Imprimir PDF Republicar

Bertha Koiffmann Becker

Bertha Koiffmann Becker: Amazônia sem extremismo

Bertha Becker propõe uma revolução científica e tecnológica na Amazônia

Léo Ramos Cahves Nem ambientalista, nem antiambientalista: preservação e desenvolvimento da Amazônia com inclusão socialLéo Ramos Cahves

Depois de percorrer e estudar a Amazônia durante 30 anos, Bertha Koiffmann Becker propõe uma visão integrada, sem extremismos, como único caminho para conciliar a preservação e o desenvolvimento dessa região que cobre um pouco mais da metade do território brasileiro. Para essa geógrafa política de 73 anos, que lecionou durante 40 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e 18 no Instituto Rio Branco, grandes empreendimentos empresariais, a despeito da aversão gerada pelas experiências malsucedidas nos anos 1970, devem coexistir com pequenos projetos de produção familiar.

“Não conseguiremos resolver o problema do desenvolvimento da Amazônia só com pequenos projetos de produção familiar”, argumenta a pesquisadora, que coordena o subprograma Dimensões Humanas do Experimento de Larga Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), megaprojeto científico que reúne especialistas da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos.

Para ela, deve-se preservar, sim, mas também descobrir formas de atribuir valor econômico aos recursos naturais, com a participação dos moradores da região, porque, “caso contrário, a floresta não conseguirá competir com a exploração predatória da madeira, da pecuária e da soja”.

Na entrevista a seguir, concedida no espaçoso apartamento onde mora há seis anos, no 13º andar de um edifício na avenida Atlântica, Rio de Janeiro, com uma deslumbrante vista para o mar, Bertha Becker desfaz muitos equívocos sobre a Amazônia: não, não se trata de um vazio demográfico, mas de uma região com cerca de 20 milhões de habitantes e uma surpreendente taxa de urbanização.

Por que a senhora chama a Amazônia de floresta urbanizada?
Essa é uma alcunha que eu criei em 1985, por causa do processo de urbanização da Amazônia, que nas últimas décadas do século 20 acusou as maiores taxas no Brasil. Houve um afluxo enorme de gente de todos os estados, em grande parte induzido pelo governo federal, dentro do programa de integração nacional, em que a ocupação da Amazônia foi uma prioridade. E como nem todos conseguiram ter acesso à terra, e os que conseguiram depois perderam, por causa dos conflitos de terra, a população ia para os núcleos urbanos. Pelo Censo de 2000, 69,07% da população se concentrava em núcleos urbanos. Há quem diga que isso não é urbano, mas um grande acampamento rural. Não importa, porque a urbanização se mede não só pelo crescimento e multiplicação das cidades, mas também pela difusão dos valores urbanos pela população rural, por meio das redes de telecomunicações e da mobilidade de trabalho. Quem faz trabalho na cidade e no campo, sazonalmente, se move daqui para lá, de lá para cá, e vai aprendendo, vai absorvendo os valores urbanos. Estudei muito essa questão da mobilidade. O que os migrantes queriam era ir para a cidade para dar educação aos filhos. Esse é o nosso processo de urbanização. Alguns colegas não gostam dessa abordagem porque querem que nossa urbanização seja igual à da Europa e dos Estados Unidos – mas não é.

No estudo que fez para a Conferência do LBA, a senhora comenta que os núcleos urbanos são o maior problema da Amazônia hoje. Por quê?
Porque são inchados. Fica todo mundo falando só da destruição da floresta, mas os núcleos urbanos são hoje um dos maiores problemas ambientais da Amazônia, porque abrigam muita gente sem acesso a nada, com problemas sérios de saúde e de saneamento. Não sei como, mas temos de dar um jeito nisso.

