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Entrevista

Economista Alexandre Gomide expõe efeitos da reconfiguração de políticas públicas

Livro lançado pelo Ipea mostra onde houve desmonte e quais políticas resistiram no país

Gomide: momento rico para pesquisadores brasileiros estudarem mudanças em políticas públicas

Diego Bresani / Revista Pesquisa FAPESP

Políticas destinadas a públicos e segmentos diversos foram reformuladas no Brasil de 2016 para cá, em resposta a mudanças políticas ou em nome da redução de gastos governamentais. Um livro recém-lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica que alguns setores, como saúde e cultura, resistiram melhor à pressão para enxugar ou reavaliar suas políticas públicas do que outras áreas, como meio ambiente e direitos indígenas, que viveram um processo definido pela literatura acadêmica como policy dismantling (desmonte de políticas). A obra também relaciona o que ocorreu no Brasil com o observado em países como Estados Unidos, Polônia ou Hungria, nos quais a reformulação de políticas públicas foi promovida por lideranças populistas de direita, algumas delas com viés hostil aos sistemas de freios e contrapesos que caracterizam a separação de poderes em uma democracia liberal.

Intitulado Desmonte e reconfiguração de políticas públicas (2016-2022), o livro tem 570 páginas divididas em 18 capítulos e foi escrito por mais de 40 autores, entre técnicos do Ipea e pesquisadores associados ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, sediado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir, o economista Alexandre de Ávila Gomide, pesquisador do Ipea e atualmente diretor de Altos Estudos da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), expõe as principais conclusões da obra, da qual é um dos organizadores.

A propósito do título do livro, o que tivemos no Brasil desde 2016 esteve mais para desmonte ou para reconfiguração de políticas públicas?
Depende do setor. Na área econômica, esteve mais para reconfiguração. Houve mudanças na política do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] que, como mostra um dos capítulos do livro, reduziram bastante os instrumentos orientados ao apoio financeiro a projetos de infraestrutura. Outro exemplo: posso não concordar em passar a responsabilidade dos investimentos em saneamento para o setor privado, mas essa política foi modificada dentro das regras do jogo democrático e da alternância de poder. Se um governo é mais liberal ou mais desenvolvimentista, ele vai reconfigurar políticas de acordo com seu programa. Mas também houve uma série de políticas públicas que foi alvo de desmantelamento.

Políticas antigas, que estão ancoradas em organizações consolidadas e envolvem uma ampla coalizão de beneficiários, são mais difíceis de desmontar

Em que casos isso foi mais agudo?
O livro não mensura que área foi pior do que outra. Mas um exemplo de desmantelamento foram as políticas ambientais. Essa área foi muito atacada por meio da extinção ou enfraquecimento de instrumentos e programas criados para a defesa ambiental e da perda de capacidades administrativas de órgãos federais. O que barrou um pouco o tamanho do desmanche foi a reação de uma parte do setor do agrobusiness que é bastante internacionalizada. Esse segmento percebeu que, se o ataque fosse aprofundado, teria dificuldades de vender seus produtos no exterior. As políticas para os indígenas também sofreram bastante. Tinha gente na Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] interessada em promover evangelização dos indígenas.

O livro situa o que ocorreu no Brasil dentro de uma onda que classifica de “populismo iliberal”, que atingiu países como Estados Unidos, Índia, Polônia e Hungria. O que houve de comum no Brasil com esses casos?
O desmonte de políticas públicas é um tema bem estudado na literatura. Nos anos 1980, o presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan [1911-2004] e a premiê do Reino Unido Margaret Thatcher [1925-2013] foram eleitos defendendo a redução de políticas de bem-estar social, mas fizeram isso dentro do jogo democrático, tanto que não conseguiram desmontar tanto quanto propuseram. Mais recentemente, depois de 2008, vários países viveram crises fiscais e reduziram o alcance de políticas de bem-estar social. Já essa onda de agora tem um perfil diferente. Um ponto comum entre o Brasil e outros países é a adoção de uma estratégia chamada hardball, jogo duro com as instituições. Houve situações que testaram o limite da legalidade, com o governo propondo modificações em políticas que o Supremo Tribunal Federal iria derrubar ou o Congresso iria vetar. Em outros casos, partiu-se para o assédio institucional. Pegue o exemplo da Fundação Palmares. Não há nada na lei dizendo que é preciso colocar como presidente da Fundação Palmares alguém que seja favorável à sua missão, que é lutar contra o racismo. Esse é o pressuposto lógico para a escolha. Mas, como a lei também não proíbe, colocou-se lá uma pessoa hostil a esse propósito. O mesmo aconteceu com o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. Nos Estados Unidos, Donald Trump dizia que o deep state não o deixava governar – deep state é um termo pejorativo para a administração pública. Ele se referia a servidores públicos que foram formados para obedecer ao devido processo legal e resistiam ao hardball. No nosso caso e no de países como Hungria e Polônia, o desmonte de políticas públicas foi feito em um ambiente de estresse institucional e de ameaça de retrocesso democrático.

