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Química

Versatilidade marinha

Algas podem ser aplicadas na limpeza de áreas contaminadas

eduardo cesarCultivo em laboratório de Gracilaria tenuistipitataeduardo cesar

De formas e coloridos diversos, as delicadas algas marinhas guardam um riquíssimo arsenal químico, composto de aminoácidos, lipídeos, açúcares, carotenoides e pigmentos que as tornam particularmente interessantes como fonte de novos fármacos e substâncias bioativas com potencial econômico para uso na agricultura ou ainda para produção de biocombustível. Versáteis, esses organismos aquáticos também podem ser utilizados para limpar áreas contaminadas por substâncias orgânicas e por metais pesados, processo chamado de biorremediação. “As algas têm em sua estrutura celular uma grande área chamada de vacúolo, um tipo de cavidade limitado por uma membrana, onde conseguem estocar grandes quantidades de substâncias”, diz o professor Pio Colepicolo Neto, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), que há mais de 20 anos se dedica ao estudo das algas e atualmente coordena um projeto temático com a participação de nove grupos de pesquisa, financiado pela FAPESP, que engloba estudos de bioprospecção de macroalgas marinhas. “Em uma área com metais pesados, elas podem funcionar como uma esponja biológica, absorvendo esses poluentes, e dentro da célula, por mecanismos bioquímicos, ocorre uma imobilização dos materiais no vacúolo”, relata. No final do processo, basta incinerá-las e retirar o metal concentrado nas cinzas.

Para testar na prática o conhecimento de anos de pesquisa, Colepicolo entregou recentemente um projeto para a Petrobras, que está em análise pela empresa, de utilização de macroalgas nos tanques das refinarias para limpeza dos metais pesados resultantes dos processos de produção de petróleo. Uma das propostas embutidas no projeto é estudar os níveis de concentração de dióxido de carbono (CO2) não só em refinarias, mas também em usinas de fermentação de etanol, para que esse poluente atmosférico possa ser canalizado e bombeado para o cultivo de algas. “Com a absorção do dióxido de carbono será possível ajudar a despoluir a atmosfera e com isso ganhar créditos de carbono”, diz Colepicolo. As algas marinhas estão na base da cadeia alimentar e são geradoras de biomoléculas importantes como antioxidantes, aminoácidos essenciais, vitaminas, carotenoides, polissacarídeos e ácidos graxos como o ômega-3 e o ômega-6. “O dióxido de carbono irá funcionar como alimento para a alga ganhar biomassa”, diz o pesquisador.

Em estudos feitos em parceria com o Centro de Capacitação e Pesquisa em Meio Ambiente (Cepema), vinculado à USP e sediado em Cubatão, na baixada santista, o grupo de pesquisa do Instituto de Química tem testado a degradação de alguns poluentes orgânicos, como o fenol, por algas marinhas. Além de conseguir degradar um composto extremamente tóxico, a alga usa o carbono do fenol para construir aminoácidos, lipídeos e ácidos nucleicos. “As estruturas químicas de diversos compostos das algas marinhas são completamente diferentes das estruturas produzidas por plantas terrestres”, diz Colepicolo. Como elas vivem em um ambiente altamente adverso, onde são atacadas o tempo todo por outros organismos que se alimentam delas e também recorrem a elas como refúgio, possuem uma diversificada gama de substâncias químicas extremamente sofisticadas para se defender. Uma dessas substâncias são os aminoácidos tipo micosporinas (ou MMAs, do inglês mycosporine-like amino acids), composto químico de baixo peso molecular sintetizado por algas e fungos com alta capacidade de absorção da radiação ultravioleta, que foram isolados e caracterizados no laboratório da USP. “Isolamos mais de 20 micosporinas de diferentes macroalgas do gênero Gracilaria encontradas na costa brasileira. No início do projeto nosso objetivo era desenvolver uma abordagem unicamente voltada à ciência básica, mas, com a sua alta capacidade de absorção de radiação ultravioleta (UV), foi inevitável pensar na aplicação dessas moléculas nos mais diferentes produtos que ficam expostos à luz solar. Além de protetores solares, essas substâncias podem ser usadas diretamente em tecidos ou em tintas e vernizes para residências e barcos”, diz Colepicolo.

