Um experimento recente forneceu um forte indício de que pode haver um terceiro caminho capaz de gerar a supercondutividade, a capacidade que alguns materiais apresentam de conduzir eletricidade sem nenhuma perda de energia. Segundo artigo publicado em novembro de 2024 no periódico Nature Physics, o efeito desse novo mecanismo – até agora previsto apenas teoricamente e diferente dos dois processos comprovadamente associados à supercondutividade – foi medido em um composto à base de ferro. Quando resfriado a uma temperatura próxima do zero absoluto, de 4 Kelvin (K), equivalente a 269,15 graus Celsius (ºC) negativos, o material deixa a corrente elétrica passar com zero resistência. O estudo é assinado por quatro físicos brasileiros e nove estrangeiros.
O trabalho mostra que a supercondutividade em cristais de seleneto de ferro dopados (misturados) com átomos de enxofre (FeSe1−xSx) pode surgir a partir do desordenamento de um estado específico da matéria, conhecido como fase nemática. Se as moléculas de um material se organizam em uma determinada direção (vertical ou horizontal) e formam uma espécie de trama, semelhante às linhas de um tecido, os físicos dizem que ele está em sua fase nemática. Em grego, nema quer dizer fio. A manipulação da fase nemática nos cristais líquidos, tipo de material em que esse conceito foi originalmente formulado, é o que permite a fabricação das telas atuais de computadores e aparelhos de televisão LCD.
Numa configuração com suas moléculas totalmente ordenadas, portanto na fase nemática, o seleneto de ferro conduz corrente elétrica preferencialmente na direção de seu alinhamento. Quando a esse composto são acrescidos átomos de enxofre no lugar de alguns átomos de selênio, suas moléculas deixam de obedecer ao alinhamento preferencial original (vertical, por exemplo) e passam a se mover de forma desalinhada, com uma leve angulação. As oscilações na direção preferencial da corrente elétrica do material dopado geram as tais flutuações nemáticas.
“Com um microscópio de varredura por tunelamento, registramos que as flutuações são a provável causa da atração entre os pares de Cooper nesse material”, explica o físico brasileiro Eduardo Higino da Silva Neto, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, coordenador do estudo. “As flutuações nemáticas seriam o terceiro tipo de interação que faria os elétrons grudarem e formarem os pares”, diz o físico teórico Vanuildo Silva de Carvalho, da Universidade Federal de Goiás (UFG), outro autor do trabalho.
Quando grupos de dois elétrons, que deveriam se repelir por terem a mesma carga elétrica negativa, aproximam-se tanto no interior da estrutura atômica de um material a ponto de produzir um tipo incomum de ligação entre ambos, forma-se um par de Cooper. Essa interação precisa ocorrer para que uma corrente elétrica possa fluir em um composto com resistência zero, sem a perda de energia na forma de calor. A formação de pares de Cooper é a assinatura atômica de que há supercondutividade em um material.
Até agora são conhecidos dois mecanismos que comprovadamente levam ao surgimento dessa dupla de elétrons mais aproximados. Na maioria dos compostos supercondutores, sobretudo nos que transmitem correntes sem perda de energia apenas a temperaturas pouco acima do zero absoluto, os pares de Cooper se originam a partir de uma forma de vibração ou excitação coletiva dos átomos denominada fônon. Em supercondutores chamados de não convencionais, que funcionam a temperaturas mais altas, mas ainda assim baixíssimas, a supercondutividade pode surgir em razão da existência de um tipo de magnetismo, o antiferromagnetismo, no spin dos elétrons. O spin é uma propriedade quântica intrínseca dos elétrons e de outras partículas subatômicas que influencia sua interação com campos magnéticos.
Como previa a teoria
Em supercondutores não convencionais, é muito difícil distinguir se a capacidade de transmitir correntes elétricas sem perda de energia se deve ao antiferromagnetismo, um mecanismo conhecido e mais pesquisado, ou às flutuações nemáticas, um efeito menos estudado na física de materiais sólidos. “Em alguns materiais supercondutores, ambos os fenômenos atuam ao mesmo tempo e podem ser confundidos. Em outros, o antiferromagnetismo é a causa dessa propriedade”, esclarece Silva Neto.
Para medir experimentalmente o papel das flutuações nemáticas na indução da supercondutividade, os físicos tiveram de criar um material em que os dois tipos de interação sobre os elétrons da amostra pudessem ser separados. O objetivo foi alcançado por meio da introdução de átomos de enxofre no lugar de alguns átomos de selênio no composto original, o seleneto de ferro. Quanto mais enxofre era adicionado ao material, menores eram as flutuações antiferromagnéticas e maiores as nemáticas. “Assim, foi possível afastar a possibilidade de que o antiferromagnetismo estivesse envolvido na supercondutividade, restando apenas as flutuações nemáticas como a única explicação convincente para nossos resultados”, conclui o físico Eduardo Miranda, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), outro coautor do artigo. O quarto brasileiro que assinou o trabalho foi Rafael Fernandes, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
“O artigo fornece um argumento muito forte a favor das flutuações nemáticas como uma das ‘colas’ que geram os pares de Cooper”, diz o físico Múcio Continentino, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, que não participou do estudo. O físico Rodrigo Pereira, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), outro não envolvido com o trabalho, vai na mesma linha. “O estudo apresenta uma concordância impressionante entre a previsão teórica de um supercondutor induzido por flutuações nemáticas e os resultados experimentais”, comenta ele.
A reportagem acima foi publicada com o título “A terceira via da supercondutividade” na edição impressa nº 348, de fevereiro de 2025.
Projeto
Materiais quânticos correlacionados (n° 22/15453-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Eduardo Miranda (Unicamp); Investimento R$ 1.772.678,14
Artigo científico
NAG, P. K. et al. Highly anisotropic superconducting gap near the nematic quantum critical point of FeSe1−xSx. Nature Physics. 13 nov. 2024.
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