Podcast: Luís Fábio Silveira
Um detalhe importante que contribuiu para o êxito da empreitada acabou se tornando, paradoxalmente, um problema a ser contornado antes de a espécie rediviva estar pronta para ser reintroduzida na natureza, algo previsto para ocorrer no segundo semestre deste ano. Aves híbridas, fruto de cruzamentos não totalmente controlados do mutum-de-alagoas com o mutum-cavalo (Pauxi tuberosa), espécie-irmã que ocorre na Amazônia, encontravam-se misturadas aos exemplares puros de P. mitu no cativeiro. O imbróglio começou em 1990, fruto das melhores intenções de Pedro Nardelli, o criador que trouxe das matas alagoanas os três últimos mutuns encontrados na natureza, iniciativa que salvou a espécie da extinção total. Nessa época, Nardelli tinha em seu criadouro cinco machos sem parceiras para reprodução entre a população de 19 mutuns-de-alagoas mantidos em Nilópolis, nos arredores da capital fluminense. Para que todos os machos tivessem a chance de acasalar, o criador resolveu introduzir no recinto fêmeas de mutum-cavalo. “Cruzei as duas espécies para garantir a continuação da linhagem do mutum-de-alagoas”, justifica-se Nardelli, hoje com 80 anos.
Com o tempo, a população de aves reproduzidas sob a guarda humana passou a abrigar dois tipos de mutuns-de-alagoas: os puros, oriundos de cruzamentos entre machos e fêmeas de P. mitu, e diferentes híbridos, que carregavam material genético das duas espécies em proporções distintas. O registro exato de quem era puro e quem era híbrido acabou se perdendo em 1999, quando Nardelli se viu obrigado a fechar seu criadouro. As 44 aves existentes, então, foram enviadas para dois criadores em Minas Gerais. “Como alguns híbridos têm traços físicos muito parecidos com os puros, não é possível diferenciá-los apenas pela morfologia”, explica Luís Fábio Silveira, curador da seção de ornitologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP). “Tivemos de desenvolver uma abordagem genética para distinguir os dois grupos.”
Os pesquisadores recorreram a duas técnicas distintas da biologia molecular para separar os exemplares puros dos híbridos, conforme relatam em artigo aceito para publicação na revista científica PLOS ONE. A primeira analisou o DNA mitocondrial, um tipo de material genético herdado apenas da linhagem materna. Como boa parte dos híbridos tem fêmeas de mutum-cavalo entre seus ancestrais, esse tipo de abordagem é capaz de detectar as aves mestiças com esse perfil genético. A segunda técnica foi o estudo de 14 microssatélites, pequenos trechos repetidos de DNA que são empregados na genética de populações para determinar o grau de parentesco entre indivíduos, grupos, espécies ou subespécies. Algumas das variações dos microssatélites são específicas de uma espécie. Se encontrados em outra espécie, indicam a presença de uma ave com algum grau de hibridismo. Juntando as duas metodologias, foi possível identificar um grupo de 66 mutuns-de-alagoas puros, coincidentemente 33 casais, entre os 148 exemplares que se encontravam vivos entre 2008 e 2012 nos dois criadouros mineiros.
O processo de determinação do grau de pureza de uma população pela via molecular não é infalível, mas os autores do trabalho dizem que a confiabilidade da abordagem é altíssima. “O risco de termos errado na identificação de uma ave pura é de 2%”, comenta o biólogo Mercival Roberto Francisco, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Sorocaba, que coordenou a parte genética dos estudos. “É um valor muito baixo, uma vez que na literatura científica o risco de erro em trabalhos semelhantes é de 5%.” Desde que foi identificado, o grupo de aves puras é mantido em separado. Sua idade é relativamente avançada, entre 16 e 20 anos. Por sorte, o mutum-de-alagoas vive até 30 anos em cativeiro e mantém-se reprodutivo durante boa parte da vida. “Temos agora 18 casais jovens e puros do mutum-de-alagoas, que nasceram nos últimos três anos”, conta Roberto Azeredo, dono do criadouro Crax – Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Apaixonado pelos cracídeos, família de galináceos que inclui os mutuns, as jacutingas, os jacus e as aracuãs, Azeredo é hoje quem mais entende dos hábitos da ave alagoana. Cerca de 90% dos exemplares vivos do mutum-de-alagoas, incluindo os híbridos, estão em seu criadouro (o restante está em outro viveiro em Poços de Caldas). A fim de encontrar o par perfeito, ele pode passar horas vendo as reações de aves postas para acasalar. “Azeredo é capaz de perceber que a fêmea não está à vontade com o macho e promover a troca de um dos indivíduos para encontrar o melhor par”, comenta Silveira, do MZ-USP. “Sem ele, não teríamos conseguido criar em cativeiro tantos mutuns.” Nos últimos anos, depois que analisou parte do DNA de todas as aves criadas em cativeiro, o biólogo Mercival passou a mandar periodicamente para Azeredo sugestões de casais ideais do ponto de vista de quem deseja garantir a diversidade genética da espécie. “O problema é que as aves nem sempre concordam com a genética”, graceja o criador.
