Podcast: José Eduardo Krieger
Hoje se sabe que as células-tronco adultas são versáteis, mas não mágicas. Sozinhas, não restauram o coração, embora liberem compostos que podem evitar a morte de células cardíacas e estimular a formação de vasos sanguíneos. Após uma fase de otimismo excessivo, especialistas em importantes centros de pesquisa e tratamento em cardiologia do mundo tiveram de voltar à bancada e realizar mais testes – com células, roedores e animais maiores –, ao mesmo tempo que continuavam a avaliar o uso dessas células em pessoas com problemas cardíacos. Desse recuo necessário e estratégico, podem emergir novos usos para as células-tronco adultas, que são encontradas em alguns tecidos do corpo, mas são menos versáteis do que as extraídas de embriões – as células-tronco embrionárias, estas, sim, capazes de originar células de qualquer tecido. Em vez de fazer corações combalidos funcionarem como novos, as células-tronco adultas talvez possam otimizar o desempenho de terapias e medicamentos disponíveis. As esperanças atuais de reparação do tecido cardíaco recaem sobre células mais versáteis, como as obtidas a partir de células-tronco de pluripotência induzida (ver quadro).
“Atualmente enxergamos as células-tronco adultas de maneira diferente, com uma plasticidade [capacidade de originar células de diferentes tecidos] limitada, mas ainda com potencial de modificar o ambiente no qual elas são inseridas”, afirma o biólogo Rafael Dariolli, membro de uma equipe no Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP) que investiga a utilidade das células-tronco para tratar problemas cardíacos. O grupo é coordenado pelo médico e pesquisador José Eduardo Krieger, responsável por um ensaio clínico do Ministério da Saúde que avalia a capacidade das células-tronco adultas de melhorar a irrigação do músculo cardíaco em pessoas com isquemia crônica (redução no fluxo de sangue para o coração). Em paralelo aos testes com seres humanos, Krieger e sua equipe retomaram várias vezes os experimentos em laboratório para entender como essas células se comportam – em um estudo recente, feito com porcos e publicado na revista PLOS ONE, Dariolli, Krieger e colaboradores mostraram que células-tronco extraídas da gordura aumentaram a formação de vasos e a irrigação do tecido cardíaco, além de reduzir a cicatriz causada pelo infarto, permitindo ao coração contrair melhor.
“A ciência tem uma dinâmica própria, que, muitas vezes, gera incertezas”, pondera a socióloga Maria Conceição da Costa. Professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela estuda como governos, pesquisadores, agências de fomento e a população influenciam a agenda científica de um país e está começando a comparar a regulamentação de pesquisas e terapias com células-tronco no Brasil e na Índia. “Às vezes, é preciso mais tempo para entender se e como certas técnicas funcionam.” Krieger concorda: “Se uma tecnologia não está madura para se tornar um tratamento, é preciso dar um passo atrás”.
Se até hoje não se conhece bem como essas células funcionam, não teria sido precipitado testá-las em seres humanos no início dos anos 2000? “Não considero que os ensaios clínicos tenham começado cedo demais”, afirmou a pesquisadora Enca Martin Rendon, do Instituto de Células-tronco de Oxford, um dos centros ligados à Universidade de Oxford, na Inglaterra, à Pesquisa FAPESP. “Já tínhamos um conhecimento extensivo sobre células-tronco da medula óssea, usadas havia mais de 40 anos em transplantes de medula para tratar alguns cânceres sanguíneos.”
