer ao leitor que ele pode ser feliz, viver menos angustiado, cuidar melhor da saúde e conseguir se dar bem numa empresa privada.” Só assim pode-se entender por que as três maiores semanais do país deram como capa o novo livro do mago Paulo Coelho. Mas nem tudo é fait divers.

Como observa a professora Celeste Mira, a atuação política inicial de Veja fez dela uma revista de amplitude nacional que conquistou o mercado e hoje sua força ideológica reside no seu poder mercadológico. “As capas das revistas têm, de certa forma, o poder da agenda setting, ou seja, de colocar temas em pauta, criar opiniões e mudar o país. Se nem sempre consegue impor o que pensar, seguramente impõe sobre o que pensar. Podem estar brincando com fogo”, avalia o historiador Fernando Lattman-Weltman, da FGV.

“Uma revista não é um partido político e precisa avaliar o impacto que sua manchete pode ter sobre a sociedade e a democracia brasileira ao defender certas teses, como a capa de Veja sobre o desarmamento, ou divulgar informações sem ter provas, como no caso das capas sobre a ligação entre PT e as Farcs ou o ouro de Cuba.” O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), vai ainda mais longe: “A mídia é capaz de construir não só a agenda pública de discussão, mas a agenda do governo. Enquanto os partidos competem pelo poder, a grande imprensa disputa o monopólio de dizer o que fazer com ele. Nas democracias estáveis, a capacidade de uma capa de revista ou jornal de afetar a estabilidade institucional é reduzidíssima”.

Tudo se amplifica, observa Hernandes, pela tendência das revistas, em suas manchetes, de se aproximar do leitor, do “você”. “É algo como ‘nós somos o seu veículo, nós vamos falar pela maioria silenciosa que não aparece nos discursos intelectuais'”, completa Weltman, que lembra como os veículos aprenderam, com os tempos de censura, a passar, com precisão, mensagens subliminares ao seu leitor, só que agora num outro viés ideológico e de mercado. “O público de Veja se sente inteligente por ler a revista, por fazer parte do clube, ser diferente dos outros sem ter que se assumir de uma forma ideológica. O jornalismo dá ao leitor a confirmação de um status, embora, em verdade, a revista, em boa parte do tempo, esteja apenas falando o que ele, o leitor, quer ouvir.”

Num paradoxo interessante, os porta-vozes da objetividade, que têm suas vendas calcadas nessa isenção, são justamente os mais parciais. Weltman lembra que a Folha criou o espírito do “rabo preso com o leitor” para vender mais e ganhar fidelidade do público, um jornal com “eleitorado”. “Veja está abusando dessa prática e age com seu grupo com a lógica de um partido: assim como há quem use a estrelinha do PT na lapela, você tem quem diga que é leitor da revista.”

Há mesmo quem analise as capas por meio de suas cores e cortes de fotos, como Luciano Guimarães, autor de As cores na mídia e professor da Unesp. “No jornalismo brasileiro, durante a censura militar, a mensagem de entrelinhas foi consagrada como forma de escapar ao controle. Hoje não haveria mais necessidade disso. No entanto, o que se pode perceber é que esses recursos são atualmente utilizados para alterar de forma obscura o imaginário daqueles que consomem mídia, principalmente em períodos que antecedem o processo eleitoral”, avisa. Assim, observa o pesquisador, o uso do azul e do amarelo nas capas cujos temas eram positivos ou ligados ao governo anterior, cujo partido usa as mesmas paletas.

Em contraposição, o vermelho aparece associado, salvo exceções, como cor da negatividade, da esquerda e, quando associado ao preto, presente nas capas que trataram de corrupção, golpes etc. Outro fator importante é sempre “personalizar” as crises com fotos de pessoas específicas: inflação associada ao ministro da Fazenda, corrupção a um dado dirigente etc. De preferência, para acentuar o aspecto negativo, o retrato da “crise personificada” aparece em close.

Se essa tradição promete ficar, a preferência pelo fait divers está em quarentena. Uma pesquisa recém-divulgada,  The State of News Media 2005, um raio X da mídia americana, revela que a estratégia de buscar assuntos genéricos e leves não está mais dando resultado e, por lá, as revistas estão perdendo leitores, que, além de terem um leque de revistas especializadas para poder escolher, agora desejam conteúdos mais densos. “Aqui isso ainda não está ocorrendo. Embora não se possa ter certeza, já que a atual crise política reúne o mercado e a ideologia. As revistas podem manipular as informações político-partidária-econômicas e ao mesmo tempo chamar a atenção em suas capas daqueles que não estão nem aí para a política, já que a crise de agora é um espetáculo midiático puro”, observa o cientista político Eduardo Ferreira Souza, autor de Do silêncio à satanização, da editora Annablume.

Para Caio Túlio Costa, vai ser complicado fugir das capas assertivas, opinativas. “Depois de deitar e rolar com o conceito de objetividade, a indústria de comunicação viu esse ideal se desgastar e passou a tentar ser, de verdade, objetiva. Mas com esse mar de blogs, sites etc., uma a rede rasteira, opinativa, parcial, houve um refluxo, o que reforçou novamente a necessidade de a indústria ser assertiva, ainda que imparcial. E isso é impossível.” Kossoy é ainda mais pessimista: “Capas sóbrias não sobrevivem numa cultura que busca emoção e reality shows“. É o dilema da esfinge sem compaixão: “Eu te decifro e te devoro”.

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