A senhora também sugere uma visão integrada da Amazônia, sem maniqueísmos…
Exatamente. Fala-se que o bom é o pequeno, ele é que não destrói, ele que é o coitado; o mau é a grande empresa… Todo mundo acha que não tem possibilidade de conciliar e não vê que cada um tem seu papel, com coisas boas e ruins. Esse é o maniqueísmo, que ainda impera, principalmente porque houve uma influência muito grande, na década de 1980 para 90, de uma visão, que na época era muito justa, de denúncia de todo aquele movimento militar de ocupação da Amazônia. Eu mesma fiz um livro com essas denúncias, o Geopolítica da Amazônia, de 1982. Acontece que o mundo mudou e o Brasil mudou. Mas aí veio toda a esquerda festiva, achando que tudo o que é grande é ruim, tudo o que é governo é ruim, e foi uma tragédia para o Brasil. Depois, o Consenso de Washington, com a proposta do Estado mínimo, a história de que o Estado está acabando, e a gente, em vez de ver que isso era uma palavra de fora, entrou na guerra contra o Estado. Foi muito ruim, porque hoje está todo mundo querendo o Estado. Porque precisa do Estado, porque o discurso veio de fora, e os países, Estados Unidos, Inglaterra, nenhum deles acabou com seu Estado, era um discurso para a periferia. Aqui a academia também entrou nessa. Resultado: hoje, em qualquer lugar da Amazônia, com qualquer pessoa, agora estive em Altamira, no Pará, que é um núcleo político importantíssimo para a sociedade civil, e a primeira reivindicação é a presença do Estado. Para impedir que tomem as terras. Ao falar com um pecuarista, a primeira reivindicação também é a presença do Estado, mas por razões diferentes: acham que não é preciso haver tanta área mantida, com floresta, e querem reduzir, por causa do risco de invasão. E têm conflitos enormes nas fronteiras, os conflitos de soberania…

Quais são os conflitos de soberania?
Nesse processo de todo mundo ser contra o Estado e de ser a favor só do pequeno e do bom houve a penetração de uma ideologia ambientalista através de atores externos, por exemplo, algumas ONGs, que fazem mobilização política, organizações religiosas, principalmente os evangélicos, e cooperação internacional de pesquisa. A Amazônia ficou um terreno fértil para uma ação externa: o pessoal veio com dinheiro e ajudou os movimentos sociais, e os pequenos produtores, que estavam lutando pela sobrevivência e para permanecer na terra, se transformaram em sentinelas da floresta. Não sou antiambientalista, mas também não sou ambientalista. Não quero que se destrua a floresta, não quero, decididamente, e nem quero que se expulsem os grandes produtores, os seringueiros e os ribeirinhos. Mobilizar essa população contra o Estado não é legal. Só fazer área protegida na Amazônia tampouco é legal. Tem que fazer área protegida, mas quando protege se retiram grandes porções de território do circuito produtivo. Não sou contra as unidades de conservação, só não quero que fique tudo só preservado. Porque, se não usar a terra para produzir, vai fazer o quê? Temos de respeitar a natureza, mas também usar o patrimônio e a terra. Temos de usar de modo que não seja destrutivo, mas temos que usar.

Parece que saímos traumatizados dos anos 1970 e não queremos pensar mais em grandes projetos para a Amazônia.
O que estou falando são dos traumas, mesmo. Não pode ter uma Petrobras atuando na Amazônia? Tem que ter. Há gente contra fazer o gasoduto… Tem um movimento muito hostil em relação às grandes empresas. Carajás foi um enclave, mas não é mais, está pagando royalties e beneficiando os municípios em torno. É importante desenvolver, com as populações locais, um modelo baseado na exploração dos recursos locais, mas não conseguiremos resolver o problema do desenvolvimento da Amazônia só com pequenos projetos de produção familiar. Alguns conseguiram ter sucesso, de escala inclusive, mas a maioria não tem escala, são pequenos demais, não têm acesso a estrada vicinal para escoar a produção. Deve ter os pequenos, a pequena empresa, a média empresa, o pequeno projeto de agricultura familiar, quero que os seringueiros se organizem, tudo isso, mas também temos que ter espaço para grandes projetos, projetos modernos de produção. Ainda tem minério para caramba por lá. Tem de ter as duas coisas, um não deve excluir o outro.

E como conciliar esses extremos?
Boa pergunta. Teria que ter primeiro de tudo um planejamento, começar a conciliação nas políticas públicas, com uma estratégia orquestrada, que leve em conta a diversidade dos recursos e a diversidade social. Aconteceu que cada um foi chegando e fazendo o queria, era a casa-da-mãe-joana. Nem foi uma zona assim tão grande porque o governo militar teve muito mais planejamento que se pensa. Passamos a década de 1990 com uma pressão fortíssima de preservação ambiental, que veio de duas lógicas distintas, mas com o mesmo projeto. Uma lógica é a preocupação ambiental, que é legítima, sem dúvida. A natureza como fonte de vida. A outra veio com a revolução científico-tecnológica, no sentido de ver que a natureza se transformava num bem escasso, então era preciso fazer estoque de capital natural. Quer dizer, para as grandes potências. E onde é que estão os estoques de capital natural? Nos países periféricos, enquanto a tecnologia de uso da natureza sob novos moldes e tecnologias avançadas está nos países centrais. Temos então uma desigual distribuição de tecnologia e de natureza. E aí veio toda uma pressão preservacionista para manter áreas preservadas, para não destruir o capital natural… Para os ambientalistas, uma forma de garantir a vida. E para os interesses econômicos e geopolíticos, uma forma de fazer reservas de capital natural para uso futuro.

