Imprimir PDF Republicar

Pecuária

Empresa cria sistema para identificar o gado com câmeras

Tecnologia reconhece individualmente cada bovino com 99,8% de acurácia

Montagem de fotos com animais do Núcleo de Conservação do Bovino Pantaneiro de Aquidauana, da UEMS

Fabrício Weber / Vanessa Weber

Um esforço de pesquisadores de Mato Grosso do Sul para preservar uma raça de bovinos em risco de extinção no Pantanal poderá gerar uma tecnologia capaz de facilitar a vida dos criadores de gado em geral. Após criar um sistema que, com o uso de inteligência artificial, reconheceu individualmente cada bovino pantaneiro apenas por imagens com até 99,8% de acurácia, a startup KeroW, incubada na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, trabalha para adaptar o algoritmo a outras raças, como nelore, girolando e angus, mais comuns no país. A ideia é oferecer uma opção aos métodos tradicionais de identificação, como brincos numerados, colares, tatuagens na orelha e marcação a ferro quente, poupando tempo e dinheiro dos pecuaristas e sofrimento aos animais.

A tecnologia foi construída durante o mestrado do cientista da computação Fabricio de Lima Weber, um dos quatro sócios da KeroW, na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Para projetar o sistema, ele empregou um conjunto de técnicas computacionais, específicas para o processamento e a análise de imagens, inspiradas em processos biológicos que ocorrem no córtex visual humano, conhecidas como redes neurais convolucionais (RNC).

O estudo com os bovinos pantaneiros mostrou que o modelo de arquitetura de RNC pode ser aplicado a um sistema de visão computacional para o reconhecimento automático dos animais. O processo é semelhante ao usado na identificação facial de pessoas, já adotado em vários países no transporte público, em estádios e em aeroportos (ver Pesquisa FAPESP no 274). A identificação é feita a partir de um banco de dados previamente registrado. A diferença é que, no caso do gado, as câmeras analisam não apenas a face, mas também características do dorso, das laterais e da frente do animal.

Um artigo detalhando o trabalho de Weber, que contou com a orientação do médico veterinário Urbano Gomes Pinto de Abreu, da Embrapa Pantanal, e a colaboração de pesquisadores do Núcleo de Conservação do Bovino Pantaneiro de Aquidauana (Nubopan) da UEMS, da UCDB e da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), foi publicado em 2020 na revista Computers and Electronics in Agriculture.

De lá para cá, o modelo tem sido aprimorado. “Houve um processo de maturação do sistema. Adotamos novas tecnologias que são mais rápidas e consomem menos processamento”, diz Weber. “Além disso, estamos automatizando o processo. No início, ele era todo manual. Escolhíamos as imagens, separávamos e montávamos o banco de dados. Agora, o algoritmo deve fazer isso.”

Para montar o banco de dados com o gado pantaneiro, os pesquisadores usaram quatro câmeras de monitoramento dispostas em diferentes pontos de um curral. Milhares de imagens de um rebanho composto por 51 cabeças foram gerados. Com o acervo finalizado, uma câmera munida com um software específico foi capaz de identificar individualmente cada um dos bovinos do grupo em alguns segundos (ver infográfico abaixo).

Rodrigo Cunha

O reconhecimento visual e automático dos animais facilita o manejo do rebanho, permite acompanhar o histórico de cada bovino e garante a rastreabilidade do gado. Informações como local de origem do animal, vacinas tomadas, ocorrências sanitárias e alimentação ficam disponíveis para possíveis compradores e fornecedores, reduzindo o risco de irregularidades na produção e no comércio do rebanho.

Diferentes arquiteturas computacionais usando RNC e métodos de aprendizado profundo (deep learning) já vêm sendo usadas em estudos para identificar doenças em plantas, classificar organismos marinhos e objetos achados no oceano e até fazer o reconhecimento facial de suínos. Há, no entanto, pouca pesquisa para identificar o gado bovino com essa tecnologia, segundo os pesquisadores.

“São feitos estudos em várias regiões do mundo buscando a identificação do rebanho por imagem. Os que conhecemos usam a tecnologia apoiada em câmeras mais avançadas, um método ainda caro, e alguns visam apenas ao reconhecimento facial do animal, o que torna difícil o processo”, conta Weber.

“No sistema extensivo de gado de corte que vigora no país, especialmente dos zebuínos como o nelore, é difícil o animal ficar parado para a obtenção da imagem da face. Esse é o maior desafio: conseguir não apenas o reconhecimento facial, mas identificar os animais a partir de outras características, no pasto e no curral”, explica Abreu, da Embrapa.

