Depois de operar por um ano em um regime regulatório simplificado, a startup paulistana Pier recebeu autorização permanente para funcionar como seguradora em maio de 2022. Nesse período, a empresa testou dois tipos de seguros contra roubo e furto de celular e de automóveis, comercializando-os diretamente com os clientes. As apólices são contratadas exclusivamente pelo aplicativo de celular e têm vigência mensal, podendo ser canceladas a qualquer momento pelo segurado. No caso dos automóveis, a vistoria é feita de maneira remota com base em fotografias enviadas pelo próprio usuário.
A startup foi uma das empresas autorizadas pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, a testar inovações no mercado de seguros em um espaço monitorado pelo órgão regulador e mais flexível, também chamado de sandbox regulatório ou ambiente regulatório experimental. Uma das exigências flexibilizadas pela Susep foi a redução do valor do capital mínimo requerido, exigido para uma seguradora começar a operar no país e a garantir a cobertura de possíveis riscos e perdas, de R$ 15 milhões para R$ 1 milhão.
O termo sandbox, ou caixa de areia em português, é uma alusão a espaços comuns em parques infantis, onde crianças brincam sob a supervisão dos pais, e foi emprestado das empresas de software, que têm o hábito de lançar versões experimentais de programas em ambientes computacionais isolados, que podem ser testados sem comprometer o sistema em que rodam. O conceito vem sendo adotado por instituições públicas do setor financeiro, agências reguladoras das áreas de energia, transportes e telecomunicações, além de municípios, para testar e acelerar a implementação de novas tecnologias e serviços com processos menos burocráticos. E ganhou força jurídica ao ser previsto na Lei Complementar nº 146/2019, conhecida como marco legal das startups, sancionada em junho de 2021.
“Como o mercado de seguros, assim como o bancário, é altamente regulado, dificilmente startups menores conseguiriam autorização para testar novos produtos diretamente com clientes sem um ambiente experimental”, observa o CFO (diretor financeiro) da Pier Seguradora, Carlos Colucci. Antes de participar do sandbox, a empresa atuava apenas como uma insurtech, um tipo de negócio que faz a intermediação entre grandes seguradoras e clientes finais. Segundo Colucci, em setembro de 2021, ainda no ambiente experimental, a empresa aumentou o número de clientes e recebeu um aporte de US$ 20 milhões. Com o tamanho atingido, pôde solicitar a saída do ambiente regulatório simplificado.
Os casos pioneiros
“A ideia é criar um ambiente com regras flexíveis e ver como elas funcionam no mundo real em um experimento monitorado pelo órgão regulador e com um número limitado de clientes”, explica o cientista político Clóvis Alberto Vieira de Melo, coordenador do Lab Policy Solutions da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e um dos autores de um artigo sobre o tema, publicado na Revista do TCU em janeiro de 2024. O trabalho analisou casos pioneiros em autarquias do sistema financeiro nacional: os do Banco Central do Brasil (Bacen), voltado para os sistemas financeiro e de pagamentos, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), para o mercado de capitais, e da Susep, para os seguros privados.
O artigo destaca que as autarquias realizaram as primeiras chamadas em 2020. No primeiro processo de admissão da CVM, de 34 propostas recebidas, apenas as de quatro empresas foram aprovadas. Uma delas foi apresentada pela Vórtx, startup da área de tokenização de valores mobiliários, um processo que transforma ativos financeiros em ativos digitais por meio da tecnologia blockchain. Outra era a Basement, que apoiava empresas de pequeno porte interessadas em aumentar seu capital oferecendo títulos financeiros. As duas empresas acabaram se fundindo quando deixaram o ambiente experimental em 2022. Iniciativas como essa da CVM têm estimulado investimentos em fintechs, empresas que desenvolvem soluções tecnológicas inovadoras para o mercado financeiro. Segundo apreciação da nota informativa “Fintechs e Sandbox no Brasil”, publicada pelo Ministério da Fazenda em junho de 2019, o modelo de sandbox tinha, à época, grande potencial para fomentar especialmente serviços inovadores nesse setor, que evoluem rapidamente. Isso, de fato, vem ocorrendo.
