Depois de 10 anos de trabalho, está pronto o primeiro equipamento brasileiro para medir e estudar um dos aspectos menos conhecidos e mais misteriosos da atividade do Sol: as radiações emitidas na origem das explosões que ocorrem na estrela na faixa do infravermelho distante, conhecida também como tera-hertz (THz). Trata-se do Solar-T, um telescópio que não forma imagens como seus congêneres ópticos. Ele identifica e mede as radiações emitidas pelos objetos observados. Funciona como um fotômetro ao medir a intensidade dos fótons, que são as partículas associadas às ondas eletromagnéticas, como a luz. A previsão é que o aparelho faça seu primeiro voo sobre a Antártida, a bordo de um balão estratosférico a 40 quilômetros (km) de altitude em conjunto com um experimento da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, no verão de 2015, em uma missão com duração de duas semanas.
O aparelho foi desenvolvido, com financiamento de R$ 590 mil da FAPESP, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, em colaboração com o Centro de Componentes Semicondutores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A medição das radiações emitidas pelo Sol ocorre na faixa dos tera-hertz do espectro eletromagnético que, entre outras, abrange as ondas de rádio, infravermelho e luz visível. “Não há equipamento igual no mundo até o momento para operar nas frequências de THz, com o objetivo de estudar as explosões solares”, garante o pesquisador da equipe Rogério Marcon, do Laboratório de Difração de Raios X do Instituto de Física da Unicamp e criador do Observatório Solar Bernard Lyot, uma instituição privada de Campinas que participou do projeto Solar-T. “A faixa dos THz é utilizada na medicina e segurança, mas na astrofísica solar é inédita.”
Para Marcon, o trabalho do grupo do Mackenzie e da Unicamp coloca o Brasil na linha de frente das pesquisas em detectores na faixa de THz e sobre a natureza das explosões solares. “Tudo é novidade”, diz. A mesma equipe desenvolve o projeto Hats (high altitude terahertz solar telescope), um telescópio de solo, com objetivos semelhantes aos do Solar-T, mas com diferenças tecnológicas e de operação. Esse novo equipamento deverá ficar pronto até o fim de 2014, para ser instalado provavelmente no Parque Astronômico do Atacama, a 5.100 metros de altitude, nos Andes chilenos. “Até agora conseguimos financiamento de R$ 300 mil do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e do Mackenzie”, conta Pierre Kaufmann, do Centro de Radioastronomia e Astrofísica Mackenzie (Craam), coordenador dos dois projetos.
A história que culminou nesses dois equipamentos começou em 1984, quando Kaufmann detectou os primeiros sinais de que explosões solares poderiam emitir radiação na faixa de tera-hertz, também chamados de raios T. De acordo com ele, até os anos 1970 acreditava-se que as explosões emitiam radiação com frequências até micro-ondas no máximo e aí decaíam. Depois disso, alguns pesquisadores, como o inglês David Croom e o norte-americano Fred Shimabukuro, mostraram que nas explosões solares havia um tipo de radiação de intensidade crescente, que, imagina-se hoje, poderia chegar aos tera-hertz. Mas devido às limitações e à baixa sensibilidade de seus telescópios, eles não conseguiram determinar que frequência máxima essa radiação atingia.
Em 1984, uma descoberta do próprio Kaufmann e equipe aumentou o conhecimento nessa área de pesquisa. “Com um telescópio com maior sensibilidade, do Rádio Observatório de Itapetinga, em Atibaia [no interior paulista], detectamos uma explosão solar com uma radiação com intensidade crescente, até 100 giga-hertz [GHz]”, conta. “Na época, produzimos um artigo científico, publicado em 1985 na revista Nature, no qual propusemos a existência de radiações solares com frequências superiores a 100 GHz. A descoberta teve um tremendo impacto. A partir desse trabalho, corroborado pelo de outros autores, nós começamos a tentar detectar radiações em faixas mais altas.”
Kaufmann conta que, para isso, a FAPESP aprovou, em 1997, um projeto para pesquisas sobre radiações solares nas frequências de 200 e 400 GHz, ou 0,2 e 0,4 THz, respectivamente. O financiamento permitiu a construção do Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST) que foi instalado no Complexo Astronômico El Leoncito (Casleo), localizado nos Andes argentinos a 2.600 metros de altitude. “Em novembro de 2003 detectamos essa radiação em duas frequências: 212 GHz e crescente até 405 GHz”, conta o pesquisador do Mackenzie. Até então, a maior frequência que se media no mundo era 100 GHz. “Com esse telescópio, nós detectamos a existência de duas componentes de radiação nas explosões solares, uma em micro-ondas, bem conhecida, e outra na faixa THz simultânea e nunca vista. Mas devido às limitações das observações feitas a partir do solo, não conseguimos determinar até que frequências essa radiação poderia chegar. Mesmo em elevadas altitudes, a atmosfera é opaca para quase toda a faixa THz do espectro.”
