Um dispositivo óptico que permite que forças militares, policiais e de segurança identifiquem a presença de pessoas, animais, instalações e veículos em condições adversas de luminosidade, apenas pelo calor que emitem, foi desenvolvido pela empresa brasileira especializada em sistemas optrônicos Opto Space & Defense, pertencente ao Grupo Akaer. Sediada em São José dos Campos, a Akaer tem como foco a fabricação de estruturas, equipamentos e sistemas para os setores aeroespacial e de defesa. O monóculo de imagem térmica Olhar, primeiro do gênero criado por uma companhia nacional, foi projetado a partir de requisitos definidos pelo Exército brasileiro. Um primeiro lote com 21 aparelhos foi homologado em agosto, após mais de um ano em testes pela força militar.
“O Olhar foi projetado para ser um equipamento robusto, leve e com dimensões reduzidas. Esse desenvolvimento demonstra que o país detém o conhecimento de visão termal e pode fabricar seus próprios equipamentos. Com ele, ficamos independentes de questões geopolíticas que dificultam a aquisição desses aparelhos pelas Forças Armadas brasileiras”, afirma o engenheiro eletrônico Cláudio Carvas, diretor-presidente da Opto Space & Defense. O projeto, iniciado há mais de 15 anos, foi feito em parceria com o Centro de Tecnologia do Exército (CTEx) e recebeu apoio, em seu estágio inicial, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
Menos de 10 países do mundo, entre eles China, Estados Unidos, França, Israel e Reino Unido, dominam a tecnologia de fabricação de monóculos de visão termal para uso militar – e quem tem essa capacidade restringe a comercialização dos dispositivos.
“A visão termal é fundamental para quem entra em guerra. Especialistas em defesa costumam dizer que o soldado brasileiro é cego, porque guerra de dia a gente só vê no cinema. O conflito real acontece à noite, quando as dificuldades são grandes e equipamentos como o monóculo criado pela Akaer são essenciais”, sustenta o físico Jarbas Caiado de Castro Neto, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), que não participou diretamente do desenvolvimento.
Dispositivos como o Olhar detectam a radiação infravermelha, associada ao calor, emitida pelo corpo humano ou por objetos, e a convertem em uma imagem visível. Para isso, são dotados de sensores, normalmente feitos de silício amorfo ou óxido de vanádio, capazes de captar a emissão de radiação térmica dos corpos. A radiação infravermelha detectada é convertida em sinais elétricos que, por sua vez, são processados dando origem a uma imagem térmica em que diferentes cores ou tons representam diferentes temperaturas. Essa imagem é exibida em um display.
O monóculo criado pela Opto Space & Defense poderá ser usado não apenas em operações militares, mas também em missões de resgate para localizar pessoas, animais e objetos quentes em condições de pouca ou nenhuma visibilidade, como em ambientes com fumaça, poeira e nevoeiro. “O dispositivo detecta partes quentes em uma imagem, seja numa operação noturna ou diurna. Essa é sua grande função”, diz Carvas. “Na maioria das aplicações, o Olhar pode ser utilizado para aumentar a capacidade de observação do usuário.”
Com cerca de 800 gramas e 155 milímetros (mm) de comprimento por 72 mm de largura e 67 mm de altura, o Olhar pode ser operado manualmente ou acoplado a capacetes, fuzis e metralhadoras. Diferentemente da maioria dos concorrentes internacionais, o dispositivo brasileiro tem duas opções de lentes intercambiáveis, com distâncias focais de 14 mm (modelo básico) e 54 mm (modelo Caçador), que aproxima mais a imagem.
Modelo avançado
Carvas explica que o Olhar difere dos óculos de visão noturna. Os militares norte-americanos usaram esses últimos na missão de captura e morte do terrorista Osama Bin Laden, no Paquistão, em 2011. “Não é a mesma tecnologia. Óculos de visão noturna são intensificadores de luz, ou seja, captam uma luz mínima existente no ambiente e a amplificam para formar uma imagem. O monóculo termal independe da luz ambiente.”