Proteção solar
Um dos extratos obtidos mostrou excelente potencial para uso em formulações cosméticas destinadas à proteção solar. O projeto para obtenção de uma substância fotoprotetora natural foi desenvolvido em parceria com a empresa Natura, como parte do programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), financiado pela FAPESP. “A radiação ultravioleta que elas absorvem é altíssima e comparável aos compostos sintéticos usados na composição dos atuais protetores comerciais”, diz Colepicolo. “Um grande diferencial dessas micosporinas é que elas absorvem UVB (na região espectral de 280 a 330 nanômetros), onde poucas moléculas o fazem.” Com o aumento gradual da incidência solar sobre o planeta, há a necessidade de proteção na região de UVB. “A adição de sustâncias naturais com a mesma eficiência dos sintéticos agrega valor ao produto, tornando-o diferenciado e com valor de mercado competitivo”, diz o pesquisador. A Natura já fez os testes de estabilidade da substância e de avaliação de citotoxicidade, ensaio feito em cultura de células necessário para verificar a biocompatibilidade dos materiais. “Nos ensaios citotóxicos verificou-se que a micosporina não mata as células nem pela absorção da radiação ultravioleta nem sob o efeito da luz branca.”

jean-Paul SorianoDetalhe dos ramos da Caulerpa racemosajean-Paul Soriano

Além das micosporinas, as algas produzem diversos outros compostos com propriedades anti-inflamatórias, bactericidas e fungicidas. “Algumas substâncias extraídas de algas, quando borrifadas no mamão, figo e berinjela, aumentam o tempo de vida útil de prateleira desses produtos”, diz Colepicolo. “Em alguns vegetais houve um aumento de 30 dias na vida útil após a aplicação.” Mas até ser considerado um produto é preciso testar a toxicidade das substâncias pós-consumo e também os efeitos que elas possam ter sobre as frutas em que foram aplicadas – um trabalho que deve demorar cerca de dois anos. Para chegar às substâncias de interesse, os pesquisadores analisaram dezenas de espécies de algas. “Após triturar a alga, preparamos extratos com diferentes polaridades químicas e testamos em larga escala”, diz Colepicolo. Nos Estados Unidos, alguns produtores estão usando extratos de algas enriquecidos de carotenoides misturados à ração das galinhas poedeiras para dar uma coloração mais atrativa aos ovos e, de quebra, deixar os animais mais saudáveis. Isso ocorre porque os carotenoides encontrados nesses organismos são precursores da síntese da vitamina A em animais. O principal problema para o uso em larga escala é que essas substâncias ainda são caras. “Uma dúzia de ovos com extratos de algas custa entre US$ 4 e US$ 5”, diz Colepicolo.

Cultivo integrado
Uma das linhas de biorremediação contempladas no temático tem como foco o cultivo integrado de camarão e algas. No caso, as macroalgas são cultivadas em viveiros semelhantes a tanques nas fazendas produtoras de crustáceos no Rio Grande do Norte. Os estudos têm demonstrado que as águas residuais da aquicultura intensiva – ricas em nitrogênio e fósforo – podem ser usadas como fonte de nutrientes para o crescimento das macroalgas. Nesse caso, é importante encontrar uma espécie algal que seja tolerante ou resistente a um determinado nutriente de maneira a melhorar o potencial de produção e biorremediação. Como resultado dessa parceria, o ambiente se torna mais equilibrado e favorável ao crescimento dos organismos cultivados. Duas fazendas produtoras participam do projeto, coordenado pela professora Eliane Marinho-Soriano, do Departamento de Oceanografia e Limnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Uma delas é a Primar, a única empresa orgânica de cultivo de camarões certificada do Brasil, e a outra, Tecnarão, pertencente a um grupo argentino. As duas estão instaladas às margens da laguna Guaraíras, a 70 quilômetros de Natal, margeada por mangues. Em viveiros de cerca de 1,5 metro de profundidade e com 3 a 4 hectares cada um, os camarões são alimentados com ração vitaminada várias vezes ao dia até atingirem o tamanho comercial.

Ao final de três meses, quando os camarões estão prontos para serem coletados, a água utilizada no cultivo é devolvida ao ambiente natural, o que resulta em um aumento excessivo da carga de nutrientes. Quando as algas (Gracilaria domingensis e Gracilaria birdiae) são cultivadas nos tanques de camarões, elas se alimentam dos detritos expelidos pelos crustáceos, o que no final resulta em uma água mais limpa que pode ser devolvida para os mangues ou reutilizada nos sistemas de cultivo. A biomassa das macroalgas produzida nesses sistemas pode ser usada para alimento humano, ração para animais e compostos bioativos com alto valor econômico.