No Bacen, a primeira chamada recebeu 52 propostas, das quais sete foram aprovadas. Ao menos duas serão acompanhadas pelo Comitê Estratégico de Gestão do Sandbox Regulatório (Cesb) do Bacen até o final de 2024, segundo a última ata de reunião do comitê disponível no site do órgão, de 17 de novembro de 2023. São elas: um aplicativo para realizar transações de pagamento de crédito usando as funcionalidades do Pix, proposto pelo Banco Itaucard, e a criação de uma rede de pontos físicos em estabelecimentos comerciais parceiros para receber depósitos em dinheiro de clientes do banco digital Mercado Pago – pelas normas vigentes, isso só poderia ser feito via pagamento de boleto em agências bancárias.
O conceito vem sendo adotado por órgãos reguladores para testar e acelerar a implementação de novas tecnologias e serviços com processos menos burocráticos
A Susep realizou dois sandboxes até agora e, em julho deste ano, abriu inscrições para o terceiro. Durante o período de testes, as empresas precisam enviar relatórios periódicos para o órgão regulador, com informações sobre o número de apólices comercializadas, de acidentes e de faturamento, por exemplo, para que seu desempenho seja monitorado. A startup paulistana 88i passou por esse processo. Hoje, está em busca de uma licença definitiva para se tornar uma seguradora, após três anos no sandbox. “Estamos em processo de saída desse ambiente experimental, mostrando que nosso modelo de negócio é sustentável e que podemos operar com segurança no mercado regulado de forma permanente”, explica a chefe de operações e cofundadora da empresa, Rosi Sena. A 88i testou o serviço das chamadas “microapólices”, que cobrem acidentes pessoais de motoristas de aplicativos e de mercadorias transportadas, emitidas de maneira digital. O sistema da empresa gera documentos em tempo real durante o trajeto da corrida, que se encerram assim que o percurso é finalizado, e tem clientes da área de mobilidade e delivery.
Limitações e expansão para outras áreas
O estudo da UFCG destaca que nenhuma dessas iniciativas divulgou estimativas dos impactos sociais das soluções testadas ou recomendações de aprimoramento de regulação com base em experiências nos sandboxes. “Esse é um processo muito novo e que requer um tempo de implementação. Ainda faltam relatórios que exponham seus efeitos”, avalia Melo.
Segundo o artigo, no Reino Unido, o conceito de sandbox foi testado pela primeira vez em 2015, por meio da Financial Conduct Authority, órgão regulador financeiro britânico. Cerca de dois terços das empresas que participaram do primeiro edital obtiveram uma autorização para atuar no mercado e, dessas, 40% receberam aportes de capital.
As experiências do setor financeiro do Brasil inspiraram iniciativas nas áreas de transportes, telecomunicações, proteção de dados, distribuição de energia e aplicações para cidades inteligentes. “O movimento tem crescido, porque esse é um instrumento do direito administrativo bastante pragmático, voltado para a realidade”, observa o advogado Rafael Véras, da Fundação Getulio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro, que analisou exemplos de ambientes experimentais promovidos por agências reguladoras, em um artigo publicado na revista Interesse Público em maio de 2024.
Ele destaca a experiência da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A primeira avalia desde março de 2023 o chamado pedágio fluxo livre, ou free flow, no trecho da BR-101 entre Ubatuba (SP) e Rio de Janeiro (RJ), administrado pela concessionária CCR. O free flow consiste em uma forma de pagamento automático em que o usuário não precisa parar e a cobrança do pedágio é feita trecho a trecho, de maneira modulada. Os veículos são identificados em pórticos que reconhecem TAG ou as próprias placas – similar ao sistema ponto a ponto já implementado em algumas rodovias do estado de São Paulo, mas novidade em estradas federais. Já a iniciativa da Aneel remonta a 2019, quando a Enel Distribuição São Paulo solicitou autorização para implementar um projeto-piloto de autoleitura, no qual os próprios consumidores residenciais podem registrar o consumo de energia elétrica e enviar os dados para a empresa.