De acordo com a Akaer, que este ano se tornou a primeira empresa brasileira do setor aeroespacial a obter o status de fornecedora global de nível 1, ou Tier 1 (ver box), o monóculo se vale do que há de mais avançado em termos de microeletrônica, mecânica de precisão e óptica. “O projeto óptico das objetivas termais e ocular garante elevado desempenho que se traduz em imagens com alto contraste e baixa distorção”, afirma o executivo da Opto Space & Defense.
Na área de eletrônica, foram desenvolvidas placas de circuito impresso com dimensões reduzidas contendo componentes com encapsulamentos muito pequenos. Também foram utilizados módulos de processamento e um microdisplay com tecnologia Oled, que usa diodos orgânicos emissores de luz, além de um sensor termal de alta resolução, comprado no exterior.
“Para a estrutura mecânica, foi necessário projetar e fabricar o corpo do monóculo em dimensões reduzidas, de forma que ele pudesse abrigar e garantir a segurança dos componentes internos”, informa Carvas. “O conjunto mecânico teve que assegurar o alinhamento óptico do sensor termal e da objetiva, sem o qual a imagem não teria boa resolução e nitidez.” A robustez do sistema foi outro pré-requisito estabelecido pelo Exército. O monóculo resiste por 30 minutos dentro d’água e saiu-se bem nos testes de resistência ao choque, conforme a Akaer.
“Trata-se de uma tecnologia desafiadora”, reconhece Castro Neto, do IFSC-USP, que acompanhou o projeto de uma primeira versão do monóculo. Batizado de VDN X-1, ele começou a ser projetado em 2007 nos laboratórios da startup Opto Eletrônica, de São Carlos, da qual o físico foi um dos criadores. Em 2016, a divisão Espaço e Defesa (E&D) da empresa foi comprada pela Akaer e rebatizada de Opto Space & Defense. Três anos depois, o projeto do monóculo foi retomado.
Desenhar e fabricar lentes de visão termal, assim como planejar sua eletrônica, é uma tarefa considerada das mais complexas por quem conheceu o projeto. “Diferentemente das lentes para câmeras no espectro visível, as termais precisam ser feitas de materiais muito específicos, como sulfeto de zinco, silício e germânio, cuja disponibilidade é limitada. O design do sistema óptico é intrincado e precisa ser projetado para anular aberrações cromáticas, distorções e outros problemas, a fim de que se tenha uma imagem precisa”, diz o pesquisador da USP.
Procurado por Pesquisa FAPESP, o Exército limitou-se a informar, por meio de nota, que “a avaliação do projeto foi encerrada recentemente e o equipamento ainda está em estudos para adoção”. Durante os processos de avaliação técnica e operacional e homologação, foram analisados múltiplos requisitos de desempenho em laboratório e em campo, segundo normas compatíveis com as definidas pelas Forças Armadas dos Estados Unidos. O lote com 21 aparelhos entregue ao Exército no ano passado foi submetido a testes de suscetibilidade eletromagnética, emissão sonora, resistência a altas e baixas temperaturas, areia, umidade, entre outros.
Ainda não há uma definição sobre quando o monóculo será incorporado ao braço terrestre das Forças Armadas. “Não sabemos quantos aparelhos serão adquiridos nem quando. Mas já recebemos consultas de outros países interessados no equipamento. A venda para o exterior, contudo, depende da autorização do Exército, já que o projeto foi encomendado por ele”, afirma o diretor da Opto Space & Defense.