Agora, com o Solar-T e o telescópio de solo, o pesquisador pretende ir mais longe. O primeiro é subdividido em dois aparelhos, um para detectar radiação de três THz e o outro de sete THz. Cada um deles é feito de duas partes: o primeiro é o sistema coletor, ou os telescópios propriamente ditos, para captar a radiação solar, e o sistema sensor. Cada telescópio tem configuração óptica tipo Cassegrain com dois espelhos, o principal, côncavo com 7,6 centímetros de diâmetro, e outro convexo, menor, além de filtros especiais para bloquear radiações indesejáveis, como as ondas eletromagnéticas na faixa do infravermelho próximo e no visível, que poderiam superaquecer e até incendiar o equipamento, além de mascarar o fenômeno procurado nas frequências THz. Outros filtros e malhas metálicas delimitam a frequência que se quer detectar, no caso três e sete THz. Embora não formem imagens, os espelhos são necessários para captar e concentrar as radiações eletromagnéticas.
A segunda parte do Solar-T é o sistema sensor, composto por uma Célula de Golay, equipamento fabricado pela empresa Tydex, de São Petersburgo, na Rússia. Trata-se de um detector optoacústico que registra as variações da intensidade da radiação. O Solar-T tem ainda um sistema de aquisição, armazenamento, transmissão e recepção de dados, produzido pelas empresas brasileiras Propertech Tecnologia, de Jacareí, e Neuron, de São José dos Campos, no interior de São Paulo. A primeira também é responsável pela integração de todos os componentes e a montagem final do equipamento.
Os dois telescópios têm duas inovações. A primeira está no espelho maior, que é rugoso. “O objetivo dessa rugosidade é difundir a radiação infravermelha”, explica Kaufmann. “Ela consegue difundir 80% dessa luz. Os outros 20% são suprimidos pelos filtros, com isso eliminamos o infravermelho e a luz visível.” A outra inovação, que foi objeto de um pedido de patente, é um dispositivo que capta qualquer explosão do disco solar. Para isso, é preciso que a imagem do disco completo esteja focada na superfície do sensor. Os dados obtidos do Solar-T são armazenados e enviados para satélites da rede Iridium, que os transmitem para uma estação terrestre e dali, pela internet, para os pesquisadores.
O telescópio de solo, o Hats, tem basicamente o mesmo objetivo, mas seu tamanho e configuração são diferentes. Ele tem um espelho côncavo, com 46 centímetros de diâmetro, e foco curto, de acordo com o mesmo conceito óptico usado no Solar-T em que a radiação solar é refletida para o sensor. O objetivo é detectar radiação em “janelas” de 850 giga-hertz e 1,4 tera-hertz. “Ele é inteiramente robótico, com sistema próprio de rastreio e de manobras usadas para calibrar e determinar a opacidade atmosférica. Possui também uma redoma retrátil automática comandada por estação meteorológica para protegê-lo em regimes de intempéries locais”, explica. “Além disso, terá estação geradora de energia própria, por painéis solares, e facilidades para transmissão remota de dados.
Essas tecnologias usadas nos dois equipamentos vão possibilitar avanços científicos importantes no conhecimento dos mecanismos, principalmente na produção de energia, que estão por trás das explosões solares. Segundo Kaufmann, quase não existiram avanços conceituais nessa área nos últimos 60 anos. “Sabemos tanto hoje quanto quando elas foram descobertas”, diz. “Há vários modelos que tentam explicar o fenômeno, mas nenhum foi confirmado.” Entender o papel da radiação na faixa dos tera-hertz não é mera curiosidade científica. Esses fenômenos, que se repetem com maior intensidade a cada 11 anos mais ou menos, têm implicações diretas no dia a dia da atual civilização. Em 1989, por exemplo, quando ocorreu uma das mais fortes explosões solares de que se tem registro, houve queda da transmissão de eletricidade em alguns países, como no leste do Canadá e costa leste dos Estados Unidos, e na Suécia. Atualmente se sabe que tais eventos podem afetar satélites, sistemas de navegação como GPS e telecomunicações incluindo os celulares. Como consequência, danos em satélites podem ocorrer levando ao mau funcionamento dos sistemas de comunicação e navegação de aviões e navios. Entender o fenômeno é a melhor maneira de prevenir tudo isso.
O Solar-T vai voar num balão estratosférico até 40 km de altitude, para se livrar do manto opaco das radiações em tera-hertz da atmosfera. A equipe de Kaufmann recebeu duas propostas para voar quase sem custos. Na Universidade da Califórnia o Solar-T deve voar com o experimento de raios gama Grips (gamma-ray imager-polarimeter for solar flares), que tem um sistema automático de apontamento e rastreio do Sol. Primeiro seria feito um voo de teste, de um dia no Texas, em setembro deste ano por um grupo de lançamento de balões da Nasa (com 80% de probabilidade de confirmação). O outro convite é para uma missão de 7 a 10 dias sobre a Rússia, em colaboração com o Instituto de Física Lebedev de Moscou. Nesse caso será necessário desenvolver um novo sistema de direcionamento para o Sol, o que exigiria mais recursos.
Projeto
Solar flare THz measurements from space: phase I (2012-2013) (nº 2010/51861-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Pierre Kaufmann (Universidade Presbiteriana Mackenzie); Investimento R$ 429.972,33 e US$ 64.000,00 (FAPESP).
Artigo científico
KAUFMANN, P. et al. Solar burst with millimetre-wave emission at high frequency only. Nature. v. 313, p. 380. 1985.