Intervenção sobre foto de Rich Vintage / Getty Images
“No âmbito municipal, a cidade do Rio de Janeiro tem um exemplo interessante, o Sandbox.Rio”, destaca Véras. Criado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação, suas chamadas são abertas para empresas, institutos de pesquisa e outras entidades voltadas à promoção de inovações tecnológicas, que podem ser autorizadas a operar por 6 ou 12 meses no ambiente experimental.
Em julho de 2022, a secretaria divulgou as quatro primeiras empresas selecionadas no 1º ciclo do sandbox, sendo que duas delas tiveram seus projetos finalizados e saíram do regime. É o caso da MyView, que testou robôs terrestres para o serviço de delivery. A empresa ainda não recebeu autorização para circular. “Estamos fechando o relatório de análise dos resultados dos testes. É necessário compreender melhor esses impactos e em escala mínima não foi possível concluir pela viabilidade desse projeto nesse momento”, explica a subsecretária de Regulação e Ambiente de Negócios da secretaria, Carina de Castro Quirino.
Segundo Quirino, outras duas empresas tiveram o período de testes renovados. Entre elas está a startup da Eve Air Mobility, da fabricante brasileira Embraer, que trabalha no desenvolvimento de eVTOL, veículos elétricos que decolam e pousam na vertical. “A empresa está desenvolvendo todo o arcabouço regulatório conosco sobre a instalação de um porto de eVTOL na Lagoa Rodrigo de Freitas”, afirma a subsecretária. Em junho, foram divulgadas mais seis empresas selecionadas para o 2º ciclo, como a Boos Bikes, cujo projeto é instalar um hub de estacionamento e carregamento de bicicletas elétricas na cidade.
Encontros
A economista Lorrayne Porciuncula, diretora-executiva da Datasphere Initiative, organização especializada em governança de dados com sede na Suíça e escritório no Brasil, destaca o caso da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que aprovou o primeiro projeto-piloto de sandbox regulatório em fevereiro deste ano. O projeto permitirá que municípios utilizem repetidores de radiofrequências e reforçadores de sinais para melhorar a cobertura de telefonia móvel em áreas onde o sinal é insuficiente. “Esse exemplo é interessante porque afeta diretamente a vida das pessoas. De acordo com a regulamentação atual, municípios não podem oferecer serviços de telecomunicações, apenas empresas autorizadas. Mas muitas pessoas ficam sem acesso”, observa ela. A economista organizou um evento sobre experiências nacionais e internacionais de sandboxes em 21 de fevereiro, em Brasília.
Em junho, a Advocacia-Geral da União (AGU) lançou com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) uma consulta pública para receber propostas de melhorias em processos de sandbox regulatório na administração pública. As contribuições estão em avaliação e poderão ser aproveitadas em um guia de boas práticas sobre o tema, que deve ser publicado ainda neste ano.
Segundo o procurador federal Bruno Portela, coordenador do Laboratório de Inovação da AGU e responsável pela elaboração do guia, foram mapeadas aproximadamente 80 experiências de sandbox no país e no exterior. “O guia deve servir como orientação a órgãos públicos com o propósito de garantir segurança jurídica a gestores que busquem utilizar o instrumento de sandbox para modernizar a relação do Estado com as entidades reguladas”, diz Portela. “A nossa ideia é ampliar o guia para outras boas práticas regulatórias”, complementa o procurador. Para Porciuncula, a iniciativa da AGU é bem-vinda, desde que não traga limitações para novos modelos de sandbox. “É preciso tomar cuidado para não engessar uma prática que precisa ser flexível por natureza”, conclui.
A reportagem acima foi publicada com o título “Plataforma de testes” na edição impressa nº 344, de outubro de 2024.
Artigos científicos
VIEIRA, J. B. et. al. O sandbox regulatório como instrumento de incentivo à inovação no Brasil: Os casos do Banco Central, da Comissão de Valores Mobiliários e da Superintendência de Seguros Privados. Revista do TCU. v. 1, p. 336-62. jan. 2024.
FREITAS, R. V. e ALTOÉ JUNIOR, J. E. Direito regulatório experimental: A aplicação do sandbox no direito brasileiro. Interesse Público – IP. n. 145, p. 207-43. maio 2024
DATASPHERE INITIATIVE. Fora da caixa: Experiências de sandboxes nacionais e internacionais. 2024.