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Astrofísica

Em boa companhia

O telescópio Soar começa a funcionar e põe o país lado a lado com os maiores centros de observação do mundo

SOARAlexandre Soares de Oliveira mudou-se com a mulher e o filho de 3 anos para o Chile há duas semanas. Junto com seu colega Eduardo Cypriano, também casado, mas sem filhos, que embarcou para lá em janeiro, Oliveira vai formar a equipe brasileira de apoio do Soar, um telescópio financiado por instituições brasileiras e norte-americanas que começa a funcionar este mês. Ainda em fase experimental, está instalado no alto de uma montanha dos Andes chilenos, a 2.701 metros de altitude, no começo do deserto do Atacama, e tomou dez anos de projeto e construção. Os dois jovens físicos – Oliveira tem 34 anos e Cypriano, 30 – sabem que estão mergulhando em um projeto histórico, que representa um notável salto de qualidade para a pesquisa astrofísica brasileira.

Em dois ou três meses, quando estiver em operação, o Soar – sigla de Southern Observatory for Astrophysical Research ou Observatório do Sul para Pesquisa Astrofísica – deverá fornecer imagens muito mais precisas e abundantes que as obtidas até agora pelos equipamentos em uso no país para estudar o Universo. Provido de um espelho principal de 4,2 metros de diâmetro, o Soar será 1.600 vezes mais potente que o maior dos telescópios brasileiros, com um espelho de 1,6 metro de diâmetro, em operação desde fevereiro de 1981 no Observatório do Pico dos Dias, no município de Brasópolis, Minas Gerais, a 1.860 metros de altitude.

Além de eliminar a defasagem da instrumentação básica da pesquisa dessa área no Brasil, que já durava dez anos, o Soar põe o país literalmente ao lado dos maiores centros de observação astronômica do mundo. Distante 400 metros, na mesma montanha, o Cerro Pachon, encontra-se uma das unidades do Observatório Gemini, com um dos mais potentes telescópios do mundo, que começou a operar há quase três anos como resultado de acordo entre sete países, incluindo o Brasil, com uma participação modesta, que dá direito a no máximo 17 noites de observação por ano. Dessa montanha de solo pedregoso e sem nenhuma vegetação, ao menos alguns dias por ano coberto de neve, pode-se ver também, a cerca de 15 quilômetros a noroeste, o Observatório Inter-Americano Cerro Tololo (CTIO), administrado pelos Estados Unidos, dotado de quase uma dezena de telescópios – o maior deles do mesmo porte que o do Soar, mas com recursos tecnológicos de 40 anos atrás.

O telescópio que será inaugurado no dia 17 deste mês, em uma cerimônia com cerca de cem convidados, iguala-se também, em muitos aspectos, aos telescópios espaciais: seu espelho é quase duas vezes maior que o do Hubble e a imagem, de qualidade equivalente. Devido a um conjunto de espelhos complementares, o Soar deverá eliminar as distorções da luz causadas pela atmosfera terrestre, das quais o Hubble consegue escapar por estar no espaço, em órbita a 500 quilômetros da Terra – uma vantagem obtida a um custo próximo a US$ 2 bilhões.

O Soar, evidentemente, custou bem menos: US$ 28 milhões. O Brasil contribuiu com US$ 12 milhões, divididos entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que destinou US$ 10 milhões ao projeto, e a FAPESP, que participou com US$ 2 milhões. Em conseqüência da participação nos custos, os pesquisadores brasileiros terão direito a 34% do tempo de uso, o equivalente a 127 noites por ano de observação em um céu quase sempre claro, seco e limpo – outra vantagem sobre os três telescópios do Pico dos Dias, sujeito a chuvas freqüentes no verão. Os outros três parceiros são norte-americanos: a National Optical Astronomy Observatories (Noao), a mesma instituição responsável pelo observatório vizinho, em Cerro Tololo, que terá 33% do tempo de uso do Soar; a Universidade da Carolina do Norte (UCN), com 16% do tempo; e a Universidade Estadual de Michigan (MSU), com 14%. Cada participante doará 10% de seu tempo para os astrônomos do Chile, em troca da cessão doterritório, como é comum em quase uma dezena de telescópios estrangeiros construídos nos Andes.

Instrumentos complementares
Com o início da operação do Soar e o acesso ao Gemini, a comunidade científica brasileira contará com um leque de instrumentos que permitirão a integração e a complementação dos projetos de pesquisa”, diz Albert Bruch, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), a instituição responsável pela administração dos três telescópios de Brasópolis que gerencia também a participação brasileira no Gemini e no Soar. O Observatório do Pico dos Dias, que ajudou a criar a base da astrofísica brasileira, não será esquecido, assegura ele: “Vamos precisar de todos os telescópios para satisfazer as necessidades da pesquisa astronômica no Brasil”. Construído para atender as necessidades dos cerca de 200 grupos brasileiros de pesquisa em astrofísica, distribuídos por universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Paraná, o Soar, que Bruch define como “um salto quântico para a pesquisa brasileira”, vai investigar o céu na faixa de luz visível ao começo do infravermelho, em comprimentos de onda de 6 mil a 22 mil angstrons (1 angstrom corresponde a 1 bilionésimo do metro). E deverá ser bastante útil, em primeiro lugar, no estudo da origem de estrelas, galáxias e do próprio Universo.

