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itinerários de pesquisa

Duro na queda

Como o médico Sandro Matas aprendeu a conviver com a deficiência física e lutou para tornar a Unifesp mais inclusiva

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPSandro Matas no prédio da antiga Escola Paulista de Medicina, hoje Unifesp, onde trabalha desde os anos 1980Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Meu pai me ensinou a nunca depender de ninguém. Eu caí um milhão de vezes, e sempre levantei sozinho do chão. Não gosto que me ajudem. Meu pai dizia que, no dia em que caísse e não conseguisse levantar sozinho, era porque minha vida estava chegando ao fim.

Tive paralisia infantil aos 6 meses de idade. Meus pais não quiseram me colocar em escolas especiais para pessoas com deficiência nem que eu usasse cadeira de rodas, porque sabiam que eu teria muita dificuldade para fazer tudo que precisaria fazer. Também insistiram com os médicos para que eu andasse com aparelho ortopédico e bengala. Consegui me adaptar bem.

Eu queria fazer computação, depois pensei em engenharia e física nuclear, mas meu pai não deixou. Ele achava que eu tinha que fazer medicina, e acabei me convencendo. Resolvi que iria estudar neurologia, para tentar entender o que tinha acontecido comigo e quem sabe pesquisar alguma coisa que pudesse melhorar a vida de outras pessoas que têm paraplegia.

Entrei em 1979 na Escola Paulista de Medicina [EPM], hoje parte da Universidade Federal de São Paulo [Unifesp]. Naquela época, não se falava em acessibilidade. Mas também nunca reclamei. Onde houvesse um curso que me interessasse, eu ia. Se tinha que subir escada, ia mais devagar, mas subia. Eram quatro lances de escada para chegar à biblioteca. Quando ia até lá, passava seis horas estudando, porque subir e descer era difícil. Os colegas me traziam livros eventualmente.

Sempre tive muitas dúvidas sobre a profissão. Se eu seria aceito pela população como médico. Se as pessoas teriam confiança na minha capacidade de atendê-las. Se conseguiria atuar como cirurgião. Eu não poderia operar com a mão na bengala, por exemplo. Teria que usar uma cadeira de rodas e ficar dependente das enfermeiras. Eu não queria ficar dependente de ninguém. Cheguei a fazer um curso de técnica cirúrgica por dois anos, mas acabei optando pela clínica.

Me aproximei da neurologia na graduação e gostei muito de infectologia também. Nos anos de residência no Hospital São Paulo, comecei a dar plantões colhendo líquor da espinha dorsal dos pacientes. Passei a vida fazendo punções no laboratório, que hoje coordeno. O líquor é uma fonte muito preciosa de informações sobre doenças neurológicas, de infecções a tumores e doenças autoimunes. Eu me apaixonei por isso. Devo ter feito mais de 200 mil punções até hoje.

Meu chefe na época, o neurologista João Baptista dos Reis Filho, me estimulava a estudar e me orientou no mestrado e no doutorado. No primeiro, descobri que muitos pacientes com o vírus da Aids contraíam criptococose, infecção causada por um fungo comum nas fezes dos pombos. O risco era maior por causa da baixa imunidade, mas muitos morriam sem ter o diagnóstico. Com o exame de líquor, era possível detectar a infecção a tempo de combatê-la.

No doutorado, investiguei casos de pacientes paraplégicos que tinham uma inflamação na medula associada a um tipo raro da esquistossomose. Havia poucos relatos na literatura. Descobri que muitos se tornaram tetraplégicos porque a origem do processo inflamatório não havia sido identificada corretamente e a esquistossomose acabava ficando sem tratamento. Minha pesquisa contribuiu para que os neurologistas ficassem mais alertas para essa possibilidade.

Trabalho na EPM desde o fim da residência, em 1988, e continuei depois que ela se tornou uma das unidades na Unifesp, criada em 1994. Hoje, além do laboratório de líquor, coordeno as áreas de neuroinfectologia e hipertensão intracraniana no Hospital São Paulo. Ajudo a treinar os residentes, ensino novos alunos e faço pesquisa nessas áreas.

José Guerra / DCI-UnifespCalouros participam de partida de futebol no trote inclusivo da Unifesp, em 2011José Guerra / DCI-Unifesp

Em 2008, a universidade criou um núcleo de acessibilidade e inclusão e fui chamado para organizá-lo. Na época, por decisão do governo, todas as instituições federais de ensino precisaram garantir certas condições de acessibilidade e inclusão para todos os alunos e havia recursos para fazer as adequações necessárias. Montei uma equipe multidisciplinar, com especialistas em várias deficiências.

Fizemos um mapeamento completo da infraestrutura da universidade. Tinha muita coisa para fazer. Uma vez, quebrei o pé e precisei andar de cadeira de rodas por dois meses. Eu não conseguia entrar nos banheiros do prédio. O único em que conseguia passar pela porta ficava na diretoria do hospital. Nessa época, também caí na calçada ao tentar entrar na universidade. Não havia rampa, somente degraus.

Isso não estava certo. Era preciso mexer nessas coisas para que todos pudessem circular lá dentro. Não só os alunos com deficiência, mas também médicos, pacientes do hospital e seus familiares que tivessem essa condição. Briguei muito. Não havia elevador para um cadeirante ir ao auditório da universidade. Quando fizeram um, era preciso subir dois lances de escada para chegar até ele. A alternativa era dar a volta no quarteirão e entrar no prédio pela garagem para pegar outro elevador. A porta vivia fechada.

O mais interessante é que foram aparecendo outros problemas, nos quais ninguém prestava atenção. Inclusive em relação aos programas acadêmicos. Quem pode fazer determinado curso? Um cego pode fazer medicina? Como um surdo consegue assistir à aula? Um paraplégico pode ser educador físico? São perguntas incômodas, muitas sem resposta. Comecei a exigir que os cursos se adequassem para atender pessoas com deficiência. Alguns colegas diziam que não podiam fazer nada se a universidade não oferecesse condições para trabalhar com esses alunos.

Fizemos trote inclusivo por vários anos. Calouros e veteranos tinham que dar a volta no quarteirão com cadeira de rodas, ou de olhos vendados, para entender que era impossível andar ali com dificuldade de locomoção, ou sem enxergar. Levei os alunos para jogar tênis de mesa com os colegas com deficiência que jogavam comigo no clube. Organizamos partidas de futebol com os cegos, todos os participantes com vendas nos olhos.

O atual sistema de cotas garante vagas em universidades para pessoas com deficiência, mas precisaríamos ter um programa que identificasse mais cedo os alunos que têm desempenho comprometido por causa de alguma deficiência. Se algumas das suas dificuldades pudessem ser sanadas antes, eles teriam condições iguais às dos outros candidatos de entrar na universidade. As cotas são como um remédio que oferece solução imediata para a doença. Seria melhor se fizéssemos um trabalho de profilaxia antes para conhecer as pessoas que têm deficiência e orientá-las de forma correta.

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