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Zoologia

Cores ao vento

Genes e fósseis revelam origem da diversidade de borboletas sul-americanas

andré freitas/unicampAgrias claudinaandré freitas/unicamp

Um dinossauro enfeitado com o vermelho e o azul de uma borboleta pousada na testa, como se fosse um laçarote nos cabelos de uma menina, pode parecer fantasia de desenhista ou diretor de filme ambientado na Pré-História. Mas é plausível, segundo o zoólogo André Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): as borboletas da família das ninfalídeas já existiam há 90 milhões de anos.

Em colaboração com colegas da Finlândia, da Suécia e dos Estados Unidos, ele mostrou na Proceedings of the Royal Society B que as ninfalídeas já faziam parte da paisagem quando dinossauros caçavam outros animais e comiam as folhas de uma variedade bem razoável de plantas. Além de servir como cardápio aos vegetarianos, é provável que a diversidade vegetal também estivesse por trás das inúmeras formas e cores de borboletas voejando de uma flor à outra, sugere o pesquisador da Unicamp. Mas tanto plantas como animais (borboletas inclusive) foram afetados pelo asteroide que há 65 milhões de anos caiu onde hoje é o México. Segundo essa teoria mais aceita sobre o desaparecimento dos dinossauros, as consequências do impacto foram violentas e causaram uma avassaladora onda de extinções, e deixaram rastros nos fósseis e nos genes das borboletas de hoje.

“Na época das extinções, a fronteira entre o Cretáceo e o Terciário, só sobraram cerca de 10 espécies de Nymphalidae”, conta Freitas, que em duas figuras do artigo demonstra a importância da descoberta: cada uma dessas espécies sobreviventes deu origem a um ramo que depois se diversificou. Não é por acaso, portanto, que hoje as ninfalídeas estão divididas em 12 subfamílias. Passado o período em que o mundo ficou inóspito para boa parte dos seres vivos, o punhado de espécies que tinham resistido se diversificou de forma explosiva e deu origem ao grupo mais diverso entre as borboletas, que hoje abriga cerca de 6 mil espécies dos mais diferentes matizes e tamanhos. Elas podem, por exemplo, ser pintadas ou rajadas, vermelhas ou azuis, às vezes com manchas que se parecem com grandes olhos.

Além de saber quando surgiram essas borboletas, o zoó­logo também quer saber de que região do planeta elas vieram e quais condições ambientais foram responsáveis pela diversidade de cores que flutuam por ares tropicais. Ele é capaz de passar horas a fio debruçado sobre uma lupa, examinando todos os detalhes de uma borboleta, como medidas, cores e a disposição de veias nas asas. A análise ampla da família considerou 235 dessas características morfológicas e 10 trechos do DNA, além da planta hospedeira característica para cada subfamília, e indica que de fato as ninfalídeas surgiram nos trópicos. Para ajudar a determinar quando cada espécie existiu, a equipe internacional usou raros fósseis de borboletas, uma dezena deles, com idades estimadas por métodos geológicos. Essa datação complementou os métodos moleculares para dar uma escala de tempo à árvore genealógica das ninfalídeas.

Mas para ter uma ideia mais precisa de como e quando surgiu a riqueza atual de espécies, é preciso olhar caso a caso. É  o que Freitas tem feito, em colaboração com Karina Silva-Brandão, agora pesquisadora na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, da Universidade de São Paulo (USP). Um exemplo são as borboletas de asas transparentes da subfamília Ithomiinae, que Freitas e Karina estudaram em parceria com a francesa Marianne Elias, à época na Universidade de Edimburgo, no Reino Unido. O grupo verificou, em trabalho publicado em 2009 na Molecular Ecology, que essas borboletas já viviam onde agora são os Andes quando a região ainda não era montanhosa, mais de 15 milhões de anos atrás. À medida que os movimentos da crosta terrestre foram formando montanhas no que hoje é o oeste da América do Sul, a cordilheira cresceu e novos ambientes surgiram, isolados por picos e vales. Essa situação ideal para o surgimento de espécies foi exatamente o que permitiu a diversificação das itomiíneas. Os dados genéticos mostram também que a partir de cerca de 4 milhões de anos atrás, talvez porque todos os ambientes propícios já estivessem ocupados, o número de espécies se estabilizou.

andré freitas/unicampFrente e verso: dois lados de Diaethria clymenaandré freitas/unicamp

Cardápio
Algumas dessas espécies deram origem a novas linhagens no norte da Amazônia e na Mata Atlântica, em regiões onde era convidativa a diversidade vegetal, sobretudo de plantas da família das solanáceas, que inclui tomates e batatas. Por meio de análises das árvores filogenéticas, Freitas já tinha mostrado, alguns anos antes, a importância da planta hospedeira na diversificação das itomiíneas. Lagartas de borboletas não são seres de uma voracidade indiscriminada: transportadas para uma planta diferente da habitual, muitas delas não reconhecem aquela superfície como alimento e morrem de fome, mesmo cercadas de folhas.