jean-Paul SorianoBancos naturais de Gracilariajean-Paul Soriano

Eliane coordena ainda um projeto de cultivo de algas em mar aberto na praia do Rio do Fogo, a 80 quilômetros de Natal, atividade realizada em parceria entre a UFRN, o Ministério da Pesca e Agricultura e famílias de pescadores da comunidade. O trabalho teve início em 2001 como um projeto piloto financiado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) para ajudar no desenvolvimento de comunidades carentes. “Mostramos que havia viabilidade econômica para o cultivo de algas nessa região”, diz Eliane. O projeto engloba o manejo dos bancos de algas, a restauração desses bancos, assessoria técnica, além de fornecimento de dados para órgãos ambientais. Atualmente, cerca de 25 pessoas estão envolvidas na coleta da Gracilaria, espécie nativa do litoral nordestino. Em  Rio do Fogo, o cultivo de Gracilaria foi instalado em 2005, a aproximadamente 50 metros da praia, em sistemas de cultivo denominados balsas flutuantes. Essas estruturas são compostas de canos de PVC e cordas que permanecem na superfície da água com o auxílio de boias. Nas cordas são inseridos os talos das algas (mudas), que após três meses estarão prontas para serem coletadas.  Como as plantas terrestres, as macroalgas realizam fotossíntese e são capazes de converter a energia solar em energia química, metabolizando compostos em materiais necessários para o seu crescimento. Além da clorofila, responsável pelo processo básico de fotossíntese, as algas possuem outros pigmentos que lhes conferem variadas colorações, que vão do verde-claro ao roxo. Com base na pigmentação, as macroalgas são classificadas no grupo das algas verdes (Chlorophyta), das pardas (Ochrophyta) ou das vermelhas (Rhodophyta), a que pertencem as espécies de Gracilaria.

Valor substancial
“Dependendo da espécie, as algas podem ser encontradas tanto nas áreas mais rasas como em maiores profundidades”, diz Eliane, que em 2009 publicou o Manual de identificação das macroalgas marinhas do litoral do Rio Grande do Norte, um guia de campo simples e prático. Pelas suas propriedades nutricionais e medicinais, há muito tempo as algas têm sido usadas pelos povos orientais. Mas são alguns polissacarídeos, como ágar e carragenana, utilizados nas indústrias alimentícia, farmacêutica e cosmética como estabilizantes, amaciantes e espessantes, que conferem a esses organismos aquáticos substancial valor econômico. “São consumidas no mundo cerca de 25 mil toneladas de carragenana por ano, o que corresponde a US$ 200 milhões”, diz Colepicolo. É um mercado com crescimento de 5% ao ano. O ágar responde por 10 mil toneladas anuais, ou US$ 10 milhões, com crescimento de 7% ao ano. “Toda a carragenana utilizada no Brasil é ainda importada, porque não temos produção para suprir a necessidade do mercado nacional”, ressalta. No Brasil, até poucos anos atrás, existiam várias empresas que processavam algas. Só que elas não eram cultivadas, mas extraídas da natureza, o que resultou em falta da matéria-prima. Hoje apenas uma empresa na Paraíba trabalha com o processamento de algas. “Para manter as empresas funcionando, é preciso haver biomassa disponível e a única maneira de fazer isso é com o cultivo, como fazem  o Chile, a Indonésia, o Japão e a China”, diz Eliane.

Uma das linhas de pesquisa no projeto temático trata dos cultivos e geração de mudas em laboratório, tarefa conduzida pelas pesquisadoras Nair Sumie Yokoya e Mutue Toyota Fujii, do Instituto Botânico, vinculado à Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Essa vertente do projeto gera mudas de macroalgas que são capazes de ser cultivadas em temperaturas e salinidades diferentes. “A pesquisa desenvolvida no Instituto Botânico é fundamental para o sucesso do projeto, porque, em um país em que a extensão litorânea chega aos 8 mil quilômetros com diferentes condições climáticas, é preciso distribuir as mudas de acordo com a sua tolerância e capacidade de crescer e produzir bioativos variados”, diz Colepicolo. Nair é também a coordenadora da Rede Nacional em Biotecnologia de Macroalgas Marinhas, criada em 2005. Participa ainda do temático o professor Ernani Pinto, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, que conduz a pesquisa para produção de bioativos de algas marinhas e coordena os ensaios farmacológicos do projeto, além da análise de bioprospecção, viabilidade e estudos mercadológicos. “Por sua complexidade e diversidade, as moléculas de macroalgas podem preencher lacunas importantes na descoberta de novos fármacos”, diz Ernani. O grupo do professor Norberto Peporine Lopes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP, é responsável pela elucidação estrutural de substâncias químicas isoladas das macroalgas com bioatividade, e um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina, liderado pelo professor Paulo Horta, cuida dos cultivos e da caracterização das atividades biológicas das substâncias extraídas. Na Universidade Federal da Paraíba o professor George Miranda coordena um cultivo de algas de espécies Gracilaria caudata diferentes das cultivadas no Rio Grande do Norte. Na Universidade Federal de Pelotas a professora Márcia Mesko é responsável pelo biomonitoramento e pela biorremediação de metais pesados pelas macroalgas.