É um mecanismo capcioso, não?
Claro que é. Está havendo um processo de mercantilização dos elementos da natureza. O capital natural, que antes era capital natural de realização futura, agora está se realizando, está começando a ser explorado. Nos grandes fóruns globais, está havendo uma tentativa de regular mercados do ar, da biodiversidade e da água. O que é o Protocolo de Kyoto senão a regulação do mercado de ar, em que se vendem cotas de ar para outro país continuar poluindo?

Qual sua proposta para a Amazônia?
É uma revolução científico-tecnológica que utilize a biodiversidade em todos os seus níveis, desde os extratos e óleos até os fármacos, que é a tecnologia mais sofisticada, que requer grandes investimentos. Já existem algumas experiências que procuram agregar valores à biodiversidade: em Manaus, por exemplo, a Natura e a Croda, uma multinacional inglesa que já está explorando óleos. Temos de pensar na agregação de valor no âmago da floresta, com os ribeirinhos, com inclusão social. Assim haveria cadeias produtivas se formando desde as populações tradicionais até os centros de biotecnologia, onde é possível fazer extratos, xarope e fármacos. A pesca, uma parte da pesca é biodiversidade. Pode-se industrializar a pesca, é uma das maiores possibilidades da Amazônia e ninguém usa. Está sendo depredada. A biodiversidade é o que permite gerar riqueza, fármaco dá riqueza, xarope e cosmético também. E o que pode gerar riqueza com inclusão social e sem depredar o ambiente? A tecnologia. É a única forma.

Em seus estudos, a senhora fala muito do desperdício na exploração da madeira.
A madeira é um desastre porque eles a exploram arrebentando a floresta. O problema é que as madeireiras são um dos setores que mais dão emprego na Amazônia. Então, é difícil parar, mas temos de inventar uma forma de aproveitar melhor. Já está havendo também processo de certificação da madeira, com manejo florestal, que é importante. Não pode mais ficar arrebentando a floresta para tirar madeira, também não pode deixar a soja entrar pela floresta. A soja tem muito espaço para avançar, nas áreas já desmatadas, por exemplo. O que está havendo hoje na Amazônia é uma guerra entre os usos atuais e futuros do território. A soja é extremamente importante para o país e a floresta é uma riqueza potencial, enorme. No final do século 20 a fronteira agropecuária chegou na borda da floresta e destruiu a floresta de transição e também a floresta verdadeira. No começo da década de 1990 houve um movimento para barrar essa destruição, com a política de áreas protegidas, que ajudou a conter o ímpeto da soja, que se expande com base numa logística poderosa e uma agroindústria tecnificada. Há um risco grande de a soja se expandir ainda mais e derrubar a floresta com mais intensidade. Só as áreas protegidas não resolvem, talvez as áreas indígenas consigam barrar mais, porque são ocupadas. Temos de atribuir valor econômico aos recursos naturais, para enfrentar a competição com as commodities. Caso contrário, a floresta não conseguirá competir com a exploração predatória da madeira, da pecuária e da soja.