Não foi apenas a experiência prévia dos transplantes de medula que permitiu a transição rápida, em apenas dois anos, dos testes com animais para os ensaios clínicos com seres humanos para verificar a eficácia das células-tronco na reparação cardíaca. Na virada do milênio, surgiram estudos propondo propriedades até então não imaginadas para as células-tronco adultas. “A partir de 1999, fomos inundados por publicações de alto impacto indicando que essas células teriam uma plasticidade comparável à das células-tronco embrionárias”, recorda o fisiologista Antonio Carlos Campos de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com o biólogo croata Raduan Borojevic, também professor da UFRJ, Carvalho havia concluído em 2001 experimentos sugerindo que células-tronco adultas injetadas no coração de ratos com insuficiência cardíaca melhoravam a capacidade do órgão de se contrair. Esse trabalho ajudou a embasar um dos primeiros ensaios clínicos com esse tipo de célula no país, finalizado em 2003 – pouco depois, como coordenador de ensino e pesquisa no Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio, Carvalho comandou um dos maiores ensaios clínicos com células-tronco para tratamento cardíaco já realizados no mundo.
O estudo que mais impactou e estimulou as pesquisas com células-tronco na cardiologia, a área da saúde em que os estudos com essas células mais avançaram, foi publicado em 5 de abril de 2001 na revista Nature. Em um artigo de quatro páginas, o grupo do médico ítalo-americano Piero Anversa, então um eminente pesquisador na área de doenças cardiovasculares no New York Medical College, nos Estados Unidos, apresentou os resultados que deixariam uma parte dos pesquisadores de reparação cardíaca maravilhada – e outra parte desconfiada. Os experimentos indicavam que células-tronco adultas (da medula óssea) injetadas no coração de camundongos teriam originado, além de vasos, células cardíacas que repovoaram 70% da área danificada no infarto. Mais importante, as novas células pareciam capazes de contrair e melhorar o batimento cardíaco. “Era tudo o que queríamos ouvir”, conta Krieger. “Naquele momento, pensamos que os problemas de reparação cardíaca estavam resolvidos.”
Havia mais. No ano seguinte Anversa e sua equipe relataram no New England Journal of Medicine que, em corações transplantados, até 10% das células cardíacas seriam originárias do próprio receptor, sugerindo que o órgão poderia se regenerar a partir de células-troncos da circulação sanguínea. Em 2003, na Cell, o grupo informou ter identificado, por fim, células-tronco específicas do coração.
Um pouco antes haviam surgido indícios de que era seguro injetar essas células no coração humano. Em setembro de 2001, o cirurgião Kimikazu Hamano e outros pesquisadores da Universidade Yamaguchi, no Japão, relataram no Japanese Circulation Journal os resultados de um ensaio clínico de segurança, feito para verificar se o tratamento não causa danos à saúde. Após testes em cães, eles injetaram células-tronco da medula óssea no coração de cinco pessoas submetidas a uma cirurgia de revascularização cardíaca. Um ano depois, não havia sinais de efeitos indesejados, e a circulação local havia melhorado em três delas. Em outubro do ano seguinte, o grupo do cardiologista Bodo Strauer, da Universidade de Dusseldorf, Alemanha, apresentou na revista Circulation dados indicando uma redução maior na área de infarto no coração de 10 pessoas tratadas com medicamentos e células-tronco do que no de outras 10 apenas medicadas.
O Brasil não estava atrás. O cardiologista Hans Dohmann e sua equipe no Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, em parceria com Emerson Perin, cardiologista brasileiro do Texas Heart Institute, já haviam implantado células-tronco no coração de 14 pessoas com insuficiência cardíaca crônica em um estudo com 21 participantes (ver Pesquisa FAPESP nº 88). Das 14 tratadas com as células, 12 sobreviveram e apresentaram aumento na irrigação e na capacidade de contração do órgão, segundo dados publicados em 2003 na Circulation. Não houve melhora significativa nos sete indivíduos do grupo de controle.