As ancestrais das itomiíneas comiam folhas de apocináceas, a família das alamandas, muito comuns em jardins com suas flores amarelas ou cor-de-rosa. O caule e as folhas dessas plantas, quando quebrados, vertem uma substância leitosa tóxica para muitos animais. As lagartas de borboletas que se alimentam de apocináceas tiram proveito disso: sequestram substâncias alcaloides e adquirem um sabor desagradável que dissuade predadores. Um recurso conveniente, mas as apocináceas são insuficientes para alimentar um número muito grande de espécies. Diante da limitação, novas espécies só seriam bem-sucedidas se conseguissem explorar outras fontes de alimento. “As solanáceas eram um recurso abundante e sem competidores, por isso o acesso a elas foi o que permitiu a diversificação das itomiíneas”, conta Freitas.

Outra subfamília das ninfalídeas a se disseminar a partir dos Andes foi Acraeini, conforme artigo que Freitas e Karina publicaram em 2008 na Molecular Phylogenetics and Evolution. Os hábitos alimentares parecem estar intimamente ligados a essa diversificação a partir de borboletas africanas especializadas em se alimentar, durante a fase de lagarta, das folhas espinhudas e cheias de toxinas das urtigas. Os pesquisadores acreditam que a mesma capacidade de se adaptar às urtigas permitiu o surgimento de descendentes com preferência pela família dos girassóis e das margaridas, também ricas em compostos químicos tóxicos. Essas devoradoras de margaridas também existem na América do Sul, indicando que a subfamília chegou a este continente a partir das estabelecidas no Velho Mundo.

A história não para aí. Mais recentemente Freitas e Karina perceberam, em trabalho ainda não publicado, que o grupo das Acraeini surgiu na África há mais ou menos 30 milhões de anos. Mas, se nessa época o continente africano e o americano já estavam separados, como as borboletas passaram de um a outro? “Acreditamos que tenha sido pela Antártida”, conta ele. Naquele perío­do, o continente polar meridional ainda não era congelado e abrigava uma rica vegetação. Só entre 23 milhões e 28 milhões de anos atrás a Antártida se separou dos outros continentes e passou a ser circundada por correntes oceânicas que causaram o congelamento, mas nessa época as Acraeini já tinham chegado ao Novo Mundo. Além do que revelam as análises genéticas, o pesquisador da Unicamp aponta mais um indício de que a teoria está correta: na América do Sul as borboletas desse grupo vivem em áreas frias, como a cordilheira dos Andes e zonas mais altas da serra do Mar, domínio da Mata Atlântica. Bem diferente das espécies africanas, especializadas em florestas tropicais e savanas. “Só chegaram por aqui as que resistiram ao frio.”

Viagens
Por causa dos fortes indícios de um berço africano para algumas ninfalídeas, até pouco tempo atrás acreditava-se que a subfamília Biblidinae, que tem cerca de 20 espécies na África e na Ásia e mais de 90 por aqui, tivesse surgido por lá e, por algum motivo, se diversificado mais do lado de cá do oceano Atlântico. “Mas não é isso que vemos”, contesta Freitas. Suas análises indicam que as biblidíneas surgiram na América do Sul e depois – há cerca de 30 milhões de anos e outra vez por volta de 25 milhões de anos atrás – invadiram a África, gerando novas linhagens. Nessa época a travessia pela Antártida já não era possível, o que deixa um mistério em aberto. “Talvez o trânsito intercontinental seja mais fácil do que se imaginava”, reflete, imaginando que borboletas adultas podem ser carregadas por ventos ou por jangadas naturais formadas por galhos, folhas, frutos ou, hoje, lixo. Não é impossível que façam essas longas travessias, afinal borboletas tropicais podem viver até 10 meses.

Se uma única família de borboletas tem tantas histórias para contar, é difícil imaginar o que reservam todas as 127 famílias desses insetos voadores, incluindo também as mariposas. Passeios por jardins e florestas brasileiras são uma amostra da imensa variedade de cores esplendorosas, ainda em grande parte inexplorada – segundo Freitas, no Brasil poucos pesquisadores se dedicam a entender como surgiu essa diversidade. Admirar esses insetos vestidos de festa está ao alcance de qualquer pessoa. Uma caminhada pelas trilhas da serra do Japi, uma reserva de Mata Atlântica próxima a Jundiaí, no interior paulista, promete deslumbramento. Sobretudo nos meses de março e abril.

Veja mais fotos nas galerias de imagens
Borboletas em frente e verso
Borboletas e lagartas na natureza

O projeto
Borboletas da Mata Atlântica: biogeografia e sistemática como ferramentas de conservação de biodiversidade (nº 2004/05269-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Coordenador André Victor Lucci Freitas – Unicamp; Investimento R$ 164.736,14
Artigos científicos
WAHLBERG, N. et al. Nymphalid butterflies diversify near demise at the Cretaceous/Terciary boundary. Proceedings of the Royal Society, B. v. 276, n. 1.677, p. 4.295-302. 22 dez. 2009.
ELIAS, M. et al. Out of the Andes: patterns of diversification in clearwing butterflies. Molecular Ecology. v. 18, n. 8, p. 1.716-29. abr. 2009.
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