A Amazônia é um problema para o Brasil?
É um problema e um potencial, porque do ponto de vista do governo há uma preocupação com a questão da soberania e dos agentes externos na Amazônia. Na fronteira política tem os contatos com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o narcotráfico e o contrabando. Tudo isso em face da fragilidade das instituições do Estado, que não tem condição nem capacidade de controlar. Essa é uma das grandes questões do Brasil: ver como fortalecer as instituições, no Estado de direito, veja bem! Outra preocupação é a guerra entre, de um lado, produtores familiares (como produtor familiar entra seringueiro, índio e pequeno agricultor, todos os que vivem da terra) e os ambientalistas, que em geral estão juntos, em uma parceria que faz pressão para não mudar as coisas dentro da região. Por outro lado tem a soja, os grãos, que é uma das bases da economia do país, que está se estendendo brutalmente. Enquanto houver mercado e a China continuar comprando, a soja vai se expandir, porque é baseada numa logística poderosíssima. Logística não é só transporte, é também armazenamento, redes de comunicação, cidades, mercados. Esse conjunto gera verdadeiros territórios corporatizados. Mas tem uma coisa, que pouca gente sabe: as grandes tradings, como a Bunge e a Cargill, não compram mais terra, agora terceirizam a terra. Dão semente, dinheiro e compram a safra antecipadamente. São espertos. Por que vão se envolver com problema de terra no Brasil? É uma forma de relação de trabalho, que a Sadia já fazia no Sul, e que lá se expandiu. Mas o Maggi – sabe quem é Blairo Maggi, o governador do Estado de Mato Grosso? – terceiriza e também compra terra.
Temos então um problema de expropriação dos pequenos produtores, quando chegam as plantações. E o que está acontecendo? Os grandes produtores estão buscando saídas para exportar pelo norte para os portos de Roterdã e de Xangai. Estão até financiando uma parte do asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém. Diante dessa guerra, o governo resolveu transformar a Cuiabá-Santarém, a BR-163, em um modelo novo de implantação de estrada na Amazônia.

Para evitar outra Transamazônica?
Exatamente. É uma tentativa de estabelecer um modelo novo para a abertura de estradas. O problema é o seguinte: temos de abrir estrada. Ou o Brasil não pode abrir estrada, para ampliar a circulação no território nacional? Todo mundo pode, só nós é que não podemos? Mas temos de fazer estrada sem destruir a floresta do jeito que está destruindo. Então estamos propondo, eu propus inclusive, zoneamentos: que se planejem os núcleos urbanos, porque vai haver migração; temos que ter base de apoio para sustentar a população, decente; áreas de agricultura familiar; áreas de soja, certamente vai ter; e áreas de manejo florestal, não é?

Quando a senhora entrou nessa história?
Em novembro de 2003. Agora temos um grupo de trabalho funcionando. São 14 ministérios, sob a liderança dos ministérios da Integração Nacional e do Meio Ambiente. Temos de fazer políticas concertadas. É muito, muito difícil, mas estamos tentando. Vamos fazer um planejamento para toda a área de influência da rodovia.

Quando começou o projeto dessa rodovia?
Foi na década de 1970, no governo militar. Abriram uma estrada de terra, mas nunca foi asfaltada. Aí começou a haver uma migração de Mato Grosso e do Sul, e os pequenos produtores foram para a Cuiabá-Santarém. Hoje a maioria é pecuarista. Os grandes produtores estão loucos para asfaltar, para a estrada servir para a exportação de soja. Sem pavimentação, só serve para passar gado.

E os pequenos produtores, como ficam?
Essa é uma sacanagem, desculpe a expressão, abrir estradas para ser corredor de exportação, enquanto a região continua com uma fraquíssima conectividade interna, inclusive entre os pequenos produtores, que precisam de estradas vicinais para escoar sua produção e não têm.

Quando a senhora entrou no LBA, em 2002, o projeto já estava correndo, não?
Havia muito tempo. O LBA é um projeto que está intimamente associado ao Global Environmental Change, que é o que eu chamo de um processo de globalização da pesquisa. Globalização da pesquisa por quê? Porque o Global Change é uma iniciativa do ICSU, International Council for Science, um conselho internacional de todas as uniões científicas, com uma preocupação global, portanto. A preocupação de que a natureza está sendo depredada, que o clima, com a poluição, o efeito estufa, tudo isso, vai mudar o planeta, e, evidente, com a produção de conhecimento, para usar melhor o que a gente tem na superfície da Terra e evitar catástrofes. O ICSU focalizou o conhecimento nas ciências naturais, clima, mares e oceanos, vegetação… a parte humana foi absolutamente negligenciada. O LBA se criou nessa mesma concepção, tanto que o problema central é a relação entre biosfera e atmosfera. De parte humana só tinha um subprograma, o Land Use and Land Cover Change, no próprio ICSU, com muita coisa de bioquímica, biofísica, bio… sei lá que mais. Mas não existe natureza sem homem. Acho muito importante a questão global, mas não posso dar prioridade a questões globais porque os problemas no Brasil são enormes, sociais inclusive. Não posso pensar só nas gerações futuras, tenho de pensar nas gerações atuais também. Inclusive porque, se não resolver os problemas aqui, vai ter repercussão global. Não gosto dessa ênfase globalista, mas esse é um problema meu, não tem nada com o LBA. Quando o ICSU introduziu um subprograma de noções humanas na mudança ambiental global, o LBA achou bom fazer o mesmo. Quem me convidou foi o Carlos Nobre, que tem uma cabeça muito aberta, para eu implantar a pesquisa sobre a dimensão humana na mudança ambiental global. Ele propôs que inicialmente eu fizesse essa síntese, para ver como os cientistas humanos lidavam com a Amazônia. O tempo foi curto, o levantamento teve algumas falhas, mas passei a mensagem de que já existe uma produção significativa sobre a Amazônia, ainda que muito dispersa, e que há um grande debate, porque eles são muito assim das certezas. A turma estrangeira do LBA tem um enorme desprezo pela dimensão humana, sou obrigada a confessar.