Houve algo de peculiar na experiência brasileira?
Sim, e também teve a ver com o serviço público. Os servidores públicos são elementos de estabilidade nas democracias. Em tese, são pessoas que detêm um conhecimento e são selecionadas pelo mérito. Eles sabem que existe uma ordem jurídica que têm de obedecer. Aqui, criou-se tensão ao colocar militares para comandar essas pessoas. Militares têm outra cultura, não foram formados para esse tipo de tarefa. Essa foi uma característica marcante da experiência brasileira. Logo que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o governo, ele fez uma viagem aos Estados Unidos e disse uma frase definidora: afirmou que era preciso destruir muita coisa para poder construir de novo. Fazia parte de seu programa a ideia de retroagir, porque ele e seus seguidores atribuem muitas das nossas mazelas à democracia. Outra particularidade brasileira é que aqui houve um casamento dessa postura reacionária com um ideário econômico de cunho neoliberal. É diferente do que ocorreu em vários países, como nos Estados Unidos, onde Trump tinha um discurso bastante nacionalista.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP Sistema Único de Saúde…Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

O que faz uma política pública ser mais ou menos resiliente a desmontes e reconfigurações? Poderia dar exemplos no contexto recente do Brasil?
A literatura mostra que, ao longo do tempo, as políticas públicas ganham apoiadores, que são os seus beneficiários diretos e indiretos. Os atores econômicos e sociais vão aprendendo a jogar o jogo e se organizam para operar aquela política. Em geral, políticas antigas, que estão ancoradas em organizações consolidadas e envolvem uma ampla coalizão de beneficiários, são mais difíceis de desmontar do que políticas novas, vinculadas a um ministério que não tem uma burocracia forte incumbida de operá-las. Vamos pegar o exemplo da Lei Rouanet. Ela existe há muito tempo, todo o setor artístico a conhece, os bancos criaram fundações culturais para utilizá-la, o governo montou uma estrutura para operá-la. Ela foi muito atacada, mas sobreviveu. Muito por conta da reação dos atores que a operam, o ataque teve efeitos mais retóricos do que efetivos, ainda que tenha havido prejuízos. É bem diferente de exemplos como acabar com o programa Bolsa Verde, do Ministério do Meio Ambiente, que concedia benefícios para famílias pobres que ajudassem a preservar o meio ambiente, ou com uma política de igualdade racial ou em favor da igualdade de gênero, que têm bases bem mais frágeis. Um outro fator importante é o nível de institucionalidade da política. Os governos passados tentaram reduzir e até extinguir o Benefício de Prestação Continuada, o BPC, que concede um salário mínimo para idosos ou pessoas com deficiência que não podem se manter. É uma política que tem um grande custo fiscal. Mas existe desde 1993 e o Congresso resistiu a desmontá-la. Já com o Bolsa Família, houve mais espaço de discricionariedade. Manteve-se o benefício porque viram que era eleitoralmente importante, mas houve uma reformulação em sua lógica de operação.

Quem resistiu mais à reconfiguração e ao desmonte de políticas públicas? Você mencionou a burocracia, o Judiciário…
O papel da burocracia foi muito importante. A diplomacia do Itamaraty, por exemplo, tirou o Brasil de muita enrascada. Mas o papel mais decisivo foi do Congresso. Quando a preferência do Executivo não estava alinhada com a do parlamentar mediano, acontecia o que chamamos de pontos de veto. Embora o Congresso fosse conservador, seu ponto mediano estava menos à direita do que o Executivo e isso colocou algumas barreiras. O governo teve de implementar muitas políticas por decreto, como no caso dos armamentos e da política ambiental, e várias foram integral ou parcialmente derrubadas pelo Congresso ou pelo Judiciário. A resistência veio das nossas instituições democrático-liberais, baseadas em pesos e contrapesos. A opinião pública também ajudou quando teve força de mobilização. Mas quem não teve essa capacidade ficou na mão.