Deverá ser usado também na pesquisa sobre buracos negros – corpos celestes que se comportam como arquétipos de monstros famintos, capazes de devorar tudo o que encontram, até mesmo a luz. Investigados intensamente por equipes gaúchas, paulistas e catarinenses, parecem ser mais numerosos do que se pensava e capazes até mesmo de influenciar o destino das galáxias (ver Pesquisa FAPESP nº 96, de fevereiro de 2004). Outro provável tema de trabalho são as lentes gravitacionais, como são chamadas as galáxias que desviam a luz emitida por outras galáxias ainda mais distantes. Só depois de se conhecer o efeito das lentes gravitacionais é que se pode determinar com precisão a origem das distorções da luz que chega àTerra.

O novo telescópio será especialmente útil em pesquisas que exijam observações contínuas ou de uma ampla área do céu e em projetos de fôlego, a exemplo dos levantamentos de estrelas ou de galáxias de uma região, independentemente do tipo a que pertencem. O Gemini, constituído por dois telescópios mais potentes, com espelhos de 8,1 metros – um no Chile e outro no Havaí, a 4.220 metros de altitude -, vai complementar as pesquisas, mas dificilmente permitirá observações repetitivas ou abrangentes, porque seu tempo é dividido por equipes dos sete países que financiaram a construção – Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Chile, Austrália, Argentina e Brasil.

É comum, hoje, uma mesma pesquisa exigir o uso de mais de um telescópio. Só foi possível descobrir a estrela de mais baixa quantidade de elementos químicos com massa maior que a do hidrogênio ou hélio – a mais antiga já encontrada, com 12 a 15 bilhões de anos – porque uma equipe multinacional de pesquisadores, incluindo a brasileira Silvia Rossi, espalhou-se por quatro telescópios, nos Estados Unidos, no Chile e na Austrália (ver Pesquisa FAPESP nº 83, de janeiro de 2003). “As observações feitas em telescópios com espelhos de 2,2 ou 4 metros selecionam alvos para observações mais detalhadas, em telescópios maiores, cuja noite de observação é concorrida e cara, como no VLT (Very Large Telescope, no Chile) ou no Gemini”, comenta Silvia.

Orgulho e estresse
“Entramos na primeira divisão da pesquisa mundial. Até agora tínhamos excelentes jogadores, mas permanecíamos na segunda divisão”, comemora o astrofísico João Evangelista Steiner, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Consórcio e do Conselho Diretor do Soar. A palavra é exatamente essa – comemorar -, porque Steiner participou do projeto do telescópio, em 1993, “desde as primeiras idéias”, como ele próprio diz. Pouco mais de uma década mais tarde, aos 54 anos, depois de ajudar a vencer as dificuldades de logística, de projeto e de contratação de empresas e equipamentos, ele agora não disfarça a satisfação e o orgulho de ver o projeto finalmente concluído. “Construir um telescópio como esse”, diz ele, “é experiência única na vida.” Mas, claro, teve um preço. Em março de 1999, quando as obras do Soar ainda estavam no meio, o que ele chama de “uma quantidade indescritível de problemas” corroeu sua habitual paciência e o levou ao hospital, vítima de severo estresse.

Em 1993, ainda com a saúde em dia, Steiner era o representante brasileiro do projeto Gemini numa reunião realizada em Tucson, Arizona, Estados Unidos. Num dos intervalos, ele apresentou à astrofísica Sidney Wolff, que estava ali em nome do Noao, a idéia de construir outro telescópio para não deixar a pesquisa brasileira ficar para trás. “O Observatório do Pico dos Dias era a base e o Gemini, o topo, mas faltava o corpo, que atendesse às demandas futuras da pesquisa no Brasil”, conta Steiner. “Não seria possível sustentar os programas de pós-graduação no Brasil a longo prazo apenas com esses telescópios.”

Sidney gostou da idéia. Ela já havia feito um projeto semelhante com uma universidade norte-americana, mas não haviam avançado. De volta ao Brasil, Steiner levantou argumentos para convencer as agências de financiamento da importância desse novo telescópio para a pesquisa brasileira. “Não encampamos projetos preexistentes, mas definimos um a partir das necessidades dos grupos de pesquisa do Brasil e os parceiros norte-americanos aceitaram, porque também atendia ao que eles queriam”, diz ele. “Não abrimos mão de nada no desenho do projeto.” Aprovados o anteprojeto e os pedidos de financiamento, começou a construção, no final de 1997.