A que a senhora atribui esse desprezo?
Eles acham que ciência humana não é ciência, que tudo tem de ser medido, com equações e modelos. Mas eu, que trabalho na Amazônia há 30 anos, não posso deixar de ir a campo para ver o que se passa. Porque ali muda todo ano, com uma dinâmica incrível. Tenho de ter cuidado com esses modelitos estratosféricos. Modelo é importante, mas tenho que ir a campo, preciso conhecer o que se passa em vários lugares da Amazônia para poder fazer uma generalização. Converso com diferentes atores sociais, desde o peão até o governador do estado, os pecuaristas e o produtor familiar. Não vejo como captar as tendências de mudanças na Amazônia se não for lá e reconhecer a diversidade.

Como tem sido o diálogo com os físicos, químicos e biólogos do LBA?
Difícil. Também tenho meus preconceitos, reconheço. Não gostei nada de que se fizesse parceria com a Nasa, porque o Brasil participa de programas multilaterais em que os estrangeiros têm autonomia excessiva. Como eu trabalho com geopolítica, tenho minhas desconfianças das ajudas financeiras. Ajuda financeira vem com uma agenda de pesquisa, em que os processos globais têm uma importância muito grande, mas, como já disse, temos de pensar no regional e no nacional. É algo que acontece no mundo todo, mas temos de saber negociar. Não temos de nos submeter.

Quando a senhora foi à Amazônia pela primeira vez?
Quando era professorado Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, foi aí que comecei a me interessar pela geografia política. Eu tinha de ensinar futuros diplomatas e comecei a procurar algo que servisse para eles. Eu vivia dizendo ao embaixador Antonio Correa do Lago, que era o chefe do Instituto, que os meninos deveriam conhecer o Brasil antes de representar o Brasil lá fora, porque vinham das elites urbanas e não conheciam nada do país. Fui com uns 60 alunos, de avião da FAB (Força Aérea Brasileira), e pousamos em todos os quartéis das proximidades das fronteiras. Foi o embaixador que escolheu visitar as fronteiras da Amazônia, isso em 1970, hein? Sabe que as populações da área de fronteira só escutavam rádio de Cuba e não a Rádio Nacional? Preparei os meninos durante algum tempo, com questionários, para verem qual a ligação dos moradores com o território nacional. Me baseei na questão da estrutura centro-periferia. Fomos a Corumbá, Cáceres – Cáceres já estava cheio de migrantes -, depois sobrevoamos o vale do Guaporé, pousando no Forte Príncipe da Beira, depois Guajará-Mirim brasileira, Guajará-Mirim boliviana, Porto Velho, Rio Branco, Cruzeiro do Sul e daí Manaus e Brasília. Eu não conhecia a Amazônia e nunca mais saí de lá. Depois fui numa excursão com o pessoal da Engenharia do Fundão (Universidade Federal do Rio do Janeiro), fui com eles de carro por toda a Belém-Brasília. A partir daí fiz meus projetos para o CNPq e desenvolvi um know-how de pesquisa de campo: eu pedia ajuda ao DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem) e usava as casas dos engenheiros para dormir no meio da estrada.

E depois, por onde a senhora andou?
Comecei pelo norte de Goiás, que depois virou Tocantins. Araguaína, Imperatriz, depois Rondônia, Mato Grosso, rodei Mato Grosso, fui a Sinop, tudo aquilo, Alta Floresta… Cada ano eu ia para um lugar, fiquei conhecendo quase tudo.