A Akaer não revela o preço do monóculo. O valor, segundo a empresa, depende de algumas variáveis, como o número de unidades previstas na negociação. Monóculos de imagem térmica já em operação – como os das norte-americanas Teledyne Flir Systems e L3Harris Technologies, uma das fornecedoras do Exército dos Estados Unidos, da britânica BAE Systems e da israelense Elbit Systems – custam a partir de US$ 3 mil e podem superar US$ 20 mil. O valor varia conforme as características do dispositivo, o nível de sofisticação tecnológica, os acessórios, entre outros fatores. “O Olhar será competitivo. Não seremos o mais caro nem o mais barato do mercado”, destaca Carvas.
Akaer é a primeira empresa brasileira qualificada como fornecedora global de nível 1 para o setor aeroespacial
Em março deste ano, a Akaer, empresa de engenharia do polo aeroespacial de São José dos Campos, no interior paulista, foi selecionada pela fabricante alemã Deutsche Aircraft para projetar e fabricar a fuselagem dianteira do D328eco, turboélice com 40 lugares destinado a mercados regionais. Com o contrato, a companhia tornou-se a primeira empresa brasileira fornecedora global nível 1 (Tier 1) para o mercado aeroespacial, meta que vinha perseguindo nos últimos anos (ver Pesquisa FAPESP nº 270).
“A qualificação da Akaer como Tier 1 é um marco para a indústria aeronáutica brasileira”, destaca o economista Marcos José Barbieri Ferreira, da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em indústria aeroespacial e de defesa. “Apesar de termos no país a terceira maior fabricante de aviões do mundo, a Embraer, ainda não tínhamos uma companhia Tier 1.”
Ele explica que empresas com essa capacidade são fornecedoras de primeiro nível de componentes estruturais, segmentos e sistemas aeronáuticos complexos, tais como asas, fuselagem (aeroestruturas), trens de pouso, motores e aviônicos. O Brasil, até então, só tinha companhias Tier 2 e 3, normalmente empresas de pequeno e médio portes fornecedoras de componentes com menor valor agregado, como peças usinadas ou materiais compósitos que irão compor estruturas maiores.
O turboélice D328eco, destinado a uso civil ou militar, está sendo projetado para voar com o chamado combustível sustentável de aviação (SAF), solução em adoção pela indústria aeronáutica para reduzir a pegada de carbono do setor (ver Pesquisa FAPESP nos 317 e 337). A Akaer estima que a primeira fuselagem fabricada no Brasil será entregue no fim do próximo ano. A aeronave está programada para entrar em operação comercial no quarto trimestre de 2027.
Jato supersônico e foguete
A empresa de São José dos Campos participa de outro projeto internacional de grande porte, a construção do jato militar supersônico Hürjet, da Turquia. A Turkish Aerospace Industry (TAI), líder da iniciativa, selecionou a Akaer como parceira para o desenvolvimento e o detalhamento do projeto estrutural, do cálculo estrutural e das instalações de sistemas da fuselagem traseira, partes da fuselagem central e instalações da empenagem (superfícies traseiras) do Hürjet. O primeiro protótipo fez seu voo inaugural em abril de 2023.
“O maior desafio nesse projeto foi revisar a concepção e ter toda a documentação do primeiro protótipo liberada em um prazo extremamente curto”, destacou, em nota à imprensa, o vice-presidente de Operações, Fernando Ferraz. “Atender a esse desafio só foi possível em razão da larga bagagem acumulada no desenvolvimento de produtos aeronáuticos complexos para os setores de defesa, aviação executiva e civil.”
A Akaer também está envolvida em projetos estratégicos nacionais, como a revitalização da aeronave de patrulha P-3AM Orion, da Força Aérea Brasileira (FAB), e o desenvolvimento de um novo veículo lançador de pequeno porte capaz de levar ao espaço nano e microssatélites.
No exterior, participa de um projeto em andamento, o Deep Underground Neutrino Experiment (Dune), nos Estados Unidos. A Akaer construiu, por meio de sua controlada Equatorial Sistemas e do apoio de físicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), uma das máquinas que equiparão o experimento.
A reportagem acima foi publicada com o título “À procura do calor” na edição impressa nº 344, de outubro de 2024.
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