A primeira tarefa era preparar o terreno – algo não muito simples por se tratar do topo de uma montanha, distante 80 quilômetros de La Serena, a cidade mais próxima, à beira do oceano Pacífico, com aeroporto próprio e escalas diárias para Santiago, a capital. Ao longo de um ano, os tratores cortaram a ponta do cone, removeram 13 mil metros cúbicos de pedra e criaram uma área plana de 3.600 metros quadrados. Ali tomou forma o prédio com o telescópio e as salas de controle, dotado de paredes de aço – aço brasileiro, por sinal – para evitar a interferência de fontes de calor na luz que vem das estrelas e, ao mesmo tempo, resistir à variação de temperatura, que por lá oscila de 25 ºC negativos a 30 ºC positivos, e mesmo a terremotos. Sobre a estrutura metálica assentou-se um anel de 20 metros de diâmetro e 50 toneladas, fabricado pela Santin, de Piracicaba, interior paulista, usinado na Metalúrgica Atlas, na capital, e transportado para o alto do Cerro Pachon em partes, de uma só vez, emquatro carretas.

Foi sobre esse anel que os guindastes, cuidadosamente, depositaram a cúpula – ou domo -, uma semi-esfera com 14 metros de altura, cuja produção foi coordenada pela Equatorial, de São José dos Campos. Na última quinta-feira de fevereiro, dois dias depois do Carnaval, foi colocado sobre outra estrutura metálica, debaixo da cúpula, o espelho principal, com 4,2 metros de diâmetro e apenas 10 centímetros de espessura, fabricado e polido nos Estados Unidos. É uma peça fascinante. Em forma de uma gigantesca lente de contato, é quase perfeitamente liso: a rugosidade é tão insignificante que, se fosse esticado a ponto de ficar com uma área equivalente à do Brasil inteiro, a maior elevação não teria mais de 2 centímetros.

O espelho principal do Soar é tão fino para evitar que as dilatações e contrações do vidro possam interferir na luz que chega das estrelas, um problema comum em outros espelhos de telescópio, alguns com até meio metro de espessura. Por ser tão fino, é flexível, outra característica igualmente indesejável, mas contornada por meio de 220 apoios – ou atuadores – sobre os quais descansa a delicada peça de vidro. Os apoios procuram assegurar, com uma precisão admirável, a forma ideal do espelho: o máximo que cada um desses pontos pode se mover equivale a cem milionésimos da espessura de um fio de cabelo.

Esse espelho vai funcionar em conjunto com outros dois, que podem ser ajustados, em busca de uma melhor qualidade de imagem, de acordo com um mecanismo conhecido como óptica ativa. Há ainda mais dois espelhos complementares, capazes de corrigir a luz estelar das distorções geradas pela atmosfera terrestre. Por meio desse segundo jogo de espelhos – a chamada óptica adaptativa, já adotada em outros telescópios, como o Gemini – pretende-se chegar à mesma qualidade de imagem do Hubble, que escapa da interferência da atmosfera pela simples razão de estar no espaço. A partir do próximo ano, o Soar deverá contar também com um aparelho que decompõe e analisa a luz – um espectrógrafo -, que está sendo construído por uma equipe da USP e do LNA, no âmbito de um projeto temático coordenado por Beatriz Barbuy e apoiado pela FAPESP, com um financiamento de cerca de US$ 1 milhão. De acordo com o projeto, realizado sob a responsabilidade técnica de Jacques Lepine, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, a versão final desse espectrógrafo – cujo protótipo está em operação, desde o ano passado, no Pico dos Dias – terá cerca de 1.300 pontos de captação, constituídos por fibras ópticas, que a cada instante vão mostrar as variações de cada freqüência de luz de galáxias, aglomerados de galáxias e nebulosas, entre outros objetos astronômicos.

O imprevisível à vista
As primeiras imagens do Soar servirão apenas para ajustes dos equipamentos, dos espelhos e dos programas de computador – o chamado comissionamento, no qual os dois brasileiros que já estão lá deverão trabalhar, além de dar apoio às equipes que chegarem e, quando possível, cuidar de suas próprias pesquisas. Só em dois ou três meses é que o observatório começará a atender diretamente os projetos de pesquisa, de acordo com uma programação a ser definida pelo LNA, a partir das solicitações dos físicos. Por ano, Segundo Bruch, o Soar deverá abrigar cerca de 50 projetos, a metade do volume de trabalho no Pico dos Dias, enquanto o Gemini atende cerca de 15 projetos de pesquisadores brasileiros.

Para Steiner, o Soar representa a perspectiva de ampliar, sobretudo em qualidade, a produção científica brasileira, hoje responsável por 2% da pesquisa astrofísica mundial, o equivalente a 250 artigos. Mas há algo ainda mais atraente: a perspectiva de descobrir o que nem sequer foi imaginado. “Estamos diante do imprevisível”, diz ele, “sem a menor idéia do pode surgir, e geralmente surge, quando um telescópio com novas tecnologias começa a funcionar.”

O Projeto
Telescópio Soar; Modalidade Projeto Especial; Coordenador João Steiner – IAG/USP; Investimento US$ 10 milhões (CNPq) e US$ 2 milhões (FAPESP)

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