Por volta dessa época, começavam a surgir questionamentos. Intrigados com os achados de Anversa, vários grupos tentaram replicar seus experimentos sem sucesso. Charles Murry, da Universidade de Washington, e Loren Field, da Universidade de Indiana, publicaram em 2004 na Nature um artigo afirmando que, diferentemente do que Anversa teria observado, células-tronco da medula óssea não se transformavam em células cardíacas – a desconfiança sobre os trabalhos de Anversa cresceram nos anos seguintes e levaram a Universidade Harvard, para onde ele se transferiu mais tarde, a abrir investigação sobre alguns estudos e pedir a retratação de um artigo de 2012 e colocar sob suspeita um de 2011; seus achados mais antigos não foram reproduzidos, perdendo credibilidade. “O conhecimento nessa área se comportou como um pêndulo”, conta Carvalho, da UFRJ. “Em um primeiro momento se acreditou que as células-tronco adultas originavam qualquer coisa, para, anos depois, as mais importantes revistas científicas publicarem artigos indicando que nada disso acontecia.”
Ainda era pouco para reavaliar o que parecia ir bem. Os ensaios em andamento eram, em geral, pequenos (de fase 1), destinados a verificar a segurança do tratamento. Quase sempre mostravam resultados animadores, como o conduzido por Dohmann no Brasil. Na época, estavam no início os estudos de fase 2, com mais participantes e metodologia mais rigorosa – comparando a injeção de células-tronco com a de um composto inócuo (placebo) e selecionando aleatoriamente o que seria administrado a cada participante.
À medida que se tornaram conhecidos os resultados dos ensaios de fase 2, a magia inicial das células-tronco adultas começou a se desfazer. O POSEIDON, feito com 37 pessoas nos Estados Unidos, o BOOST-2, realizado com 153 pacientes na Alemanha e na Noruega, e o TECAM Trial, que envolveu 120 participantes na Espanha, indicaram um benefício mais modesto do que o observado anteriormente.
No Brasil, os dados já publicados de um dos maiores ensaios clínicos para avaliar a eficácia das células-tronco adultas na reparação cardíaca também não animam. Lançado em 2004 pelo Ministério da Saúde, o estudo multicêntrico randomizado de terapia celular em cardiopatias (Miheart) custou R$ 13 milhões e tinha por meta tratar com células-tronco da medula óssea 1.200 pessoas vítimas de infarto, doença isquêmica crônica, cardiomiopatia dilatada e cardiomiopatia causada pela doença de Chagas.
Dois de seus quatro braços já foram concluídos, e os resultados publicados sem chamar muita atenção. Um deles avaliou a injeção de células-tronco nas artérias que irrigam o coração para melhorar a função cardíaca em 183 pessoas com Chagas. Outro investigou o efeito dessas células em 160 participantes com cardiomiopatia dilatada, aumento do coração que dificulta o bombeamento de sangue. Em ambos os casos, a melhora provocada pelas células foi semelhante à apresentada por quem recebeu placebo. Os dados do terceiro braço (infarto) estão submetidos para publicação e também não mostram vantagens; os do quarto (isquemia crônica) se encontram em análise. Com o que se conhece até o momento, não haveria razão para indicar o uso dessas células para tratar os problemas avaliados no Miheart. Ao menos, não para o nível de gravidade, em geral elevado, dos casos incluídos no estudo.
Estudos de meta-análise, que se valem de ferramentas estatísticas para agrupar ensaios clínicos semelhantes e aumentar o número de casos em busca de efeitos mais sutis, são igualmente inconclusivos até o momento. Uma das razões é que há diferenças na concepção dos ensaios, o que dificulta analisar os dados em conjunto – a estratégia de injeção de células-tronco pode variar (nas artérias ou no músculo cardíaco) e o desfecho que se mede também pode mudar (por exemplo, aumento na capacidade de bombeamento ou redução na mortalidade). Em um comentário publicado em junho deste ano no British Medical Journal, Enca Martin Rendon e seu grupo, após analisar 38 ensaios clínicos, afirmam que é preciso esperar os resultados de trabalhos com mais pessoas antes que se possa recomendar ou não o uso das células-tronco adultas na prática clínica.