Quando é a próxima expedição?
Vou no começo de agosto para Sinop, Guarantã do Norte, em Mato Grosso, Novo Progresso, no Pará, e Apuí e Humaitá, no Amazonas. Vamos ver o que está acontecendo, porque a soja está entrando, e quero ver direitinho como é. Quero ver se essa área deve ou não fazer parte da área de influência da Cuiabá-Santarém.

Os geógrafos de modo geral não participam pouco dos debates sobre a Amazônia, enfim, sobre o uso do território brasileiro?
Os cientistas são muito voltados para o próprio umbigo. Têm suas preferências e querem pesquisar de acordo com essas preferências. Não se voltam para as demandas da sociedade. No caso da geografia tem outra coisa: a turma entrou naquele esquerdismo, num marxismo zarolho, só se preocupando em encontrar o marxismo nos problemas, só na denúncia. Mas não pode… Talvez estejamos precisando como nunca da contribuição da academia. Temos de dar um passo à frente, não ficar só pesquisando, pesquisando, pesquisando a vida inteira. É claro que é nossa função, mas não custa pensar nos problemas do país e tentar dar alguma sugestão. Confesso que hoje estou muito mais ligada a não-geógrafos do que a geógrafos. Sou muito mais transdisciplinar.

O que um brasileiro qualquer deveria saber sobre a Amazônia?
Que a Amazônia é parte do Brasil; que os conflitos que lá ocorrem são conflitos da sociedade brasileira, apenas aparecem com mais clareza lá, pelas próprias particularidades geográficas da área; que a Amazônia não é um vazio demográfico.

Não é um vazio demográfico?
Não! Esse é outro mito. O mito de que a Amazônia é homogênea e vazia. Nunca foi vazia, porque já tinha os índios vivendo lá, depois os ribeirinhos, caboclos e as cidades. É uma região que no final do século passou por enormes transformações estruturais, na conectividade, pelas redes de telecomunicação; na economia, com a industrialização; no povoamento, que passou a se dar ao longo das estradas em vez de ao longo dos rios; e na sociedade. Houve uma migração intensa, de todo o país, e a sociedade civil se organizou como nunca antes. Há movimentos sociais no campo, por causa da terra, e na cidade, pela cidadania. Todos esses processos ocorreram de modo diferenciado, porque hoje existem três grandes macrorregiões na Amazônia, que eu distingo. A primeira é o chamado Arco do Fogo, acho ridículo chamar assim, para mim é o Arco do Povoamento Consolidado, porque está cheio de cidades grandes, estradas, soja, pecuária, Carajás… A outra macrorregião é a região central, o Pará, a mais vulnerável, por causa dos conflitos ambientais e sociais, é por onde vai a Cuiabá-Santarém, por isso que a gente está fazendo esse esforço todo. A outra macrorregião, a Amazônia ocidental, ainda a mais preservada, com os estados do Amazonas e Roraima e uma parte do Acre. É o reino das águas, com os rios Solimões e Amazonas, muita floresta, terras indígenas e unidades de conservação. Mas tem Manaus, um grande centro industrial, é bom não esquecer. Dentro dessas macrorregiões existem sub-regiões, são muitas. É importante frisar: não podemos mais pensar na Amazônia sem pensar na Amazônia Sul-americana como um todo. Temos de pensar na integração dos países da Amazônia.

Como está essa integração?
Existe agora em Brasília uma Secretaria Permanente do Tratado de Cooperação Amazônica. No começo de julho fizeram a primeira oficina, já como Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA, reunindo Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela ), para discutir um plano estratégico. Fiz uma conferência de abertura, foi o maior barato, falei essas coisas todas, eles adoraram. Só que o plano não falava na questão social. Disse que um dos desafios da integração continental é justamente o social, porque quero que resolva o problema social, detesto é ficar banalizando a questão social. Eu disse, “se não quiser atender a problemática social, não vai haver integração de nada”. Outro desafio é como se inserir na globalização através do processo que está ocorrendo agora, de mercantilização da natureza, com um modelo que não deprede os recursos e faça a inserção social. E lá fui eu, por aí afora. Sugeri a revolução tecnológica, que, inclusive, podemos fazer conjuntamente. O governador da Amazônia colombiana veio falar comigo, temos idéias, temos idéias…

Por exemplo?
Ah, não vou dizer! Não posso, senão abro o jogo, dou o ouro todo para o bandido, não é você, não, mas quem ler já vai começar a brigar.

Republicar