Esse ex-administrador de empresas diz que o segredo de seu trabalho é promover acasalamentos com sensibilidade. Os mutuns-de-alagoas vivem geralmente aos pares. “Mas, às vezes, eles podem ser agressivos. Nesses casos, só coloco o casal junto no viveiro na hora do cruzamento”, explica Azeredo. A fêmea entra em idade reprodutiva geralmente ao atingir 3 anos. Entre setembro e novembro, se foi fecundada, bota dois ovos. Experiência com cracídeos, o criador tem de sobra. Desde os anos 1970, Azeredo reproduz em seus viveiros exemplares de mutum-do-sudeste (Crax blumenbachii), espécie ameaçada de extinção, mas em estado não tão crítico quanto seu primo alagoano. Ele foi o pioneiro na reintrodução do C. blumenbachii na natureza, com grande sucesso. “Ter um criadouro é uma maneira de empobrecer com alegria”, diz Azeredo, sem perder o bom humor.
Gargalo genético
No artigo da PLOS ONE, Mercival e Silveira afirmam que a história do mutum-de-alagoas é um dos casos mais extremos de gargalo genético ou populacional documentado na literatura científica com um final feliz. Apesar de ter se reduzido a apenas três exemplares mantidos em cativeiro em seu momento mais delicado, há pouco mais de 35 anos, a ave escapou da extinção total com o auxílio do homem. “O falcão das Ilhas Maurício, que foi considerado a ave mais rara do mundo, passou por uma situação semelhante em 1974, quando restavam apenas quatro indivíduos”, conta Silveira. Endêmica desse arquipélago do oceano Índico, a espécie Falco punctatus, de apenas 25 cm de comprimento, quase desapareceu por completo em razão da destruição progressiva de seu hábitat. Hoje, depois de esforços conservacionistas que levaram à sua reprodução na natureza e também em cativeiro, a população do falcão está na casa dos 400 espécimes. O caso do sabiá preto das Ilhas Chatham (Petroica traversi), na Nova Zelândia, foi ainda mais crítico. “Acredita-se que todos os aproximadamente 280 indivíduos atuais sejam descendentes de apenas um casal, que se reproduziu entre 1979 e 1982”, comenta Mercival.
A espécie mais conhecida de ave brasileira provavelmente extinta na natureza e que sobrevive apenas em cativeiro é a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii). Originalmente endêmica de uma área de Caatinga do norte da Bahia, a ararinha conta atualmente com uma população de mais de 50 exemplares mantidos no país e no exterior. No entanto, ela ainda não foi devolvida ao seu hábitat. Segundo a lista vermelha feita pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês), há atualmente 68 espécies de animais e plantas desaparecidas do mundo selvagem, mas conservadas em lugares mantidos pelo homem. “Vale a pena investir nessas espécies”, afirma Mercival. “Quando começamos nosso projeto, fomos questionados se era certo trabalhar com uma espécie cuja população em cativeiro podia não ter mais exemplares puros.”
Mansa e saborosa
A primeira referência ao mutum-de-alagoas remonta ao século XVII. “Esta ave se amansa facilmente; gosta de se assentar em um lugar alto como o pavão e sobe também as árvores. Sua carne é muito boa.” Assim termina a primeira descrição da espécie, publicada em 1658 nas páginas de Historia Naturalis Brasiliae. O texto é de autoria do naturalista alemão George Marcgrave, um dos membros da comitiva holandesa de Maurício de Nassau que se instalou no Nordeste na primeira metade do século XVII, e é coautor da obra ao lado de Guilherme Piso. Uma xilogravura acompanha a descrição da ave, oriunda de um cativeiro provavelmente em Recife, e denominada por Marcgrave de mitu, vocábulo do tupi usado pelos índios para se referir ao galináceo.