Marcos Corrêa / Wikimedia Commons … e Yanomami: capacidade de resistência e poder de mobilização distintosMarcos Corrêa / Wikimedia Commons

Pode dar um exemplo de quem ficou na mão?
Veja a questão dos Yanomami e dos garimpos da Amazônia, que virou terra de ninguém. O poder de mobilização dos indígenas era pequeno. Não tinha ninguém lá e só descobrimos bem mais tarde o que estava acontecendo. É o contrário do que ocorreu no caso das vacinas contra a Covid-19. A sociedade civil se mobilizou e o governo teve de ir atrás de vacinas. O Sistema Único de Saúde, o SUS, teve resiliência no período em boa medida porque a sociedade civil se mobilizou em favor dele durante a pandemia.

Qual é a perspectiva de reconstruir políticas públicas?
Aqui no Brasil vejo dificuldades. O Congresso hoje está medianamente mais conservador do que o Executivo e faltam pontos de interseção entre diferentes correntes. Em uma democracia normal, existem pontos de interseção para se formar consensos. Nos Estados Unidos isso acontece muito. Por mais que se tenha uma política identificada com o Partido Democrata, havia sempre alguns parlamentares do Partido Republicano que a identificavam como de interesse de sua base e se dispunham a apoiá-la. Com isso, formavam-se minicoalizões que iam sustentando a política. Mas, quando você polariza, as interseções diminuem e vira um Fla-Flu. Há 20 anos, quando os principais partidos eram o PT e o PSDB, havia mais áreas de interseção. Agora a situação é bem diferente. O governo vai enfrentar um desafio enorme. A questão não é reconstruir, mas recriar. Muita coisa servia no passado, mas não vai servir mais. A sociedade mudou. Veja a questão da participação social. Todo governo social-democrata acredita em buscar consensos, em chamar a sociedade para conversar, em colocar empresários e trabalhadores em um mesmo conselho e encontrar um denominador comum. Isso não tem mais a mesma eficácia. A sociedade civil se organizou de outra forma. A direita reacionária se reorganizou. O populismo iliberal ajudou a organizar essa parcela da sociedade e tem recursos tecnológicos. Eles dominam bem as redes sociais. É bem mais difícil criar consensos para poder pressionar o Congresso e aprovar uma legislação. A situação está difícil não só no Brasil. Quem acompanha a política dos Estados Unidos vê que a sociedade lá está totalmente radicalizada. E em outros países, como Índia, Turquia e Hungria, os líderes populistas iliberais foram reeleitos.

Nos Estados Unidos, Donald Trump dizia que o deep state não o deixava governar – deep state é um termo pejorativo para a administração pública

O fato de, no Brasil, o governo não ter alcançado a reeleição teve a ver com a reconfiguração de políticas públicas ou é um exagero falar isso?
Diria que teve a ver, sim. Muita gente viu que as políticas públicas pioraram e a pandemia tornou essa visão mais aguda, além, claro, de ter jogado o Brasil em uma crise econômica. Se o governo tivesse sido mais atento a algumas políticas, talvez o desfecho da eleição fosse outro. Geralmente, os estudos internacionais mostram que os políticos que desmantelam políticas tentam não aparecer como desmanteladores, porque é algo impopular. No Brasil, em várias situações, o governo quis aparecer como desmantelador mesmo, para mobilizar sua base.

Outros países estão conseguindo reconstruir políticas?
Vamos estudar isso agora, em um projeto que vai analisar políticas públicas em países como Índia, Estados Unidos, Polônia e Hungria. Os Estados Unidos talvez sejam o melhor lugar para olhar, porque o Trump já se foi há dois anos. Essa pode ser uma agenda de estudos interessante para os pesquisadores do Brasil. É um momento rico em termos acadêmicos, de entender melhor o que foi desmontado e como está sendo recriado. É uma agenda para a qual o Brasil pode contribuir muito.

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