Um dos estudos aguardados é o ensaio clínico europeu BAMI, que pretende testar células-tronco da medula óssea em 3 mil vítimas de infarto. “Se o BAMI não mostrar benefícios, não haverá mais o que discutir”, diz Carvalho. “Será preciso partir para outros tipos de células.” Apesar de sua visão crítica, ele não desistiu. Retomou os testes com animais e, com a parasitologista Maria Terezinha Bahia, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), tenta utilizar células-tronco do tecido adiposo, mais homogêneas do que as da medula óssea, para tratar o coração de cães com Chagas.
No InCor, Krieger segue otimista. Para ele, o experimento com os porcos e a revisão do papel das células-tronco adultas abrem novas possibilidades de uso – em especial, para as extraídas da gordura. Ele e Dariolli atribuem a melhora no coração dos animais à capacidade dessas células de tornar o ambiente da lesão menos hostil. Elas liberam ao menos 30 compostos. Alguns estimulam a formação de vasos sanguíneos; outros podem controlar a inflamação e evitar uma degradação maior do tecido privado de sangue. “Essas células não reparam o coração, mas talvez aumentem a eficácia de tratamentos clínicos e cirúrgicos existentes”, diz Krieger. Ele suspeita ainda de que elas possam beneficiar pessoas com danos cardíacos menos graves que os tratados nos primeiros ensaios clínicos. Enca Rendon, de Oxford, também vê potencial nessas células – e em células imaturas do coração (progenitores cardíacos) – para amenizar a insuficiência cardíaca, hoje resolvida com o transplante do órgão.
No exterior, já se iniciaram testes com células-tronco aparentemente mais versáteis. O cardiologista Eduardo Marbán e sua equipe no Instituto do Coração Cedars-Sinai, na Califórnia, já inseriram no coração de animais e seres humanos células obtidas de progenitores cardíacos e, depois, cultivadas em laboratório. Um ensaio de segurança, com 17 pessoas vítimas de infarto, sinalizou que o procedimento era seguro e teria reduzido a cicatriz no coração, segundo artigo de 2014 no Journal of American College of Cardiology.
Na Universidade de Osaka, Japão, o cardiologista Yoshiki Sawa e seus colaboradores implantaram no coração de porcos células cardíacas (cardiomiócitos) humanas obtidas de células-tronco de pluripotência induzida (iPS), células adultas reprogramadas para se comportarem como células-tronco. Análises iniciais apresentadas em agosto deste ano na Scientific Reports indicam que as células se incorporaram ao órgão e melhoraram sua capacidade de bombear sangue. Mas nem sempre os resultados animam. No Simpósio de Medicina Regenerativa Cardiovascular, realizado em setembro nos Estados Unidos, Michael Laflamme, do Instituto de Pesquisa do Hospital Geral de Toronto, no Canadá, relatou seus experimentos com cardiomiócitos humanos obtidos de células iPS. Implantados no coração de porcos, eles se integraram à região do infarto, mas não houve benefícios e, dos sete animais tratados, dois morreram em consequência de alterações nos batimentos cardíacos (arritmia). “Agora se busca compreender o que causa essa arritmia”, conta Carvalho, que acompanhou o evento.
“Na ciência médica, veem-se mais controvérsias do que certezas”, conta Rafaela Zorzanelli, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que, com colaboradores, traçou a evolução das pesquisas com células-tronco no Brasil em um artigo de outubro de 2016 na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. “Hoje talvez haja menos expectativas grandiosas sobre o uso das células-tronco. Não creio que seja um retrocesso, mas uma perspectiva mais realista do que esperar desse tipo de biotecnologia.”
Projeto
Genômica cardiovascular: Mecanismos e novas terapias – CVGen mech2ther (nº 13/17368-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável José Eduardo Krieger (InCor-USP); Investimento R$ 6.902.193,63.
Artigo científico
DARIOLLI, R. et al. Allogeneic pASC transplantation in humanized pigs attenuates cardiac remodeling post-myocardial infarction. PLOS ONE. 27 abr. 2017. v. 12, n. 4, e0176412