Apesar dessa antiga referência, que deixa evidente o fim culinário dado para o animal pela trupe de Nassau, o mutum-de-alagoas permaneceu envolto em certo mistério desde então. Quase ninguém o viu e frequentemente foi confundido com o mutum-cavalo. “Ela foi uma espécie rara e fantasma dentro da ornitologia”, afirma Silveira. “Nos museus de história natural da Europa os exemplares atribuídos ao mutum-de-alagoas são, na verdade, do mutum-cavalo.” Isso não impediu que autores renomados citassem a ave nordestina em seus trabalhos. Em 1766, mais de um século depois de Historia Naturalis Brasiliae, o sueco Carl Lineu usou as informações de Marcgrave e batizou a ave de Crax mitu, em consonância com sua nova terminologia científica binomial. Estudos posteriores realocaram o mutum-de-alagoas do gênero Crax para o Pauxi.
Até meados do século XX, não havia um único exemplar do verdadeiro mutum-de-alagoas em qualquer coleção científica do mundo. Em 1951, o ornitólogo Olivério Pinto, do MZ-USP, coletou uma fêmea da ave num trecho de Mata Atlântica em Alagoas e mostrou que o P. mitu não era um mito. Pinto descreveu as principais características morfológicas do mutum-de-alagoas. A cor e o formato do bico, a ausência de penas na região auricular e a coloração de parte da cauda são os traços mais importantes e que o distinguem facilmente do parente amazônico (ver quadro). No entanto, a misteriosa espécie somente viria a ser novamente capturada quase três décadas depois pelo criador Pedro Nardelli, o patrono da população de mutum-de-alagoas mantida hoje em cativeiro.
Há oito anos, quando o Ministério do Meio Ambiente lançou um plano nacional para a conservação do P. mitu, com a participação de universidades e criadouros, Mercival e Silveira tinham o desafio científico de mostrar que ainda havia aves puras da espécie mantidas em cativeiro e valia a pena investir em sua preservação. Essa parte do trabalho foi feita. O próximo passo é devolver mutuns-de-alagoas puros ao seu hábitat. Para que isso venha a ocorrer em breve, os pesquisadores contam com a participação do governo de Alagoas e de empresas e entidades locais. Uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) com 900 hectares de mata contígua, um tipo de unidade de conservação em terras privadas, foi criada recentemente em uma usina de açúcar e álcool de Rio Largo, perto de Maceió, para receber os primeiros exemplares da ave. “As empresas no passado estavam ligadas à destruição da floresta, mas hoje sabem que têm um papel importante na preservação da fauna e flora da região”, diz Fernando Pinto, fundador e presidente do Instituto para a Preservação da Mata Atlântica (IPMA), uma entidade local envolvida nos trabalhos em prol da volta do mutum ao seu território original.
Engenheiro civil, Pinto é uma das poucas pessoas que viu a ave na natureza ainda no fim dos anos 1970. Chegou a fotografar uma fêmea chocando ovos em uma árvore. Na época era funcionário de uma destilaria de álcool e lembra-se de ter presenciado o desmatamento de 10 mil hectares de floresta em oito meses. Teve uma fêmea de mutum-de-alagoas em casa antes de doá-la para Nardelli, que ficou cerca de um ano e meio na região procurando exemplares da ave. “A caça ainda faz parte da cultura local”, adverte Pinto. “Esse será o maior risco para o mutum-de-alagoas depois que ele for reintroduzido. Mas acho que conseguiremos manter o controle dentro da reserva.” Um centro de visitantes, com dois exemplares da ave em exposição, deverá ser montado ao lado da RPPN. Assim o P. mitu poderá ser mais facilmente conhecido por todos.
Projetos
1. Estudos da variabilidade genética de cracídeos brasileiros ameaçados de extinção (aves, galliformes), como subsídios para a conservação ex situ (nº 2008/51197-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Apoio a Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Mercival Roberto Francisco (UFSCar); Investimento R$ 327.788,81.
2. Sistemática, taxonomia e biogeografia de aves neotropicais: Os Cracidae como modelo (nº 2007/56378-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Fábio Silveira (MZ-USP); Investimento R$ 86.928,28.
Artigo científico
COSTA, M. C. et al. Recovering the genetic identity of an extinct-in-the-wild species: The puzzling case of the Alagoas curassow. PLOS ONE. No prelo.