Capacidade antiviral
Pesquisas re­lacionadas às atividades antifúngica, antibacteriana, antiviral, anticoagulante e antioxidante das algas têm sido desenvolvidas por vários grupos de pesquisa. No Brasil, as professoras Valéria Teixeira e Izabel Paixão, da Univer­si­dade Federal Fluminense, estão condu­zindo estudos na fase pré-clínica de com­postos isolados de macroalgas com capacidade antiviral, enquanto o grupo do professor Paulo Mourão e Yocie Valentin, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, isolou polissacarídeos com capacidade anticoagulante, como apresentado no workshop sobre biodiversidade marinha, promovido pela FAPESP em setembro deste ano.

Além da pesquisa de novos fármacos e bioativos de interesse comercial, o grupo de Colepicolo faz estudos para aproveitamento da biomassa da alga para produção de biodiesel e etanol. São duas vertentes para obtenção de biocombustíveis, uma a partir de lipídeos (gorduras) e outra de polissacarídeos (açúcar), extraídos das algas. As pesquisas envolvem tanto as macroalgas como as microalgas, que não podem ser vistas a olho nu. Ângela Tonon, pós-doutoranda do laboratório da USP, está transformando molecularmente algumas vias de síntese de açúcar para a de lipídeos de microalgas. É uma forma de ter extração constante, já que a colheita de microalgas é feita a cada dois ou três dias, enquanto a de macroalgas demora cerca de três meses. O pesquisador Richard Sayre, diretor do Instituto Erac para Combustíveis Renováveis, um centro de pesquisa mantido pela iniciativa privada em Saint Louis, Estados Unidos, mantém estreita colaboração com a pesquisa desenvolvida na USP na parte de modificação molecular de microalgas para produção de lipídeos.

A outra via para obtenção de biocombustível é pela degradação dos polissacarídeos das algas em monossacarídeos. A vantagem das algas em relação à biomassa da cana é que não é preciso quebrar a lignina e as outras fibras para fazer a degradação enzimática. Atualmente os pesquisadores estão selecionando leveduras e enzimas eficientes que degradam os polissacarídeos de macroalgas para a produção de etanol. A busca e a varredura de novos microrganismos incluem isolamento de fungos de macroalgas de diferentes localidades. “A região antártica, onde algas de até cinco metros de comprimento vivem em condições extremas, também será contemplada”, diz Colepicolo, que é o coordenador de um projeto recentemente aprovado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pela Marinha do Brasil, dentro do Programa Antártico Brasileiro. “Um grupo de 12 pesquisadores do projeto está indo para a Antártida em dezembro fazer coleta de algas.” A proposta não é fazer bioprospecção, mesmo porque não existe possibilidade de cultivo em larga escala dessas algas fora do ambiente antártico. “Além da caracterização das linhagens que lá existem, vamos estudar as leveduras e fungos que vivem em simbiose com essas algas”, relata. A expectativa é esses microrganismos poderem ser usados nos processos de fermentação do bioetanol.

Os projetos
1. Estudos de bioprospecção de macroalgas marinhas, uso da biomassa algal como fonte de novos fármacos e bioativos economicamente viáveis e sua aplicação na remediação de áreas impactadas (biodiversidade marinha) (nº 2010/50193-1); Modalidade Projeto Temático – Biota; Co­or­de­na­dor Pio Colepicolo Neto – USP; Investimento R$ 776.576,35 e US$ 320.746,40 (FAPESP)
2. Algas marinhas da costa brasileira: isolamento e caracterização de substâncias bioativas com potencial uso para formulações cosméticas (nº 2003/08735-8); Modalidade Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Co­or­de­na­dor Pio Colepicolo Neto – USP; Investimento R$ 190.614,03 (FAPESP) e R$ 170.000,00 (Natura)

Artigo científico
CARDOZO, K.H.M. et al. Metabolites from algae with economical impact. Comparative Biochemistry and Physiology. v. 146, p. 60-78. 2007.

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