O grupo de pesquisadores sul-mato-grossenses pretende que a tecnologia seja acessível a todos, dos maiores aos menores pecuaristas, e funcione mesmo sem sinal de internet no campo. Os dados poderiam ser disponibilizados por uma rede intranet ou por um sistema baseado em protocolos de comunicação sem fio, como bluetooth, ambos de baixo custo.

“Queremos chegar não apenas no grande, mas também no pequeno empreendedor rural, para que ele possa usar essa tecnologia. O diferencial do nosso sistema são as câmeras. Enquanto a maioria das pesquisas usa câmeras 3D, utilizamos as 2D, dessas domésticas, que são mais baratas”, conta Weber.

Embrapa Restam apenas cerca de 500 animais puro-sangue no país, segundo estimativasEmbrapa

O médico veterinário e pecuarista Alexandre de Oliveira Bezerra, criador basicamente de nelore, na região de Rio Verde, Mato Grosso do Sul, vê com bons olhos os possíveis resultados concretos da pesquisa. “É um sistema que ajudaria muito, principalmente na economia de tempo para identificar os animais.”

Ele explica que, no método tradicional, é preciso prender o animal em um tronco de contenção para fazer a marcação com ferro quente, brinco ou colar, o que requer tempo e mão de obra. “Identificar os animais por imagem seria excelente porque eles não precisariam ser contidos individualmente. A câmera apenas captaria cada um no pasto”, argumenta.

A tecnologia, supõe Bezerra, também poderia render vantagens econômicas e sanitárias. “O custo do processo poderia cair. Embora os produtos convencionais usados para identificação animal tenham baixo valor unitário, o montante final pode ser expressivo conforme o tamanho do rebanho. Além disso, o reconhecimento visual remoto diminuiria o risco de certos problemas, como inflamação da orelha, perda do brinco e erros na leitura dos dados.”

A equipe da KeroW não sabe ainda quando a nova tecnologia estará no mercado. “Dependemos de investimentos para finalizar a inovação”, comenta a analista de sistemas Vanessa Aparecida de Moraes Weber, uma das sócias da startup e técnica da UEMS. “Recentemente a empresa foi aprovada em um edital público do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para a contratação de bolsas para desenvolver um trabalho com bovinos da raça girolando. Estamos submetendo o projeto a outros programas de fomento para conseguir mais recursos que permitam a compra de equipamentos para dar continuidade à pesquisa.”

Além da identificação animal, a startup planeja incluir no sistema a estimativa de massa corporal dos bovinos, também a partir da captação de imagens. Esse foi o tema de doutorado de Vanessa, esposa de Fabrício, no Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais e Sustentabilidade Agropecuária na UCDB. O desenvolvimento de tecnologias de pesagem empregando visão computacional também é foco de pesquisa de agritechs e universidades (ver Pesquisa FAPESP nº 284).

“O que diferencia meu trabalho de doutorado é que usamos câmeras 2D com sensores RGB [que captam imagens coloridas como estamos acostumados a ver], mais acessíveis, baratas e de fácil manutenção”, diz a pesquisadora. “Na KeroW, queremos explorar a funcionalidade de estimativa de massa para a tomada de algumas decisões, entre elas o ponto de abate. Também será possível categorizar os animais e classificá-los automaticamente quanto ao ganho de peso.”

O boi do Pantanal
Fruto do cruzamento de raças trazidas para o país há centenas de anos, animal quase desapareceu

O bovino pantaneiro foi formado a partir do cruzamento de 11 raças portuguesas e espanholas trazidas à América do Sul pelos colonizadores ainda nos séculos XVI e XVII. Ao longo de gerações, os animais ganharam, via seleção natural, características de adaptação ao ambiente e às condições climáticas locais, como as inundações sazonais e as secas prolongadas.

Mesmo sendo de uma raça só, os indivíduos apresentam características bem diversas entre si, podendo ter 17 tipos de chifres, 47 variações na pelagem e 14 outras particularidades. Mais recentemente, no entanto, o cruzamento desordenado com outras raças, principalmente zebuínas, levou ao quase desaparecimento do bovino pantaneiro.

Em artigo científico publicado no periódico Computers and Electronics in Agriculture, pesquisadores brasileiros comentam que havia uma estimativa de que restavam apenas cerca de 500 animais puro-sangue nas fazendas da região. Em 2017, o bovino pantaneiro foi reconhecido como patrimônio cultural e genético de Mato Grosso do Sul. Instituições de pesquisa e ensino trabalham para fomentar núcleos de criação da raça e conservar esse patrimônio genético.

Artigos científicos
WEBER, F. L. et al. Recognition of Pantaneira cattle breed using computer vision and convolutional neural networks. Computers and Eletronics in Agriculture. v. 175. ago. 2020.
WEBER, V. A. M. et al. Cattle weight estimation using active contour models and regression trees bagging. Computers and Eletronics in Agriculture. v. 179.  dez. 2020.

Republicar